Europa revê passado escravagista, derruba estátuas e muda nomes de locais
A Suíça nunca teve escravos africanos. Não tem acesso ao mar e jamais teve colônias. Ainda assim, na pacata Neuchatel, uma estátua chama a atenção por sua placa. Nela, as autoridades apontam que os cidadãos locais agradecem e reconhecem os benefícios deixados por um certo David de Pury. Na placa, Pury é descrito apenas como um homem que teve sua "fortuna adquirida no comércio". A estátua está situada num dos locais mais nobres da cidade, justamente na Praça de Pury. Pury foi um dos principais atores do financiamento do tráfico de escravos entre 1761 e 1786. Filho de uma família que possuía escravos na Carolina do Sul (EUA), ele primeiro se especializaria no comércio de diamantes brasileiros. Logo passaria a integrar a South Sea Company, empresa com sede em Londres e que, durante sua existência, transportou 65 mil escravos da África para as Américas.
Para ler o texto de Jamil Chade clique aqui
Leia "Tensões aumentam com a raça e a herança, à medida que mais estátuas são atacadas" de Nazia Parveen, Robert Tait, Dan Sabbagh e Vik Ramdodd clicando aqui
Leia "As estátuas também morrem" de Angélica Ferrarez de Almeida clicando aqui
A má sorte do Columba
livia
Ricardo Marques
A estátua, por maior que seja, é um bicho fácil de caçar.
A sua
principal fraqueza é estar permanentemente num estado de imobilidade
absoluta. E apesar de não emitir qualquer som, capaz
por exemplo de alertar outras estátuas em caso de perigo, a estátua comum é capaz de contar
a mesma história durante vários séculos.
A coisa não muda. A pessoa passa na segunda-feira e é assim. Vai lá volvidos
vinte anos e assim é. Passam mil anos e está na mesma. Calada,
mas sempre a dizer o mesmo. O problema - da estátua, claro - é que as pessoas mudam
e com elas muda aquilo que ouvem. O que soava bem passa a soar
mal. E como é impossível mudar o passado, o que resta é tentar mudar a cara
que ele tem no presente.
Estamos a viver um desses momentos, e por isso mesmo
não sabemos ainda se é uma coisa passageira ou o tiro de partida para algo
maior e de consequências imprevisíveis. O tempo o dirá, mas não
se admire se a discussão começar a subir de tom nos próximos dias. É o tipo de assunto a que
ninguém fica indiferente, ainda que a indiferença
generalizada seja a sina de muitas estátuas.
Esta semana, em plena vaga crescente de protestos contra a morte
de George Floyd às mãos da polícia, Cristóvão Colombo foi ver o fundo de um lago no estado americano da Virginia,
foi atirado
ao chão no Minnesota e ficou sem a cabeça em Boston. Várias estátuas
de figuras ligadas à escravatura nos EUA foram destruídas ou vandalizadas.
Nem a rainha Vitória escapou à fúria da tinta.
Na verdade, nem o rei Leopoldo.
Um pouco por toda a América, e não só, há estados e cidades a encaminharem
para os respetivos armazéns estátuas de figuras ligadas ao colonialismo, ao
racismo e à escravatura. A democrata Nancy Pelosi,
presidente da Câmara dos Representantes, pediu a retirada de todas as estátua de confederados do Capitólio
(são 11). Há outras tantas bases militares com nomes de generais confederados
e Donald Trump já fez saber que não aceita qualquer mudança
de nome.
Há séries de televisão ameaçadas, filmes
que precisam de contexto, bandas
de música que mudam de nome …
E ontem, em Lisboa, a estátua do Padre António Vieira, no Largo
Trindade Coelho, foi vandalizada com tinta vermelha. O líder do
CDS comparou o ato a uma ação do estado islâmico. Francisco Rodrigues dos
Santos prometeu limpar o monumento com as próprias mãos - mas a Câmara
Municipal já se antecipou. (Eu avisei que isto ia
aquecer, mas nunca pensei que demorasse só cinco parágrafos…)
A verdade é que quem faz uma estátua, fá-la a pensar na eternidade.
Mas esse é um privilégio da pedra e do ferro, não dos homens. As mãos que
constroem figuras capazes de viver para sempre desaparecem ao
fim de uns anos, e raramente vivem tempo suficiente para
perceber que as estátuas também morrem. Se há algo que a história nos ensina é que nenhuma está a salvo,
e que por cada uma que cai logo outra se levanta. Eis outra
lição: os pedestais dão-se mal com o vazio.
Não sei se há alguma estátua de Johann Friedrich Gmelin
perdida pelo mundo. Devia haver. Afinal, Gmelin foi o primeiro, em 1789, a
descrever cientificamente um outro bicho, o Columba
livia. Talvez o conheça por pombo-comum, esse rato alado
eternamente alheado do complicado mundo cá embaixo, mas que é
sempre a vítima mais improvável quando os homens, empurrados pelos ventos
demasiado fortes da história, decidem que é hora de ajustar contas com o tempo passado.
Fonte: Aqui
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