"Escuta, Amor" - José Luís Peixoto
Escuta, Amor
Quando damos as mãos, somos um barco feito de
oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao oceano pelo próprio oceano.
Pode estar toda a espécie de tempo, o céu pode estar limpo, verão e vozes de
crianças, o céu pode segurar nuvens e chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser
de noite, mas, sempre que damos as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do
mundo. Se preferires uma imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a
crescerem muito lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz
todo o sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou aí.
Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se. Os nossos
corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham para os nossos
corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos nos refletem. Tu és
aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo que sei. Mesmo quando não
estavas lá, mesmo quando eu não estava lá, aprendíamos o suficiente para o
instante em que nos encontramos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa volta
quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e o teu
rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites metafóricas e
pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem entendimento a essa
certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras pessoas no mundo. Eu e tu
declaramos o fim de todas as fronteiras e inseparámo-nos. Agora, somos uma
única rocha, uma única a montanha, somos uma gota que cai eternamente do céu,
somos um fruto, somos uma casa, um mundo completo. Existem guerras dentro do
nosso corpo, existem séculos e dinastias, existe toda uma história que pode ser
contada sob múltiplas perspectivas, analisada e narrada em volumes de
bibliotecas infinitas. Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo,
procuram e encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós,
cidades inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que
levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo, populações que
emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos despercebidos, uma
criança que nasce, um velho que morre. Dentro de nós, existe tudo aquilo que existe
em simultâneo em todas as partes.
Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer aquilo que
foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para existir com a forma de
palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que são necessárias as palavras?
Eu sei que entendes o que não sei dizer. Repito: eu sei que entendes o que não
sei dizer. Essa certeza é feita de vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas
um pedaço do vento dentro do vento, somos o vento todo.
Escuta,
ouve.
Amor.
Amor.
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