Bernard-Henri Lévy: “É preciso acabar com o discurso do medo”
O
famoso filósofo francês esteve na redação do Expresso para falar do seu mais
recente livro “Este Vírus Que Nos Enlouquece” que acaba de ser publicado em
Portugal. É um ensaio sobre estes tempos estranhos em que vivemos e uma crítica
exasperada à maneira como enfrentamos a pandemia
Pedro Mexia
Revista do Expresso, 25/07/2020
Apertar a mão ou não apertar, eis a questão. Numa das
suas colunas da revista “Le Point”, Bernard-Henri Lévy tinha-se insurgido
contra o fim do aperto de mão, mesmo em tempos de pandemia. Como cumprimentá-lo
agora? A questão resolve-se quando B.H.L., como é conhecido, estende a mão a
todos os que o vieram receber à entrada do Expresso. Improvável septuagenário,
elegante e descontraído, Lévy esteve em Portugal para promover a tradução do
recentíssimo “Este Vírus Que Nos Enlouquece” (edição Guerra & Paz), breve
ensaio bastante mais “libertário” do que “securitário”. É um texto
belicosamente hostil à linguagem da “guerra”, do medo, do distanciamento,
formas de servidão voluntária que estão no extremo oposto da imagem de um
B.H.L. cosmopolita, viajado, mediático, polêmico. E é também um ato de
indignação contra os indignados, contra os que viram na covid uma intenção, um
castigo, uma mensagem. De modo que nada escapa a esta crítica exasperada à
maneira como enfrentamos a pandemia: nem os aplausos à varanda nem os diários
do confinamento, nem Fauci nem o Papa.
Este livro não é sobre o vírus mas sobre o discurso
acerca do vírus, o “vírus discursivo”. O que mais o impressionou nesse
discurso?
Isso é importante porque não se trata do livro de um
médico, mas do livro de um filósofo. É um livro que parte do princípio de que
uma epidemia é um fenômeno social tanto quanto um fenômeno médico. E uso mesmo
aquela fórmula do grande anatomo-patologista Rudolf Virchow que disse que o
vírus é um fenômeno social que comporta alguns aspectos sanitários. São os
aspectos sociais que me interessam, é um livro de um semiótico, de um analista
do discurso. O que me interessa é o que se diz, é a maneira como as sociedades
foram governadas nos últimos meses, é o modo de governamentalidade que apareceu
por causa da pandemia. O meu tema é esse. Não é o vírus, até porque os médicos
não sabem muito sobre o vírus e porque não sou médico. Em contrapartida, sobre
a linguagem totalitária e democrática, sobre a semiótica e a análise do
discurso, aí tenho algum ouvido. E foi com esse ouvido que escrevi este livro.
Há desde logo questões de linguagem, como o uso do
termo “guerra”...
Isso já me exaspera. Começamos logo mal. Faço parte
das pessoas que conhecem um pouco o que é a guerra. E não é isto. O vírus não é
um inimigo invisível, os médicos e os enfermeiros não são combatentes da frente
de batalha, as pessoas que ficaram em casa não são reservistas nem tropas de
retaguarda. Essa militarização do discurso sobre o vírus foi uma falsa pista
que conduziu inevitavelmente a um mau resultado. Bem sei que o Presidente
francês foi um dos primeiros a usarem esse termo, mas eu discordo da palavra. O
vírus não é um inimigo nem um inimigo invisível, é um vírus. Há qualquer coisa
de medieval nessa maneira de pensar nas coisas em termos de guerra...
Mas não é uma linguagem, digamos, aproximativa, como
quando se diz “a guerra contra a droga”?
A guerra contra a droga é diferente, porque os cartéis
da droga estão organizados como exércitos. Mas detrás de um vírus não há uma
vontade, não há uma estratégia nem um exército. E como para mim o grande erro
face a esta pandemia foi justamente o de emprestar ao vírus uma intenção, uma
vontade, como se ele estivesse a dar-nos uma mensagem, um aviso, julgo que o
que está na raiz de todas esses erros é ver o vírus como um inimigo. O discurso
da guerra, como dizia o meu camarada André Glucksmann, é particularmente
“mal-vindo”.
Muita gente criticou o discurso do medo. Mas não é
normal termos medo de uma doença potencialmente mortal e ainda desconhecida?
Eu não critico o medo. Constato-o. E constato também
que contrariamente à ansiedade, para falar de forma freudiana, que é um alarme
e que ajuda a agir, o medo é paralisante, impede a ação. É normal ter medo
desta doença? É. Mas não mais do que de outras doenças mortais. O vírus é
mortal em poucos casos, menos do que outros vírus, menos do que doença
terríveis e incuráveis como o cancro. Portanto, o medo foi excessivo, havia uma
parte desse medo irracional, insensata. E ao medo irracional chama-se pânico,
cujos efeitos sociais não são bons.
Uma das causas do medo tem que ver com não sabermos
como se comporta a doença. Fomos recebendo informações muito diferentes sobre
usar ou não usar máscara, sobre a forma de contágio… Não é um vírus que já conhecemos,
como a sida.
Mas levamos dez ou 20 anos a conhecer. Nos anos 80 não
sabíamos nada. Diziam-se muitos disparates sobre a sida, como agora sobre a
pandemia. Que era uma doença que afetava apenas uma categoria de pessoas. E
não era verdade. Até à geração dos meus pais, também se sabia muito pouco sobre
o cancro. E mesmo hoje uma parte da lógica do cancro continua opaca. Este vírus
não é mais opaco nem mais enigmático do que o cancro.
Nesta pandemia muita gente tem atribuído “intenções” à
natureza…
Acho que estamos numa época particularmente moralista,
que faz de tudo uma questão moral, que culpabiliza tudo e todos. E esse
espírito do tempo apropriou-se deste vírus. O espírito do tempo tem uma
vontade, mas o vírus não tem. E esse espírito investiu o vírus de uma energia
punitiva. Estamos num momento em que, à direita como à esquerda, há um clima a
que Nietzsche chamava “moralina”.
É um regresso a uma linguagem e a um pensamento
religiosos? Em Portugal, no tempo do terramoto de 1755, houve quem falasse de
castigo divino.
É a mesma coisa. Conheço a literatura do terramoto de
Lisboa, conheço as prédicas e a literatura popular do tempo da peste negra, é o
mesmo discurso. Podemos ser muito sábios, ter laboratórios com tecnologias de
ponta, ótimos hospitais, mas na nossa cabeça estamos ainda no tempo do
terramoto de Lisboa ou da peste negra. Pensamento mágico, vingança da natureza,
os deuses estão zangados, os homens pecaram e estão a ser castigados. O modelo
de confinamento tem duas fontes. A fonte moderna é a China, é Wuhan. A fonte
antiga vem das cidades do século XIV no tempo da peste negra. É o que escreveu
Michel Foucault quando distinguiu o modelo das leprosarias (excomungam-se os
doentes, metem-se numa ilha, fecha-se a ilha) e o modelo do confinamento para a
peste (pede-se a todos que se fechem em casa e às famílias que vigiem os
sintomas). É o regresso disso. Estamos no século XIV. Estamos no “Decameron”,
de Bocaccio, nas casas secundárias de Sintra ou de Deauville, como os jovens
que iam para as colinas de Fiesole enquanto se morria em Florença. Os
conservadores podem ficar reconfortados, mas os optimistas, como eu, acham isso
inquietante. Com todos os especialistas que temos e a cultura das liberdades
podíamos ter encontrado uma resposta mais inteligente.
Os antigos pecados eram a heresia ou a imoralidade, os
novos pecados são a globalização e o capitalismo. É uma forma moral de falar de
política?
É uma forma moral e sobretudo idiota, absurda. Quando
houve epidemias de cólera, de varíola, não havia globalização, que eu saiba.
Mas agora, se acabarmos por reagir de forma mais inteligente é por causa de
vacinas e de medicamentos, e se os tivermos mais rapidamente será por causa da
globalização. A globalização do conhecimento, dos laboratórios, a troca de
informação, até a competição. O ritmo de descoberta das vacinas é em geral de
dez anos, mas é provável que desta vez seja mais rápido, graças à globalização.
Se temos máscaras, como as que nos deram à entrada deste edifício, foi graças à
globalização. A máscara é um pedaço de pano que podemos fazer em Lisboa ou em
Paris, mas o elástico vem do cauchu africano e asiático. A globalização é
o pharmakon grego. Pode contribuir para o mal, mas
contribui muito para o remédio.
Para algumas pessoas a pandemia é como que uma
“surpresa divina”. Por isso se diz que agora temos de “mudar tudo”. Como reage
a essa injunção?
Acho isso repugnante. Desprezo quem se aproveita da
morte, quem tira vantagem de um drama humano para fazer avançar a sua agenda, a
sua ideologia, o seu programa. É de uma grande crueldade e de uma enorme
violência. Falo no livro da “surpresa divina”, que foi a expressão dos
maurrassianos [nacionalistas franceses, adeptos de Charles Maurras] aquando da
derrota francesa [em 1940]. Há esta tradição de tirar partido de um desastre. E
houve quem o dissesse abertamente. Houve gente da ecologia radical que disse abertamente:
vamos “aproveitar” isto. Disseram essa palavra. Não vamos deixar passar a
ocasião que este desastre nos oferece...
A pandemia levou a que se citasse muito as teses de
grandes filósofos e pensadores, do “vigiar e punir” de Foucault ao “estado de
excepção” de Carl Schmitt. Usamos demasiado esses conceitos?
Acho que isso se fez de menos. Em Portugal, o debate
sobre o confinamento era tabu, segundo sei. Aliás, como em França. Quem
pretendesse, em nome de Foucault ou do Papa, tanto faz, interrogar o estado de
excepção, o risco para as liberdades, era tratado como um mau cidadão. Mas
também havia outros problemas, como a virtualização das relações sociais, a
ruptura da solidariedade, o triunfo do egoísmo social, o distanciamento social
(essa expressão atroz). Um dos principais objetivos da democracia é reduzir o
distanciamento social, o distanciamento entre as classes, o distanciamento
entre os poderosos e os humildes, entre os governantes e os governados. Não é
uma coisa boa, o distanciamento social. Mas havia qualquer coisa nova nessa
maneira de a defender ou de a aceitar sem crítica. Eu tive um pressentimento
disso quando ouvi o doutor Fauci, chefe da task force de
Trump, dizer que não voltaríamos a apertar a mão uns aos outros.
E por isso escreveu na “Le Point” um artigo zangado
contra “o fim do aperto de mão”, o aperto de mão que é símbolo de contrato, de
paz...
É um símbolo enorme. Um pequeno gesto com grande
significado. É um gesto que até há pouco nos parecia quase automático, e que
continua a ser para alguns de nós, porque representa tudo o que há de bom no
pacto social. Num pacto social há uma parte maldita e há uma parte abençoada. A
parte abençoada é a confiança, olharmo-nos no olhos, não nos pormos de joelhos
perante o outro. E o aperto de mão. Esses pequenos sinais de alarme
preocupam-me.
Outras questões não serão tão novas. Há muito que
havia pessoas preocupadas com a vigilância e com a privacidade, isso não
começou agora.
Tem razão.
Mas agora é o Estado...
... é o Estado aliado às grandes empresas
tecnológicas. E às famílias. Há muita gente que se aproveita desse levantamento
do segredo sobre as nossas vidas. Antes eram os GAFA [acrônimo para Google,
Amazon, Facebook, Apple], agora são os GAFA mais o Estado, mais as pessoas que
nos rodeiam... Se essas três forças se juntam, acabou-se a nossa liberdade,
quer dizer, aquela porção de segredo do qual somos todos depositários. Somos
pessoas livres na exata proporção da quantidade de vida privada e da
quantidade de segredo de que somos detentores. Um sujeito livre é um icebergue
onde há gestos, responsabilidades, decisões visíveis; mas o que dá à liberdade
o seu fundamento e a sua gravidade é essa parte de nós que escapa ao controlo
seja de quem for. À Amazon, ao Estado, à nossa família.
O clima de pânico fez até com que houvesse pessoas que
denunciavam os vizinhos...
Naturalmente. Quando se aplaudiam os profissionais de
saúde à varanda era uma bela imagem, e eu também aplaudi, mas não me posso
esquecer que da mesma varanda espiavam-se os vizinhos, telefonava-se à polícia
para dizer que eles tinham ido duas vezes ao supermercado ou que estavam num
ajuntamento ilegal de cinco pessoas no prédio em frente. Eram as mesmas
pessoas, a mesma varanda, com dez minutos de intervalo. Houve lampejos de
solidariedade mas que não podem fazer esquecer a explosão de egoísmo, de
fechamento, de ódio ao outro, de maldade.
Falou de Foucault e do doutor Fauci e queria ouvi-lo
sobre o “poder médico”. Ao mesmo tempo que alguns políticos nos diziam que iam
decidir de acordo com os médicos e os cientistas, muitos médicos e cientistas
diziam que não sabiam grande coisa. Tratamos os especialistas como se fossem
deuses, mas eles são os primeiros a reconhecer que o vírus é novo, que tem
mutações que ainda não conhecemos...
Tratamo-los como oráculos. O oráculo de Delfos falava
pela boca do dr. Fulano. E, tem razão, os melhores de entre eles, os mais
probos, não querem desempenhar esse papel, porque sabem bem que não é o seu
papel. Sabem bem que se assumirem esse papel praticam um abuso de autoridade.
Sabem bem que a ciência avança no nevoeiro, que o nevoeiro é por vezes muito
denso, que muitas vezes caímos, sabem isso tudo, os médicos. Sabem que não são
os detentores da verdade. E que a verdade é um processo longo, cheio de
dificuldades.
Embora saibamos isso, quem mais podemos ouvir, perante
uma doença, senão os cientistas, os especialistas, os médicos?
Se voltarmos ao princípio desta conversa, à ideia de
que a epidemia é um fenômeno social tanto quanto médico, estão era preciso
ouvir muito mais gente. Os pedagogos, os professores, os pais, os sindicatos,
as associações de vítimas de violência doméstica, psiquiatras, empresários,
muita gente. Porquê ouvir apenas os médicos? Porquê essa idolatria da palavra
dos médicos quando havia tantas outras opiniões que era preciso ouvir? Sabemos
hoje que muita gente morreu de solidão. Sabemos que a violência conjugal
disparou. Sabemos que o número de pessoas que vão morrer de fome duplicou ou
quadruplicou. Sabemos tudo isso.
E como vê o retorno das ideias de higienismo, de
darwinismo social, a ideia de que os velhos podem ser deixados para trás...?
Há quem diga isso dos velhos, mas não é só os velhos.
Há quem diga que a pandemia foi uma boa ocasião para parar o curso da
globalização, para carregar no interruptor. E não podemos ignorar que para os
mais fracos isso seria terrível. Carregar no interruptor é deixar morrer
milhões de pessoas. Os velhos, os fracos, os desmunidos, os sem-abrigo, as
pessoas a quem disseram que fossem para casa e que não têm casa para onde ir.
Há um regresso do malthusianismo... Acho bem que se viva com mais sobriedade,
que se consuma menos, que se pense duas vezes antes de apanhar um avião. Sou um
velho leitor de Ivan Illich e de Carlos Castaneda, tudo isso influenciou a
minha juventude. Mas a sobriedade, a frugalidade e o decrescimento
organizam-se, não se decretam. Isso é experimentalismo social. Malthus, Darwin,
tudo isso veio à baila nesta pandemia.
Um pouco por todo o lado discutiu-se a pandemia em
termos de uma escolha entre a saúde e a economia.
Acho isso ignóbil. É pior ainda: é a economia ou a
vida. A bolsa ou a vida. Voltamos a essa velha máxima dos salteadores de
estrada. É ignóbil. Porque a economia também é a vida. É a vida contra a vida.
Sabemos bem que se pararmos a economia durante demasiado tempo isso leva ao
desemprego, que o desemprego leva à miséria, e que a miséria leva à morte.
Portanto, não é a economia ou a vida. É a vida contra a vida. Aliás, a epidemia
não acabou, o torpor e a paralisia da sociedade não acabou. Portugal, tal como
a França, decidiu desconfinar, mas Lisboa está desconfinada? Não está, conheço
esta cidade, gosto dela, e vejo bem a atmosfera pesada, o clima de tristeza e
de medo. As pessoas mais lúcidas, que sabem mais sobre a epidemia, têm de
falar, de dizer que a epidemia não terminou mas que está controlada, que o
risco de uma segunda vaga é fraco, que há capacidade hospitalar para uma
segunda vaga. É preciso acabar com o discurso do medo.
Já falou da literatura, do “Decameron”. Durante a
pandemia houve uns quantos escritores franceses que publicaram na imprensa
diários do confinamento onde falavam sobre o silêncio e os pássaros e onde
citavam Pascal e a ideia de que todo o mal vem de sairmos do nosso quarto. É a
consolação da literatura ou um abuso da literatura?
Não é uma consolação, é uma provocação. Porque essa
história do canto dos pássaros e da natureza que recupera os seus direitos e do
céu azul, eu li isso com os olhos de um refugiado de Lesbos ou de um sem-abrigo
de Dacar. E perante essas pessoas, esse discurso ‘bobo’ [bourgeois bohême,
burguês-boêmio] é obsceno. É má literatura. Acho que houve um grande desplante
desses escritores que se reclamaram como herdeiros da grande literatura.
Algumas pessoas comportavam-se como se o mundo lá fora
não existisse, como se a guerra não existisse, como se o sofrimento do mundo
não existisse?
Absolutamente. O próprio “confinamento”... O que me
impressionou foi o modo como as pessoas aceitaram esse termo, confinamento.
Para os italianos, “confinamento” é uma palavra fascista. Os antifascistas eram
“confinados” em ilhas ou noutros sítios. E no confinamento há a ideia de nos
fecharmos numa bolha auto-suficiente, com poucas janelas para o exterior. O
exterior pode estoirar que isso não tem importância.
No seu livro fala de Levinas e do pensamento judaico.
Muitas pessoas têm notado, com alegria ou com tristeza, que as religiões não
tiveram um discurso propriamente religioso face à pandemia, limitaram-se a
seguir as indicações da medicina. Como vê essa espécie de afasia da religião?
Foi uma das coisas que me surpreenderam. Quando li que
o Papa Francisco mandou esvaziar as pias de água benta com medo que estivessem
contaminadas pelo vírus, quando vi que os rabinos faziam o elogio do
confinamento, pensei que havia alguma coisa errada no que toca à
espiritualidade. Do ponto de vista médico, eu também respeitei a disciplina,
aceitei-a com extrema dificuldade, porque ia contra a minha maneira de ser, mas
aceitei. Mas o que me surpreendeu foi a teorização à volta disso. Que nos
sujeitemos provisoriamente ao confinamento, sabendo que é um momento em que é
preciso alguma firmeza, é uma coisa; mas que nos tentem impingir teorias sobre
a espiritualidade do confinamento e sobre Pascal, a isso ninguém os obrigava...
A imagem do Papa sozinho numa Praça de São Pedro vazia
pareceu-lhe uma boa imagem?
Não, pareceu-me uma imagem que significava um
alinhamento da espiritualidade com o higienismo. Acho que não foi um bom
exemplo. Contribuiu para o medo. Contribuiu para esse manto de medo que caiu
sobre o mundo. É complicado, isso da exemplaridade. Porque funciona nos dois
sentidos. Quando Trump ou Bolsonaro andam sem máscara dão maus exemplos, porque
a mensagem é “não há epidemia”. E isso é criminoso, porque há uma epidemia.
Portanto, não usar máscara dava um sinal negativo; mas termos o Sumo Pontífice
sozinho na Praça de São Pedro foi um mau sinal no outro sentido, no sentido do
pânico colectivo. Quando vier a próxima epidemia, porque haverá outras, espero
que nos lembremos dos excessos, dos erros cometidos, das medidas brutais, da
ausência de sabedoria, da demissão dos políticos, da falta de autoridade dos
médicos. É preciso que não nos esqueçamos disto.
O que é que o distanciamento faz de nós enquanto
animais sociais? O teletrabalho, por exemplo. Falamos há pouco de “mudar tudo”,
mas há coisas que podem mudar para pior se ficarmos mais distantes uns dos
outros...
A democracia é o desfazer do distanciamento social. O
trabalho tem aspectos negativos, mas também tem aspectos bons, é assim que
nasce a fraternidade, o sentido do que é comum. O trabalho à distância é a
solidão, o tédio, a mistura do privado com o público, a ideia de que não há
esfera privada fora do imperativo produtivo, é o produtivismo, é a espionagem
eletrônica dos empregados pelos patrões. Eu acredito muito na escola, na sala
de aula. É importante porque contribui para a igualdade, para que as crianças
que não vivem num meio privilegiado escapem um pouco a esse infortúnio. A
generalização do home schooling não vai no bom
sentido. Não é preciso ser um grande freudiano ou lacaniano para saber que o
meio mais patogênico que há é o meio familiar. A família é uma árvore da
felicidade mas é também um ninho de neuroses. Os portugueses ou franceses de
amanhã que forem educados em home schooling vão
sofrer de uma epidemia de neuroses, da falta de hábitos sociais, de uma falta
de imunidade ao mundo verdadeiramente preocupante. A escola tem o grande mérito
de ser uma fábrica de defesas imunitárias face a vírus como a guerra de todos
contra todos, a competição, a concorrência. Esta explosão do número de crianças
a estudar em casa vai lançá-las depois no mundo verdadeiro que não é um mundo
asséptico. E estarão desarmadas. Tudo isso, o teletrabalho, o tele-ensino...
O telessexo?
O telessexo, que julgávamos reservado aos romances de
Michel Houellebecq... Se isso for o mundo de depois, eu prefiro o mundo de
antes.
Este livro ilustra bem as ligações entre a dimensão
filosófica e a dimensão jornalística da sua obra. Jornalística porque para
falar de um país, mesmo que seja um país distante, gosta de ir lá, de falar do
que conhece. Filosófica porque defende que não somos nada quando estamos
sozinhos, e que a solidão é o contrário da política, que implica estar com os
outros.
Filosoficamente, o que eu penso é que é preciso tratar
aqueles que estão distantes como próximos. É preciso recusar, na medida do
possível, essa distinção entre o distante e o próximo. Jean-Marie Le Pen
costumava perguntar “como é possível não me sentir mais próximo dos meus filhos
do que dos meus sobrinhos, dos meus sobrinhos do que dos meus vizinhos, dos
meus vizinhos do que dos estrangeiros”. Eu creio que é preciso obrigarmo-nos a
atenuar o mais possível essa distância. É a mensagem das grandes tradições
sapienciais, a grega, a judaica, a cristã: a fraternidade. Acredito nisso, e
por isso sempre acompanhei a minha atividade filosófica de uma atividade de
reportagem, um pouco à imagem do que fez Michel Foucault (ou até Sartre), que
considerava a reportagem um exercício filosófico maior. Eu acredito nisso. Uma
parte da minha obra, na qual trabalho com o mesmo empenho com que escrevo os
livros de filosofia, são as reportagens que fiz. Tenho orgulho nelas, não são
um aspecto circunstancial ou marginal. Quanto à solidão, a solidão pode ser uma
conquista do sujeito, mas não pode ser uma coisa que a política programa.
Por isso diz que Pascal é em geral mal interpretado
quando fala de ficarmos no nosso quarto...
É isso. Porque não é ao Estado que compete organizar a
solidão. Se eu quiser a solidão, escolho os momentos em que quero estar
sozinho, isso não compete ao Estado. Caso contrário, vivemos numa ditadura. As
ditaduras funcionam todas num falso colectivo e numa verdadeira solidão. Cada
pessoa atomizada, isolada à força, e a imagem de um colectivo que não existe. A
democracia deve organizar o colectivo e deixar aos sujeitos a tarefa de
conquistar a sua solidão.
Vai voltar às reportagens?
Nunca cheguei a parar. Até ao último minuto, até ao
dia em que todos as fronteiras francesas foram fechadas, continuei. A última
reportagem que fiz foi no Bangladesh. E a primeira que fiz desde que soube que
um aeroporto vizinho, o de Bruxelas, reabriu, foi em Lesbos, uma reportagem num
campo de refugiados. Portanto, nunca parei.
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