Na prática, ministros do STF agridem a democracia, escreve professor da USP
Na prática, ministros do STF agridem a democracia, escreve
professor da USP
CONRADO HÜBNER MENDES
ilustração JOÃO MONTANARO
28/01/2018
RESUMO Professor de direito constitucional da USP faz duras críticas ao
STF. Afirma que a corte, numa espiral de autodegradação,
passou de poder moderador a poder tensionador, que multiplica incertezas e
acirra conflitos. Explicações para isso se encontram na atuação dos ministros e
no desarranjo de ritos e procedimentos.
O Supremo Tribunal Federal é protagonista de uma democracia em
desencanto. Os lances mais sintomáticos da recente degeneração da política
brasileira passam por ali. A corte está em dívida com muitas perguntas, novas e
velhas, e vale lembrar algumas delas antes que os tribunais voltem do descanso
anual nos próximos dias.
Se Delcídio do Amaral (PT-MS), Eduardo Cunha (MDB-RJ), Renan
Calheiros (MDB-AL) e Aécio Neves (PSDB-MG) detinham as mesmas prerrogativas
parlamentares, por que, diante das evidências de crime, receberam tratamento
diverso?
Se houve desvio de finalidade no ato da presidente Dilma Rousseff
(PT) em nomear Lula (PT) como ministro, por que não teria havido o mesmo na
conversão, pelo presidente Michel Temer (MDB), de Moreira Franco (MDB) em
ministro?
Se o STF autorizou a prisão após condenação em segunda instância, por que ministros continuam
a conceder habeas corpus contra a orientação do plenário, como se o precedente
não existisse?
Se a restrição ao foro privilegiado já tem oito votos favoráveis, pode um
ministro pedir vista sob alegação de que o Congresso se manifestará a respeito?
Pode ignorar o prazo para devolução do processo?
Se lá chegam tantos casos centrais da agenda do país, como pode um
magistrado, sozinho, manipular a pauta pública ao seu sabor (por meio de
pedidos de vista, de liminares engavetadas etc.)?
Se o auxílio-moradia para juízes, criado em 2014, custa ao país mais
de R$ 1 bilhão por ano, como pôde um ministro impedir que o plenário se
manifestasse até aqui? Se a criminalização do porte de drogas responde por
grande parte do encarceramento em massa brasileiro, como pode um pedido de
vista interromper, por anos, um caso que atenuaria o colapso humanitário das
prisões?
Se um ministro afirma que Ricardo Lewandowski "não passa na
prova dos 9 do jardim de infância do direito constitucional", que Luís
Roberto Barroso tem moral "muito baixinha", que Marco Aurélio é
"velhaco", que Luiz Fux inventou o "AI-5 do Judiciário",
que Rodrigo Janot é "delinquente" e que Deltan Dallagnol é
"cretino absoluto", e além disso tem amigos espalhados entre o
empresariado e a classe política julgados pelo STF, como expressará isenção
nesses casos?
Se a Lei Orgânica da Magistratura proíbe juízes de se manifestarem
sobre casos da pauta, como podem ministros antecipar posições a todo momento
nos jornais?
A lista de perguntas poderia seguir, mas já basta para notar o que
importa: as respostas terão menos relação com o direito e com a Constituição do
que com inclinações políticas, fidelidades corporativistas, afinidades afetivas
e autointeresse.
O fio narrativo, portanto, pede a arte de um romancista, não a
análise de um jurista. Ao se prestar a folhetim político, o STF abdica de seu papel
constitucional e ataca o projeto de democracia.
CHOQUE DE REALIDADE
A separação de Poderes conferiu lugar peculiar ao Supremo. O
Parlamento é eleito, o STF não. O parlamentar pode ser cobrado e punido por
seus eleitores, os ministros do STF não. O presidente da República é eleito e
costuma ser o primeiro alvo das ruas, os membros do STF estão longe disso. A
corte suprema tem o poder de revogar decisões de representantes eleitos.
É um tribunal que se autorregula e não responde a ninguém. O que
justifica tanto poder e a imunização contra canais democráticos de controle?
Há boas respostas teóricas para esse arranjo. Para alguns, a
integridade constitucional depende de um órgão capaz de pairar acima dos
conflitos partidários, praticar a imparcialidade e assumir o papel de poder
moderador. Para outros, mais do que apenas moderar, caberia ao tribunal
inspirar respeito por seus argumentos jurídicos, que tecem padrões decisórios e
constroem jurisprudência.
A autoimagem construída pelo STF foi ainda mais longe.
Apresentou-se como a última trincheira dos cidadãos, incumbido da missão de
salvar a democracia de si mesma, domesticar maiorias, amparar e incluir
minorias.
No ápice da automistificação, o ministro Barroso imaginou a corte
como "vanguarda iluminista que empurre a história" na direção do
progresso moral e civilizatório (Vinicius Mota descreveu a ideia no dia 14/1).
A crise política e a erosão de direitos dos últimos anos trouxeram
ao Supremo a oportunidade (e o ônus) de atender a suas promessas. A resposta,
porém, foi um choque de realidade.
O desarranjo procedimental cobrou seu preço. Despreparado para a
magnitude do desafio, o tribunal reagiu da forma lotérica e volátil de sempre.
A prática do STF ridiculariza aquele autorretrato heroico, frustra as mais
modestas expectativas e corrói sua pretensão de legitimidade.
Por não conseguir encarnar o papel de árbitro, o tribunal
tornou-se partícipe da crise. Já não é mais visto como aplicador equidistante
do direito, mas como adversário ou parceiro de atores políticos diversos. Desse
caminho é difícil voltar.
Atado a uma espiral de autodegradação, o poder moderador
converteu-se em poder tensionador, que multiplica incertezas e acirra conflitos.
O ator que deveria apagar incêndios fez-se incendiário. Não foi vítima da
conjuntura, mas da própria inépcia. A vanguarda iluminista na aspiração
descobriu-se vanguarda ilusionista na ação (e na inação).
ILUSIONISMO
Como opera esse poder tensionador? Para decifrar a vanguarda
ilusionista, precisamos olhar para além do resultado de cada decisão (se prende
ou solta, se anula ou valida). Deve-se prestar mais atenção ao procedimento que
gerou tal resultado e ao argumento que o justifica. É no procedimento e no
argumento que mora o ilusionismo.
A síntese do desgoverno procedimental do STF está em duas regras
não escritas: quando um não quer, 11 não decidem; quando um quer, decide
sozinho por liminar e sujeita o tribunal ao seu juízo de oportunidade. Praticam
obstrução passiva no primeiro caso, e obstrução ativa no segundo.
A contradição entre as duas regras é só aparente, pois a arte do
ilusionismo permite sua coexistência. Manda a lógica do "cada um por
si", nas palavras de editorial da Folha (24/12).
O argumento constitucional do Supremo já não vale o quanto pesa e
tornou-se embrulho opaco para escolhas de ocasião. Basta olhar com lupa as
incoerências na fundamentação de casos juridicamente semelhantes que recebem
decisão diversa.
A expressão "jurisprudência do STF" sobrevive como
licença poética, pois perdeu capacidade de descrever ou nortear a prática
decisória do tribunal. Perdeu dignidade conceitual e até mesmo retórica.
No âmbito da esfera pública, o ilusionismo serve para desviar a
atenção, responder o que não se perguntou, jogar fumaça na controvérsia e
confundir o interlocutor.
O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, é praticante rotineiro
dessa técnica. Publicou nesta Folha (17/1) artigo em defesa do habeas corpus (HC). Invoca o
direito abstrato à liberdade, do qual ninguém discordará, e se desvia das
críticas contra suas decisões recentes.
As críticas às quais Mendes reage nunca miraram o HC em si, mas as
evidências de suspeição para julgar, de forma monocrática, pessoas do seu
círculo pessoal e político. O ministro se apresenta como defensor da liberdade,
mas suas decisões passam a impressão de ser defensor dos amigos. Para dissipar
essa impressão, basta que se declare suspeito —o que se recusa a fazer.
Manha ilusionista: discursar sobre o ideal revolucionário da
liberdade e silenciar sobre a liberdade concedida a amigos indiciados.
O ilusionismo, nas suas faces procedimental e argumentativa, retira
das decisões do STF o selo de integridade institucional.
Por essa razão, tem sido pouco útil aos advogados e analistas da
corte perguntar se o texto da Constituição é lido de modo apropriado, se nossas
categorias de análise dão conta da tarefa interpretativa e se o tribunal
pratica ativismo ou deferência —questões nobres do debate constitucional.
Mais importante é conhecer a biografia do ministro e sua
capacidade de atender a ética da imparcialidade, da responsabilidade e da
colegialidade.
A ambição do Estado de Direito é produzir um "governo das
leis, não dos homens". Soa como slogan a serviço da distorção ideológica,
mas o sentido da expressão não tem nada de esotérico.
A mensagem é mais modesta: não quer dizer que o aparato
institucional de interpretação e aplicação das leis deva ser composto por
sujeitos sobre-humanos, imunes a afetos e interesses, mas apenas que esses
sujeitos devem ter compromisso ético para decidir com maior isenção e
ponderação analítica, além de gozar de garantias contra a pressão da barganha
política. Não requer muito mais que isso.
A prática do STF pede adaptação daquela máxima: a interpretação
constitucional deve estar submetida ao "governo do Supremo, não dos
ministros". O tribunal, porém, tem sido governado pelo voluntarismo
incontinente de seus membros. É muito poder individual de fato (e de legalidade
duvidosa) para ser usado com tanta extravagância.
Como disse José Sarney, anos atrás, "um dos maiores desserviços
ao país é desprestigiar o Supremo Tribunal Federal". Esse desserviço ao
STF vem sendo prestado pelos seus próprios membros. Isso traz consequências.
ARBÍTRIO
O tempo do STF é místico. A corte pode tomar uma decisão em 20
horas ou em 20 anos (como publicou Ivar Hartmann, neste mesmo caderno, em 28/5 de
2017). A duração de um caso não guarda nenhuma relação com sua complexidade
jurídica, sua importância política ou o excesso de trabalho do tribunal
—alegações usuais de ministros.
É fruto, sim, da idiossincrasia e do instinto de cada julgador. E,
às vezes, de negociações nos bastidores palacianos e corporativos.
Ninguém melhor que o ex-deputado Eduardo Cunha para iluminar o
problema. Quando afastado de seu mandato pelo STF em 2016, ironizou com a
pergunta cínica que muitos se fizeram: "Se havia urgência, por que levou
seis meses?" Em outras palavras: por que agora?
Uma ótima questão, que poderia ser aplicada a muitos casos (por
exemplo, o pacote natalino de liminares, todas monocráticas e
abruptas, tomadas no apagar das luzes de 2017, antes de o Judiciário sair de
férias).
Lewandowski, presidente da corte em 2016, desconversou: "O
tempo do Judiciário não é o tempo da política e nem é o tempo da mídia. Temos
ritos, procedimentos e prazos que devemos observar".
A resposta é mais um artefato ilusionista. Quando diz que o tempo
do Judiciário não é o tempo da política nem o da mídia, recorre a um árido
lugar-comum para se esquivar do que se queria saber. A resposta também ignora a
inteligência empírica que vem sendo construída ao longo dos último anos sobre o
STF por um crescente grupo de estudiosos da corte.
A definição arbitrária do seu tempo decisório é mais uma faculdade
que o Supremo conferiu a si mesmo e não explicou a ninguém, um dos poderes mais
antidemocráticos que um tribunal pode ter.
INSEGURANÇA
Pede-se a tribunais que produzam segurança jurídica e
previsibilidade. Esse fim costuma ser entendido apenas como demanda de
conteúdo: que pudéssemos estimar, com algum grau de certeza, à luz das decisões
passadas da corte, o que decidirá em casos semelhantes no futuro.
Não é um objetivo possível de realizar por completo, pois muitos
casos, apesar de sua similaridade de superfície, suscitam variações
interpretativas genuínas.
Ainda que frustre expectativas, é desejável que a jurisprudência
tenha um grau de elasticidade. Mas existe uma faceta mais básica da segurança
jurídica: a expectativa de que tomará uma decisão em tempo razoável ou sabido.
Trata-se de previsibilidade de segunda ordem.
O STF, no entanto, não só tirou a credibilidade da noção de
jurisprudência como também nos sonega a possibilidade de saber quando uma
decisão será tomada. Em certos casos, não estamos seguros sequer de que haverá
decisão, qualquer que ela seja.
Se o STF passasse a observar, de modo criterioso e transparente,
"ritos, procedimentos e prazos", como quis Lewandowski, já seria um
gesto quase revolucionário.
Entretanto, a loteria de agenda, somada ao seu oceano de casos,
prejudica a construção de uma esfera pública constitucional, de um espaço em
que debates democráticos possam se desenvolver, que atores interessados possam
mobilizar energia e recursos para participar. Esperam apenas que seus
argumentos sejam respondidos e uma decisão seja tomada em tempo publicamente
justificado.
Vale a pena observar outras cortes no mundo. Ainda que a
comparação tenha limites, pois cada tribunal tem seu próprio desenho, volume de
casos e contexto, mostraria, por exemplo, que a discricionariedade com o tempo
não é exclusividade do Supremo.
Nem todo tribunal tem a disciplina com o tempo que possuem a
Suprema Corte dos Estados Unidos ou a Corte Constitucional da África do Sul.
Como ambas decidem poucas dezenas de casos por ano, a tarefa fica menos
difícil.
Se olharmos para as cortes espanhola ou mexicana, alemã ou
argentina, indiana ou chilena, veremos um mapa muito plural de gestão do
procedimento, com problemas particulares. Em nenhuma delas, porém, se consegue
encontrar tamanha libertinagem de obstrução individual de ministros.
PERDA DO RESPEITO
Um bom observador do comportamento judicial aprende depressa que
"cortes não fazem o que dizem e nem dizem o que fazem". Pelo menos
parte do tempo.
Essa máxima é ainda mais certeira quando aplicada a um tribunal de
cúpula, que precisa administrar dinamites da democracia. A crônica
constitucional só perde a inocência quando está apta a detectar a dissonância
entre as palavras e os atos de instituição ainda tão obscura quanto o
Judiciário.
Um bom observador do Supremo Tribunal Federal também aprende que o
Supremo Tribunal Federal não existe. Pelo menos na maior parte do tempo.
Tornou-se um tribunal de 11 bocas e 11 canetas dotadas de poder
para, sozinhas, tomar decisões (ou não decisões) que geram efeitos
irreversíveis. A crônica constitucional brasileira vem captando essa lição à
medida que a cacofonia do STF fica mais escancarada, e seus custos sociais,
mais palpáveis.
O tribunal foi capturado por ministros que superestimam sua
capacidade de serem levados a sério e subestimam a fragilidade da corte.
Decidem (ou deixam de decidir) o que querem, quando querem,
sozinhos ou em plenário; falam o que querem e quando querem, não só nos autos e
nas sessões públicas de julgamento mas também nos microfones de jornalistas.
Ausentam-se das sessões do tribunal sob pretextos pouco
contestados (um congresso acadêmico ou casamento de amigo no exterior, uma
honraria oferecida por câmara de vereadores de município remoto, a irritação
com voto de colega etc.).
Administram terrivelmente a dimensão simbólica (fonte de
autoridade) e deixam esvair a dimensão material do poder do tribunal (a
capacidade de ser obedecido). Um STF sem capital político pode ser desobedecido
sem custos.
Que tenhamos perdido a reverência pelo STF é um ganho de
maturidade política. Que estejamos perdendo o respeito é um perigo que o
tribunal criou para si mesmo.
Maquiavel sugeriu, em "O Príncipe", que um governante
não deve buscar ser amado, mas respeitado. Se não for respeitado, que ao menos
não seja desprezado, sentimento político mais nocivo. Um governante torna-se
desprezível quando é "inconstante, leviano, irresoluto".
O conselho serve para as instituições democráticas, sobretudo
tribunais constitucionais. O STF precisa de anti-heróis, não do contrário. Sua
sobrevivência como instituição relevante tem a ver com isso.
Às vésperas dos 30 anos da Constituição de 1988, temos um tribunal
constitucional desencontrado. O STF promete mais do que deve, entrega menos do
que pode, disfarça o tanto quanto consegue.
Habituou-se à prática do ilusionismo e dela faz pouco caso. Criou
uma espécie de zona franca da Constituição, onde reina a discricionariedade de
conjuntura e aonde o Estado de Direito não chega.
E não chega por obra dos próprios ministros e ministras, que não
promoveram um único aperfeiçoamento digno de nota na última década: nem na
forma, nem no conteúdo; nem nos ritos, nem na ética institucional.
Não sabem conjugar a primeira pessoa do plural. Mediocrizaram a
tarefa de interpretação constitucional e a própria instituição, cujo status se
evapora. Com ele vai a esperança de efetividade da Constituição, a mais
avançada que já tivemos.
CONRADO HÜBNER MENDES, 40, doutor em direito
pela Universidade de Edimburgo e doutor em ciência política pela USP, é
professor de direito constitucional da USP e embaixador científico da Fundação
Alexander von Humboldt.
JOÃO MONTANARO, 21, é quadrinista.
Fonte: Aqui
0 comentários:
Postar um comentário