JOSÉ DE SOUSA MIGUEL LOPES: Prefácio do livro "A palavra e o silêncio" de Maria Machamba
Prefácio
Vivemos em um mundo ruidoso. De muitas palavras. De muito diz que
diz. Somos internautas, twiteiros. Temos celulares sempre à mão e em
qualquer lugar e hora. Queremos que nos leiam, nos ouçam. Porém, temos
dificuldades de parar para ouvir. Quantas vezes impedimos o diálogo: na ânsia
de falar não escutamos. Temos muitas desculpas para não ouvir o outro e temos
muita vontade de falar. Queremos ser ouvidos, mas não queremos ouvir. Escutar,
ouvir é mais difícil. Para ouvir, temos que ficar em silêncio, temos que
prestar atenção, temos que esquecer de nossos pensamentos e deixar que a ideia
e a voz do outro, que nos fala, entre em nós. Temos que reconhecer que o outro
existe e que tem algo de novo para nos dizer. E, ouvindo de verdade o outro,
podemos pensar, trocar ideias e aprender e criar novas realidades, juntos.
O silêncio não é a
negação da palavra, como a palavra não é tampouco a negação do silêncio. Há
silêncios eloquentes, como palavras vãs. Como o rumor de nossas palavras só tem
sentido porque nelas se reflete o mundo infinito que está para lá de sua
sonoridade, o mundo dos sentimentos, das ideias e das grandes realidades. Silêncio e palavra: dois instrumentos que se
completam reciprocamente. Existe um silêncio que se pode
chamar expressivo e uma palavra silenciosa, ou melhor, um silêncio que fala,
capaz de dizer qualquer coisa e uma palavra muda, que diz nada a quem a escuta.
É
nesta linha que o fazer poético de Cristina Ferreira* se enquadra. “A palavra
e o silêncio” busca, a cada poema, esse silêncio expressivo e, a cada
palavra, a mudez expressiva que muito tem a dizer a quem a escuta.
Assim, os poemas que Cristina Ferreira nos apresenta neste livro,
seguem a indicação de Fernando Pessoa “Deixa da tua voz só o silêncio
anterior!” O resultado adquire formas variadas. O silêncio se faz presente
“No alto da tua boca/Planto um silêncio./Nada de vozearias/O silêncio”.
O silêncio pode estar no “alto da tua boca”, ou “no vento a
suspender-te”. Pode estar ainda “na linha do horizonte africano” ou
“no mais íntimo/murmúrio das coisas solenes”. Por vezes, refugia-se na “brisa quente e suave mais que o vento./Mais
que isso, silêncio” ou com “Os dedos
dedilhando/Acordes suspensos no tempo”.
Outra via que a autora nos propõe para se alcançar esse silêncio é
o do contraponto. O leitor é convidado a encontrá-lo nos intervalos dos golpes
contundentes de seus versos. “Entre as marteladas eu ouço o silêncio”, já
confessara Clarice Lispector. Aqui a poetisa Marisa Machamba dialoga com a
música e seus silêncios, interpela o músico e, através dele, presenteia o noivo
ao “poetisar”:
(...) Empresta-me uma nota
Ò músico
Com ela farei um laço
Em forma de poesia colocarei
Uma semifusa na tua lapela,
Ou talvez uma mais longa semibreve
Uma palavra, de bolero, balada
Ao noivo
Das mil canções de amor. (...)
Tudo isso é potencializado pelo jogo espacial da cartografia marítima:
(...) O mar!
Imenso sal de almas.
Feito das lágrimas lusas
e de tantas as mais outras….
Quanto sal têm todos os oceanos?
A felicidade flutua, sobre o sal,
Também descobri recentemente. (...)
e pela circularidade de leitura que esta cartografia convoca:
partindo do título “A palavra e os silêncio”, os poemas entram em
processo de decantação. Ao final, vemo-nos obrigados a retornar ao título para
nele encontrar o precipitado.
A repercussão desse silêncio amplifica-se quando nele adicionamos a
biografia da poetisa.
Cristina Ferreira faz parte de uma linhagem importante da
literatura, aquela composta por juristas que se viram tomados pela urgência de
escrever.
O inverso também não está excluído: à maneira de Borges, podemos
imaginar uma linhagem de poetas que estenderam a sua prática poética até
alcançarem a jurisprudência. Não está descartada a hipótese de que Cristina
Ferreira seja uma de suas representantes.
Não se pode ignorar também o duplo processo identitário da
Cristina; uma moçambicana/portuguesa ou uma portuguesa/moçambicana, enraizada
simultaneamente em imbondeiros africanos e em pinheiros lusitanos. Como ela própria se define, “Maria
Machamba é um pseudónimo nascido de um diálogo imaginário entre esta cidadã
europeia do século XXI, ativa e cosmopolita, e um inteligente e bem humorado
lente e mestiço de cultura, aspirante a griot”. Para melhor compreendermos
a porosidade de suas fronteiras identitárias, ouçamo-la neste fragmento de um
de seus poemas:
(...) Caraças,
Às vezes duvido ainda de mim:
Mas, escuro de pele,
Sou mais branco de cidade
Ou mais negro do mato? (...)
A poetisa, em certa medida uma estrangeira, é o outro que está
também em nós mesmos. Kristeva diz que o estrangeiro é na verdade o outro que
habita em nós, ou seja, um duplo de nós mesmos. Em suas palavras: "o
estrangeiro habita em nós, ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço
que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a
simpatia." O viajante contempla a paisagem e essa reflete em seu
interior revelando-lhe algo sobre ele próprio.
Esse olhar depois da viagem que a poetisa empreende é um olhar
diferente, mesmo quando se trata do olhar do leitor que se constitui através
(ou por mediação) da leitura, é um olhar que trata do aqui e do além, do antes
e do depois da experiência da viagem/leitura. Sendo assim podemos dizer que na
leitura dessa viagem o leitor torna-se participante da mesma.
Entendendo essa viagem empreendida pela poetisa como uma descoberta
do eu, do "estrangeiro que habita em nós", como um processo de
aprendizagem, podemos considerá-la uma narrativa de iniciação na busca da
essência humana, bem como da própria essência do viajante, que em seu
desvelamento, desvela a todos nós.
Nessa trajetória identitária da poetisa a componente africana se
faz, a meu ver, mais presente. Esse sul que ela carrega e cujas marcas se
estilhaçam a cada traço de sua escrita, nos fazem mergulhar nesses horizontes
infinitos onde nos deparamos com a árvore da jibóia, a machamba,
o capim, o mato. Ela recorre, por exemplo, ao imbondeiro,
essa árvore
africana sagrada, que tem levado à produção de poesias, ritos e lendas. Segundo
uma antiga lenda africana, uma vez que um morto seja sepultado dentro de um imbondeiro,
a sua alma irá viver enquanto a planta existir. Também se diz que a alma dos
mortos se pendura nos seus ramos. Ou quando nos fala do griot essse guardião da tradição oral, especialista em genealogia e na
história de seu povo.
Seja como for, a escrita aqui não é da ordem de um passatempo, mas
um modo de tratar experiências de vida. Inclusive aquela derivada da posição de
estar diante de um ser humano que vem em busca de alívio.
Pois bem, a lista dos escritores “impertinentes” ou “inquietos” é
rica e extensa, e a ela Cristina Ferreira vem juntar-se, por um caminho que lhe
é próprio.
No entanto, pela leitura de seus poemas, constatamos que os seus
precursores formam outra constelação. Nomeio aqui alguns dos seus ascendentes,
onde influências, ainda que inconscientes, lhe podem ter servido de inspiração:
Noêmia de Sousa, Eugênio de Andrade, José Craveirinha, Sophia de Mello Bryner
Andresen, Rui Knopfli, Mia Couto, os mais conhecidos.
Dessa trajetória, extraímos um ponto em comum entre o exercício da
jurisprudência e a prática da poesia: o trato com a palavra. É ela quem circula
entre o poeta e o leitor, entre a jurista e o “náufrago” das leis, elevada à
potência do silêncio. Não deixa de ser um momento de celebração, no mundo
atual, ver a palavra ser valorizada, apreciada, incentivada por alguém cuja
prática cotidiana se confronta com as demandas as mais variadas e também com os
silêncios os mais variados.
Desse ângulo de leitura, podemos constatar, em seus poemas, tanto a
ironia:
(...) Porque à sintaxe, na verdade,
pouco interessam as palavras
nascidas de sementes.
Só a lógica
no seu próprio discurso
se é reta a disposição das palavras,
bem a desmodo do resto. (...)
como a tristeza:
(...) Quem ouve,
Uma coruja a «piar»
Na calada da noite,
Jamais esquece.
As penas não provocam ruído algum
Atacam, certeiramente, a presa.
Na machamba do meu pai
Apareceram, ao longo dos anos.
Algumas foram mortas
A tiro de caçadeira (...).
Antes de deixar ao leitor, ele mesmo, confrontar-se com o silêncio
refinado que Cristina Ferreira nos propõe, ficamos aqui com o alerta da
poetisa:
(...) Não concedo em tutorias.
A poesia só tem amigos
(e talvez amantes).
Recuso-me a prendê-la
Às suas idades,
Moradas ou chalaças.(...)
O silêncio é, portanto, o lugar de
sentidos que se fazem fora da representação da palavra, mas estão no imaginário
humano, nas tramas do que o sujeito aprende e transforma em fantasia, em
imaginação. Com este livro Cristina Ferreira nos conduz ao limiar de uma aventura no campo do
labor poético, onde combina, em diálogo harmonioso, a fantasia e a imaginação,
a palavra e o silêncio. Indispensável tomar conhecimento dessa aventura.
José de Sousa Miguel Lopes
Belo Horizonte, outubro/2013
*Neste livro, a autora usa o pseudônimo Maria Machamba como reivindicação identitária africana, mais concretamente, moçambicana.
Para adquirir o livro
"A palavra e o silêncio" de Maria Machamba clique aqui
0 comentários:
Postar um comentário