domingo, 26 de julho de 2020

Bernard-Henri Lévy: “É preciso acabar com o discurso do medo”


O famoso filósofo francês esteve na redação do Expresso para falar do seu mais recente livro “Este Vírus Que Nos Enlouquece” que acaba de ser publicado em Portugal. É um ensaio sobre estes tempos estranhos em que vivemos e uma crítica exasperada à maneira como enfrentamos a pandemia

Pedro Mexia

Revista do Expresso, 25/07/2020

Apertar a mão ou não apertar, eis a questão. Numa das suas colunas da revista “Le Point”, Bernard-Henri Lévy tinha-se insurgido contra o fim do aperto de mão, mesmo em tempos de pandemia. Como cumprimentá-lo agora? A questão resolve-se quando B.H.L., como é conhecido, estende a mão a todos os que o vieram receber à entrada do Expresso. Improvável septuagenário, elegante e descontraído, Lévy esteve em Portugal para promover a tradução do recentíssimo “Este Vírus Que Nos Enlouquece” (edição Guerra & Paz), breve ensaio bastante mais “libertário” do que “securitário”. É um texto belicosamente hostil à linguagem da “guerra”, do medo, do distanciamento, formas de servidão voluntária que estão no extremo oposto da imagem de um B.H.L. cosmopolita, viajado, mediático, polêmico. E é também um ato de indignação contra os indignados, contra os que viram na covid uma intenção, um castigo, uma mensagem. De modo que nada escapa a esta crítica exasperada à maneira como enfrentamos a pandemia: nem os aplausos à varanda nem os diários do confinamento, nem Fauci nem o Papa.
Este livro não é sobre o vírus mas sobre o discurso acerca do vírus, o “vírus discursivo”. O que mais o impressionou nesse discurso?
Isso é importante porque não se trata do livro de um médico, mas do livro de um filósofo. É um livro que parte do princípio de que uma epidemia é um fenômeno social tanto quanto um fenômeno médico. E uso mesmo aquela fórmula do grande anatomo-patologista Rudolf Virchow que disse que o vírus é um fenômeno social que comporta alguns aspectos sanitários. São os aspectos sociais que me interessam, é um livro de um semiótico, de um analista do discurso. O que me interessa é o que se diz, é a maneira como as sociedades foram governadas nos últimos meses, é o modo de governamentalidade que apareceu por causa da pandemia. O meu tema é esse. Não é o vírus, até porque os médicos não sabem muito sobre o vírus e porque não sou médico. Em contrapartida, sobre a linguagem totalitária e democrática, sobre a semiótica e a análise do discurso, aí tenho algum ouvido. E foi com esse ouvido que escrevi este livro.
Há desde logo questões de linguagem, como o uso do termo “guerra”...
Isso já me exaspera. Começamos logo mal. Faço parte das pessoas que conhecem um pouco o que é a guerra. E não é isto. O vírus não é um inimigo invisível, os médicos e os enfermeiros não são combatentes da frente de batalha, as pessoas que ficaram em casa não são reservistas nem tropas de retaguarda. Essa militarização do discurso sobre o vírus foi uma falsa pista que conduziu inevitavelmente a um mau resultado. Bem sei que o Presidente francês foi um dos primeiros a usarem esse termo, mas eu discordo da palavra. O vírus não é um inimigo nem um inimigo invisível, é um vírus. Há qualquer coisa de medieval nessa maneira de pensar nas coisas em termos de guerra...
Mas não é uma linguagem, digamos, aproximativa, como quando se diz “a guerra contra a droga”?
A guerra contra a droga é diferente, porque os cartéis da droga estão organizados como exércitos. Mas detrás de um vírus não há uma vontade, não há uma estratégia nem um exército. E como para mim o grande erro face a esta pandemia foi justamente o de emprestar ao vírus uma intenção, uma vontade, como se ele estivesse a dar-nos uma mensagem, um aviso, julgo que o que está na raiz de todas esses erros é ver o vírus como um inimigo. O discurso da guerra, como dizia o meu camarada André Glucksmann, é particularmente “mal-vindo”.
Muita gente criticou o discurso do medo. Mas não é normal termos medo de uma doença potencialmente mortal e ainda desconhecida?
Eu não critico o medo. Constato-o. E constato também que contrariamente à ansiedade, para falar de forma freudiana, que é um alarme e que ajuda a agir, o medo é paralisante, impede a ação. É normal ter medo desta doença? É. Mas não mais do que de outras doenças mortais. O vírus é mortal em poucos casos, menos do que outros vírus, menos do que doença terríveis e incuráveis como o cancro. Portanto, o medo foi excessivo, havia uma parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico, cujos efeitos sociais não são bons.
Uma das causas do medo tem que ver com não sabermos como se comporta a doença. Fomos recebendo informações muito diferentes sobre usar ou não usar máscara, sobre a forma de contágio… Não é um vírus que já conhecemos, como a sida.
Mas levamos dez ou 20 anos a conhecer. Nos anos 80 não sabíamos nada. Diziam-se muitos disparates sobre a sida, como agora sobre a pandemia. Que era uma doença que afetava apenas uma categoria de pessoas. E não era verdade. Até à geração dos meus pais, também se sabia muito pouco sobre o cancro. E mesmo hoje uma parte da lógica do cancro continua opaca. Este vírus não é mais opaco nem mais enigmático do que o cancro.
Nesta pandemia muita gente tem atribuído “intenções” à natureza…
Acho que estamos numa época particularmente moralista, que faz de tudo uma questão moral, que culpabiliza tudo e todos. E esse espírito do tempo apropriou-se deste vírus. O espírito do tempo tem uma vontade, mas o vírus não tem. E esse espírito investiu o vírus de uma energia punitiva. Estamos num momento em que, à direita como à esquerda, há um clima a que Nietzsche chamava “moralina”.
É um regresso a uma linguagem e a um pensamento religiosos? Em Portugal, no tempo do terramoto de 1755, houve quem falasse de castigo divino.
É a mesma coisa. Conheço a literatura do terramoto de Lisboa, conheço as prédicas e a literatura popular do tempo da peste negra, é o mesmo discurso. Podemos ser muito sábios, ter laboratórios com tecnologias de ponta, ótimos hospitais, mas na nossa cabeça estamos ainda no tempo do terramoto de Lisboa ou da peste negra. Pensamento mágico, vingança da natureza, os deuses estão zangados, os homens pecaram e estão a ser castigados. O modelo de confinamento tem duas fontes. A fonte moderna é a China, é Wuhan. A fonte antiga vem das cidades do século XIV no tempo da peste negra. É o que escreveu Michel Foucault quando distinguiu o modelo das leprosarias (excomungam-se os doentes, metem-se numa ilha, fecha-se a ilha) e o modelo do confinamento para a peste (pede-se a todos que se fechem em casa e às famílias que vigiem os sintomas). É o regresso disso. Estamos no século XIV. Estamos no “Decameron”, de Bocaccio, nas casas secundárias de Sintra ou de Deauville, como os jovens que iam para as colinas de Fiesole enquanto se morria em Florença. Os conservadores podem ficar reconfortados, mas os optimistas, como eu, acham isso inquietante. Com todos os especialistas que temos e a cultura das liberdades podíamos ter encontrado uma resposta mais inteligente.
Os antigos pecados eram a heresia ou a imoralidade, os novos pecados são a globalização e o capitalismo. É uma forma moral de falar de política?
É uma forma moral e sobretudo idiota, absurda. Quando houve epidemias de cólera, de varíola, não havia globalização, que eu saiba. Mas agora, se acabarmos por reagir de forma mais inteligente é por causa de vacinas e de medicamentos, e se os tivermos mais rapidamente será por causa da globalização. A globalização do conhecimento, dos laboratórios, a troca de informação, até a competição. O ritmo de descoberta das vacinas é em geral de dez anos, mas é provável que desta vez seja mais rápido, graças à globalização. Se temos máscaras, como as que nos deram à entrada deste edifício, foi graças à globalização. A máscara é um pedaço de pano que podemos fazer em Lisboa ou em Paris, mas o elástico vem do cauchu africano e asiático. A globalização é o pharmakon grego. Pode contribuir para o mal, mas contribui muito para o remédio.
Para algumas pessoas a pandemia é como que uma “surpresa divina”. Por isso se diz que agora temos de “mudar tudo”. Como reage a essa injunção?
Acho isso repugnante. Desprezo quem se aproveita da morte, quem tira vantagem de um drama humano para fazer avançar a sua agenda, a sua ideologia, o seu programa. É de uma grande crueldade e de uma enorme violência. Falo no livro da “surpresa divina”, que foi a expressão dos maurrassianos [nacionalistas franceses, adeptos de Charles Maurras] aquando da derrota francesa [em 1940]. Há esta tradição de tirar partido de um desastre. E houve quem o dissesse abertamente. Houve gente da ecologia radical que disse abertamente: vamos “aproveitar” isto. Disseram essa palavra. Não vamos deixar passar a ocasião que este desastre nos oferece...
A pandemia levou a que se citasse muito as teses de grandes filósofos e pensadores, do “vigiar e punir” de Foucault ao “estado de excepção” de Carl Schmitt. Usamos demasiado esses conceitos?
Acho que isso se fez de menos. Em Portugal, o debate sobre o confinamento era tabu, segundo sei. Aliás, como em França. Quem pretendesse, em nome de Foucault ou do Papa, tanto faz, interrogar o estado de excepção, o risco para as liberdades, era tratado como um mau cidadão. Mas também havia outros problemas, como a virtualização das relações sociais, a ruptura da solidariedade, o triunfo do egoísmo social, o distanciamento social (essa expressão atroz). Um dos principais objetivos da democracia é reduzir o distanciamento social, o distanciamento entre as classes, o distanciamento entre os poderosos e os humildes, entre os governantes e os governados. Não é uma coisa boa, o distanciamento social. Mas havia qualquer coisa nova nessa maneira de a defender ou de a aceitar sem crítica. Eu tive um pressentimento disso quando ouvi o doutor Fauci, chefe da task force de Trump, dizer que não voltaríamos a apertar a mão uns aos outros.
E por isso escreveu na “Le Point” um artigo zangado contra “o fim do aperto de mão”, o aperto de mão que é símbolo de contrato, de paz...
É um símbolo enorme. Um pequeno gesto com grande significado. É um gesto que até há pouco nos parecia quase automático, e que continua a ser para alguns de nós, porque representa tudo o que há de bom no pacto social. Num pacto social há uma parte maldita e há uma parte abençoada. A parte abençoada é a confiança, olharmo-nos no olhos, não nos pormos de joelhos perante o outro. E o aperto de mão. Esses pequenos sinais de alarme preocupam-me.
Outras questões não serão tão novas. Há muito que havia pessoas preocupadas com a vigilância e com a privacidade, isso não começou agora.
Tem razão.
Mas agora é o Estado...
... é o Estado aliado às grandes empresas tecnológicas. E às famílias. Há muita gente que se aproveita desse levantamento do segredo sobre as nossas vidas. Antes eram os GAFA [acrônimo para Google, Amazon, Facebook, Apple], agora são os GAFA mais o Estado, mais as pessoas que nos rodeiam... Se essas três forças se juntam, acabou-se a nossa liberdade, quer dizer, aquela porção de segredo do qual somos todos depositários. Somos pessoas livres na exata proporção da quantidade de vida privada e da quantidade de segredo de que somos detentores. Um sujeito livre é um icebergue onde há gestos, responsabilidades, decisões visíveis; mas o que dá à liberdade o seu fundamento e a sua gravidade é essa parte de nós que escapa ao controlo seja de quem for. À Amazon, ao Estado, à nossa família.
O clima de pânico fez até com que houvesse pessoas que denunciavam os vizinhos...
Naturalmente. Quando se aplaudiam os profissionais de saúde à varanda era uma bela imagem, e eu também aplaudi, mas não me posso esquecer que da mesma varanda espiavam-se os vizinhos, telefonava-se à polícia para dizer que eles tinham ido duas vezes ao supermercado ou que estavam num ajuntamento ilegal de cinco pessoas no prédio em frente. Eram as mesmas pessoas, a mesma varanda, com dez minutos de intervalo. Houve lampejos de solidariedade mas que não podem fazer esquecer a explosão de egoísmo, de fechamento, de ódio ao outro, de maldade.
Falou de Foucault e do doutor Fauci e queria ouvi-lo sobre o “poder médico”. Ao mesmo tempo que alguns políticos nos diziam que iam decidir de acordo com os médicos e os cientistas, muitos médicos e cientistas diziam que não sabiam grande coisa. Tratamos os especialistas como se fossem deuses, mas eles são os primeiros a reconhecer que o vírus é novo, que tem mutações que ainda não conhecemos...
Tratamo-los como oráculos. O oráculo de Delfos falava pela boca do dr. Fulano. E, tem razão, os melhores de entre eles, os mais probos, não querem desempenhar esse papel, porque sabem bem que não é o seu papel. Sabem bem que se assumirem esse papel praticam um abuso de autoridade. Sabem bem que a ciência avança no nevoeiro, que o nevoeiro é por vezes muito denso, que muitas vezes caímos, sabem isso tudo, os médicos. Sabem que não são os detentores da verdade. E que a verdade é um processo longo, cheio de dificuldades.
Embora saibamos isso, quem mais podemos ouvir, perante uma doença, senão os cientistas, os especialistas, os médicos?
Se voltarmos ao princípio desta conversa, à ideia de que a epidemia é um fenômeno social tanto quanto médico, estão era preciso ouvir muito mais gente. Os pedagogos, os professores, os pais, os sindicatos, as associações de vítimas de violência doméstica, psiquiatras, empresários, muita gente. Porquê ouvir apenas os médicos? Porquê essa idolatria da palavra dos médicos quando havia tantas outras opiniões que era preciso ouvir? Sabemos hoje que muita gente morreu de solidão. Sabemos que a violência conjugal disparou. Sabemos que o número de pessoas que vão morrer de fome duplicou ou quadruplicou. Sabemos tudo isso.
E como vê o retorno das ideias de higienismo, de darwinismo social, a ideia de que os velhos podem ser deixados para trás...?
Há quem diga isso dos velhos, mas não é só os velhos. Há quem diga que a pandemia foi uma boa ocasião para parar o curso da globalização, para carregar no interruptor. E não podemos ignorar que para os mais fracos isso seria terrível. Carregar no interruptor é deixar morrer milhões de pessoas. Os velhos, os fracos, os desmunidos, os sem-abrigo, as pessoas a quem disseram que fossem para casa e que não têm casa para onde ir. Há um regresso do malthusianismo... Acho bem que se viva com mais sobriedade, que se consuma menos, que se pense duas vezes antes de apanhar um avião. Sou um velho leitor de Ivan Illich e de Carlos Castaneda, tudo isso influenciou a minha juventude. Mas a sobriedade, a frugalidade e o decrescimento organizam-se, não se decretam. Isso é experimentalismo social. Malthus, Darwin, tudo isso veio à baila nesta pandemia.
Um pouco por todo o lado discutiu-se a pandemia em termos de uma escolha entre a saúde e a economia.
Acho isso ignóbil. É pior ainda: é a economia ou a vida. A bolsa ou a vida. Voltamos a essa velha máxima dos salteadores de estrada. É ignóbil. Porque a economia também é a vida. É a vida contra a vida. Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao desemprego, que o desemprego leva à miséria, e que a miséria leva à morte. Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida. Aliás, a epidemia não acabou, o torpor e a paralisia da sociedade não acabou. Portugal, tal como a França, decidiu desconfinar, mas Lisboa está desconfinada? Não está, conheço esta cidade, gosto dela, e vejo bem a atmosfera pesada, o clima de tristeza e de medo. As pessoas mais lúcidas, que sabem mais sobre a epidemia, têm de falar, de dizer que a epidemia não terminou mas que está controlada, que o risco de uma segunda vaga é fraco, que há capacidade hospitalar para uma segunda vaga. É preciso acabar com o discurso do medo.
Já falou da literatura, do “Decameron”. Durante a pandemia houve uns quantos escritores franceses que publicaram na imprensa diários do confinamento onde falavam sobre o silêncio e os pássaros e onde citavam Pascal e a ideia de que todo o mal vem de sairmos do nosso quarto. É a consolação da literatura ou um abuso da literatura?
Não é uma consolação, é uma provocação. Porque essa história do canto dos pássaros e da natureza que recupera os seus direitos e do céu azul, eu li isso com os olhos de um refugiado de Lesbos ou de um sem-abrigo de Dacar. E perante essas pessoas, esse discurso ‘bobo’ [bourgeois bohême, burguês-boêmio] é obsceno. É má literatura. Acho que houve um grande desplante desses escritores que se reclamaram como herdeiros da grande literatura.
Algumas pessoas comportavam-se como se o mundo lá fora não existisse, como se a guerra não existisse, como se o sofrimento do mundo não existisse?
Absolutamente. O próprio “confinamento”... O que me impressionou foi o modo como as pessoas aceitaram esse termo, confinamento. Para os italianos, “confinamento” é uma palavra fascista. Os antifascistas eram “confinados” em ilhas ou noutros sítios. E no confinamento há a ideia de nos fecharmos numa bolha auto-suficiente, com poucas janelas para o exterior. O exterior pode estoirar que isso não tem importância.
No seu livro fala de Levinas e do pensamento judaico. Muitas pessoas têm notado, com alegria ou com tristeza, que as religiões não tiveram um discurso propriamente religioso face à pandemia, limitaram-se a seguir as indicações da medicina. Como vê essa espécie de afasia da religião?
Foi uma das coisas que me surpreenderam. Quando li que o Papa Francisco mandou esvaziar as pias de água benta com medo que estivessem contaminadas pelo vírus, quando vi que os rabinos faziam o elogio do confinamento, pensei que havia alguma coisa errada no que toca à espiritualidade. Do ponto de vista médico, eu também respeitei a disciplina, aceitei-a com extrema dificuldade, porque ia contra a minha maneira de ser, mas aceitei. Mas o que me surpreendeu foi a teorização à volta disso. Que nos sujeitemos provisoriamente ao confinamento, sabendo que é um momento em que é preciso alguma firmeza, é uma coisa; mas que nos tentem impingir teorias sobre a espiritualidade do confinamento e sobre Pascal, a isso ninguém os obrigava...
A imagem do Papa sozinho numa Praça de São Pedro vazia pareceu-lhe uma boa imagem?
Não, pareceu-me uma imagem que significava um alinhamento da espiritualidade com o higienismo. Acho que não foi um bom exemplo. Contribuiu para o medo. Contribuiu para esse manto de medo que caiu sobre o mundo. É complicado, isso da exemplaridade. Porque funciona nos dois sentidos. Quando Trump ou Bolsonaro andam sem máscara dão maus exemplos, porque a mensagem é “não há epidemia”. E isso é criminoso, porque há uma epidemia. Portanto, não usar máscara dava um sinal negativo; mas termos o Sumo Pontífice sozinho na Praça de São Pedro foi um mau sinal no outro sentido, no sentido do pânico colectivo. Quando vier a próxima epidemia, porque haverá outras, espero que nos lembremos dos excessos, dos erros cometidos, das medidas brutais, da ausência de sabedoria, da demissão dos políticos, da falta de autoridade dos médicos. É preciso que não nos esqueçamos disto.
O que é que o distanciamento faz de nós enquanto animais sociais? O teletrabalho, por exemplo. Falamos há pouco de “mudar tudo”, mas há coisas que podem mudar para pior se ficarmos mais distantes uns dos outros...
A democracia é o desfazer do distanciamento social. O trabalho tem aspectos negativos, mas também tem aspectos bons, é assim que nasce a fraternidade, o sentido do que é comum. O trabalho à distância é a solidão, o tédio, a mistura do privado com o público, a ideia de que não há esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem eletrônica dos empregados pelos patrões. Eu acredito muito na escola, na sala de aula. É importante porque contribui para a igualdade, para que as crianças que não vivem num meio privilegiado escapem um pouco a esse infortúnio. A generalização do home schooling não vai no bom sentido. Não é preciso ser um grande freudiano ou lacaniano para saber que o meio mais patogênico que há é o meio familiar. A família é uma árvore da felicidade mas é também um ninho de neuroses. Os portugueses ou franceses de amanhã que forem educados em home schooling vão sofrer de uma epidemia de neuroses, da falta de hábitos sociais, de uma falta de imunidade ao mundo verdadeiramente preocupante. A escola tem o grande mérito de ser uma fábrica de defesas imunitárias face a vírus como a guerra de todos contra todos, a competição, a concorrência. Esta explosão do número de crianças a estudar em casa vai lançá-las depois no mundo verdadeiro que não é um mundo asséptico. E estarão desarmadas. Tudo isso, o teletrabalho, o tele-ensino...
O telessexo?
O telessexo, que julgávamos reservado aos romances de Michel Houellebecq... Se isso for o mundo de depois, eu prefiro o mundo de antes.
Este livro ilustra bem as ligações entre a dimensão filosófica e a dimensão jornalística da sua obra. Jornalística porque para falar de um país, mesmo que seja um país distante, gosta de ir lá, de falar do que conhece. Filosófica porque defende que não somos nada quando estamos sozinhos, e que a solidão é o contrário da política, que implica estar com os outros.
Filosoficamente, o que eu penso é que é preciso tratar aqueles que estão distantes como próximos. É preciso recusar, na medida do possível, essa distinção entre o distante e o próximo. Jean-Marie Le Pen costumava perguntar “como é possível não me sentir mais próximo dos meus filhos do que dos meus sobrinhos, dos meus sobrinhos do que dos meus vizinhos, dos meus vizinhos do que dos estrangeiros”. Eu creio que é preciso obrigarmo-nos a atenuar o mais possível essa distância. É a mensagem das grandes tradições sapienciais, a grega, a judaica, a cristã: a fraternidade. Acredito nisso, e por isso sempre acompanhei a minha atividade filosófica de uma atividade de reportagem, um pouco à imagem do que fez Michel Foucault (ou até Sartre), que considerava a reportagem um exercício filosófico maior. Eu acredito nisso. Uma parte da minha obra, na qual trabalho com o mesmo empenho com que escrevo os livros de filosofia, são as reportagens que fiz. Tenho orgulho nelas, não são um aspecto circunstancial ou marginal. Quanto à solidão, a solidão pode ser uma conquista do sujeito, mas não pode ser uma coisa que a política programa.
Por isso diz que Pascal é em geral mal interpretado quando fala de ficarmos no nosso quarto...
É isso. Porque não é ao Estado que compete organizar a solidão. Se eu quiser a solidão, escolho os momentos em que quero estar sozinho, isso não compete ao Estado. Caso contrário, vivemos numa ditadura. As ditaduras funcionam todas num falso colectivo e numa verdadeira solidão. Cada pessoa atomizada, isolada à força, e a imagem de um colectivo que não existe. A democracia deve organizar o colectivo e deixar aos sujeitos a tarefa de conquistar a sua solidão.
Vai voltar às reportagens?
Nunca cheguei a parar. Até ao último minuto, até ao dia em que todos as fronteiras francesas foram fechadas, continuei. A última reportagem que fiz foi no Bangladesh. E a primeira que fiz desde que soube que um aeroporto vizinho, o de Bruxelas, reabriu, foi em Lesbos, uma reportagem num campo de refugiados. Portanto, nunca parei.

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