Lançamento do livro: "A ética tecendo a cultura e o conhecimento" de Alexsandra Moreira de Castro
Prefácio
Senti-me
muito honrado em prefaciar o livro da Alexsandra que conheci na Universidade como
aluna muito empenhada, participativa, questionadora, procurando sempre ter uma
atitude de buscar o aprendizado como fonte inesgotável para processo de reflexão
sobre o mundo, sobre a vida.
Sua
trajetória acadêmica levou-a a transitar por vários campos do saber como a
Pedagogia e o Direito, mais especificamente, o Direito ao Trabalho. Mas sua
trajetória social é ainda mais diversificada e significativa, revelando sua
forma de olhar o mundo, de olhar o outro, o diferente, quantas vezes aquele que
se encontra silenciado na sociedade, e por conta disso, vivendo em condições
sociais precárias. Ela dirige suas energias para os despossuídos da vida edificando,
no interior de seu ser, comportamentos de solidariedade. Durante mais de vinte anos a Alexsandra teve uma atuação
pedagógica fora do âmbito escolar tradicional, prestando serviços voluntários
semanais (acompanhamento escolar/pedagógico de crianças carentes; elaboração e
condução de vários eventos de estudos/dinâmicas para jovens e adultos;
trabalhos relacionados à criação de cursos (de liderança, de aprimoramento de
expositores, de capacitação de trabalhadores, etc.); criação de
mesas-redondas/seminários/encontros com objetivo de discussão em torno de
temáticas voltadas para a vida em sociedade).
Fica claro que a Pedagogia e o Direito, a teoria e a prática
sempre se entrelaçaram em sua vida, embora esse entrelaçamento fosse permeado
por lacunas, dúvidas, questionamentos sobre os mecanismos que possibilitassem um
efetivo e coerente modo de estar no mundo.
Então, não é surpreendente
que ao retornar à academia a Alexsandra transportasse consigo o que tinha
incorporado na sua trajetória como ser humano, com seus dilemas próprios e alheios,
que envolvem os valores que regem a vida em sociedade e na qual a ética foi uma
componente relevante de seu viver. Suas indagações iniciais estavam ligadas à
questão do tipo de diálogo que se tem efetivado de forma cabal, ou não, entre a
educação e a ética, mais concretamente, ao modo como se configurava esse
diálogo nos Cursos de Pedagogia. Assim, a componente ética passa a ser cada vez mais
aprofundada com seu estudo e pesquisa realizada no Mestrado em Educação na
UEMG. E se torna mais desafiadora, pois suas reflexões ocorrem em tempos
pandêmicos.
No seu estudo a Alexsandra entra em contato com autores
de vários campos do saber como Bauman, Terezinha
Rios, Durkheim, Bourdieu, Piaget,
Vygotsky, Freud, Paulo Freire, Foucault que lhe permitem delinear com mais clareza seu objeto de pesquisa
que consistiu em descrever e analisar as contribuições da Ética na
formação do/a Pedagogo/a. Para o efeito, a Alexsandra se propôs analisar qual é
o objetivo da matéria quando ela se faz presente na Disciplina Ética na matriz
curricular dos Cursos de Pedagogia. Isso implicou que tivesse de lançar mão da
investigação das ementas/planos de ensino, bem como do Projeto Pedagógico das
Instituições de Ensino Superior (IES), quando ausente a Disciplina Ética. Propôs-se
também verificar como os valores éticos, que devem orientar os saberes e as
práticas do/a Pedagogo/a em formação, estão presentes na matriz curricular do
Curso. Em decorrência, investigou se os/as Pedagogos/as em formação julgavam
importante a presença da disciplina Ética, autônoma, na formação acadêmica,
considerando o seu papel como protagonista no multiverso cultural.
A Alexsandra fez uma minuciosa revisão
da literatura, consultando o banco de dados de numerosas instituições. Trabalhou alguns temas correlatos com a Ética como é o
caso dos Direitos Humanos, gênero, raça, a
formação docente, sobretudo em tempos de pandemia, a presença da disciplina
Ética nas instituições de ensino superior, a pesquisa com os alunos e as alunas
da FaE/UEMG. Com elevada criatividade recorreu
à literatura colocando-a em diálogo com a Educação e com a Ética. Para isso,
ela busca no escritor Monteiro Lobato e na sua obra “O sítio do pica-pau
amarelo” um exemplo prático de trabalho com os princípios éticos.
A Ética é um conceito muito desafiador e vários
campos do saber se têm debruçado sobre ela e os seus sentidos.
Quando se fala em Ética, é necessário imaginar-se com
múltiplos papéis: ser humano, profissional e cidadão do mundo. O que fazemos
não afeta uma rua, mas o planeta. Temos de pensar nos nossos direitos, mas
também nas responsabilidades. O mais difícil com relação à Ética é fazer a
coisa certa mesmo quando essa atitude não atende aos nossos interesses. Pessoas
que têm atitudes éticas merecem respeito. O problema é que muitas vezes
respeitamos alguém só pelo dinheiro ou pela fama. O mundo certamente seria
melhor se dirigíssemos nosso respeito às pessoas extremamente éticas.
A Ética também busca
a identificação de comportamentos adequados, mas não na intimidade da
consciência particular de cada um, e sim no coletivo, no debate, na discussão,
na argumentação. Ética é a inteligência compartilhada a serviço da convivência.
É resultado da intervenção da inteligência coletiva com vistas a limitar a
conduta de cada um visando proteger o bem maior, que é a convivência sadia e
harmônica entre todos.
A Ética é relativa
à sociedade que se vive e se se fundamenta num ponto de vista universal (o que
não significa que um juízo ético particular deva ser universalmente aplicável).
Portanto, a Ética é
um produto da vida social que tem a função de promover valores comuns aos
membros da sociedade e exige que extrapolemos o “eu” e o “você” e cheguemos a
propósitos universais.
Por esta razão é
que a Ética busca a identificação de comportamentos adequados, mas não na
intimidade da consciência particular de cada um, e sim no coletivo, no debate,
na discussão, na argumentação.
Podemos facilmente observar o fracasso de uma ética
exclusivamente baseada na razão, no fato de não ser capaz de permear as grandes
escolhas das políticas mundiais, nem mesmo de informar a ação individual.
De fato, não existe um bem absoluto, porque o bem sempre se
refere a uma avaliação subjetiva profundamente arraigada na afetividade. Com o
auxílio da razão, podemos identificar limites à conduta e eventualmente
levá-los em conta, mas certamente é impossível promover uma moralidade ampliada,
necessariamente baseada em uma prescrição proativa, contornando o envolvimento
do indivíduo.
Os desastres ecológicos que estão na frente dos nossos olhos
e que continuam a se perpetuar para além das proclamações, demonstram a
incapacidade de ativar atitudes de dedicação moral, ou seja, de chamado à ação
sobre o problema.
A negligência já é um fracasso ético. A extinção de muitas
espécies, não só em lugares exóticos e distantes, mas também nos territórios
que habitamos, demonstra o impacto que tem o descaso, a preguiça moral, aquela
atitude que não é capaz de nos impelir a uma mudança de rota nos nossos
comportamentos.
O
ser humano não é uma entidade disjunta do rio da vida, porque reconhece em si
mesmo predicados não exclusivos e que ele mesmo herdou de entidades que o
precederam; consequentemente, compreende a própria dependência das redes
ecológicas da biosfera.
As ciências já
demonstraram que o comportamento humano é múltiplo e ambíguo, como é a condição
humana. Uns se dedicam a ajudar e salvar o próximo, outros, egoisticamente, se
protegem fazendo estoques de alimentos e remédios desnecessários, buscando
“salvar sua pele” em detrimento dos que não tem tal condição.
As estratégias
institucionais de empresas e organizações, também, por sua vez, são
diferenciadas, pois enquanto uns se preocupam apenas com os prováveis prejuízos
econômicos, outros, em minoria, realizam doações de recursos e equipamentos
para prevenir e atender as demandas dos hospitais e rede pública de ensino.
Enfrentamos neste
momento uma crise humanitária aguda, não apenas contra o coronavírus, mas,
também, devido à falta de confiança entre os seres humanos.
Para agravar,
políticos irresponsáveis minaram deliberadamente a confiança na ciência, nas
autoridades públicas e na cooperação internacional e nacional.
A epidemia é,
também, consequência do modelo de civilização, da forma de vida e da destruição
da natureza que praticamos. Se persistirmos nesta lógica e nesta intensidade,
estes fenômenos serão mais frequentes e devastadores do que aqueles que agora
se apresentam. Enquanto espécie, com suposta capacidade de usarmos nossa
inteligência coletiva em prol do bem comum, é urgente repensar uma nova forma
de viver na Terra.
Alguns se negam a
aprender com a experiência dos outros e desprezam a colaboração entre nações.
Como consequência, estamos enfrentando esta crise desprovida de lideranças, de
confiança no outro e de cooperação global.
Porém, usualmente
repetimos que toda a crise é uma oportunidade de aprendermos algo. Crises
ensinam aos que estão abertos a aprender.
Movimentos Sociais
no começo do século XXI apregoavam que “Outro mundo é possível”, ao qual
acrescentamos que outra “Ética global é necessária”, baseada na cooperação
internacional e no compartilhamento de informações científicas confiáveis.
Para muitos de nós,
este ideal civilizatório é utópico. E é. Mas todos precisamos de uma utopia, um
novo ideal comum até porque a atual crise é planetária e atingirá a todos.
Ninguém irá salvar-se individualmente. Para uma mudança ampla, esforços globais
deverão ser planejados.
Porém, concomitantemente,
devemos começar com ações individuais entre colegas, vizinhos, comunidades
locais e regionais, compartilhando solidariedade, cooperação e práticas de
altruísmo. Evitar o estoque de alimentos, remédios, álcool e máscaras em nossos
lares já é uma ação humanitária. O mercado deve evitar a exploração com a elevação
dos preços no cenário de crise e calamidade pública.
A solução é
coletiva e nossa vida será preservada se unirmos esforços da esfera pública, da
sociedade (incluindo empresas e comércio) e de cada um de nós. O filósofo
Epicuro já alertava que entre os desejos humanos há os que são naturais e
necessários; outros, que não são nem naturais nem necessários, pois se originam
de uma vã opinião. A reflexão filosófica epicurista nos convida a repensar o
que é efetivamente essencial e o que é desejo produzido por um modo de vida
alicerçado na vontade egoísta.
Nascemos
éticos porque a sensibilidade para o bem nos pertence. Mas
essa intuição para o bem precisa depois ser traduzida em gestos possíveis,
apesar das feridas, das decepções, das derrotas. E, às vezes, precisa ser
renovada, deixando-nos surpreendidos até pelos pequenos episódios. A
responsabilidade deve ser cultivada. Como uma pequena planta
da qual é preciso tomar conta.
Neste
quadro que papel cabe à educação?
A decisão é nossa.
A educação é um caminho para aprendermos juntos, para fazermos escolhas de
governos com legitimidade, liderança, sabedoria e comprometimento com outra
ordem mundial onde o centro sejam as pessoas e não o mercado. Educação para a
vida, educação ambiental e educação humanizadora devem anteceder a
escolarização para o sucesso individual e profissional.
Um
dos desafios que ela precisa enfrentar é o modo como ela pode contribuir para a
formação moral e ética dos alunos-cidadãos. Por isso, é fundamental que seja
construída e problematizada a participação do indivíduo na vida pública - o que
reflete a consciência de realidades, conflitos, interesses individuais e
sociais, o conhecimento de mecanismos de controle e defesa de direitos, a noção
dos limites e das possibilidades de ações individuais e coletivas.
A
educação é um espaço potente para oportunizar a formação de uma sociedade
crítica, para que os alunos não apenas absorvam os conteúdos, mas que os
modifiquem e coloquem em prática suas opiniões e valores, e que os mesmos
contribuam para formar uma sociedade mais digna, justa e ética.
Sendo
assim, trata-se de defender, uma educação escolar que efetivamente possa contribuir
para ajudar os indivíduos a reconhecer o outro, respeitando suas diferenças. Em
decorrência, é preciso que os professores tenham como preocupação básica a
formação integral dos seus alunos com vistas ao desenvolvimento de suas
autonomias. Portanto, é fundamental que todos os educadores questionem o
sentido de suas ações em sua prática pedagógica, afinal a ética não se ensina
de forma isolada como uma disciplina qualquer. Muito pelo contrário, ela avança
em todos os componentes curriculares, mostrando-se nas atitudes de todos os
indivíduos que a vivenciam.
Não quero terminar minhas reflexões sobre o
livro da Alexsandra sem referir uma componente estética que acompanha seu
texto. Trata-se da criativa inserção de desenhos/ilustrações no início de cada
capítulo, algo pouco usual em trabalhos acadêmicos e que valorizou ainda mais
seu trabalho.
No final
do percurso a Alexsandra se interroga e, ao fim e ao cabo, interroga todos
aqueles que tiverem a felicidade de ler seu livro, sobre o tipo de
contribuição que seu trabalho traz para os Cursos de Pedagogia bem como o modo
como o aluno e a aluna vivenciam a Ética na sala de aula e fora dela.
Este
trabalho da Alexsandra constitui uma
bela oportunidade, para se valorizar a ética, em todos os seus desdobramentos. Com
muita perspicácia ela no diz que “não
existe uma crise Ética, mas uma crise da Ética, vez que a Ética tem sido
debatida sob muitos nomes: Ética do/a professor/a, Ética profissional, Ética do
discurso, Ética da solicitude, Ética da afetividade, Ética da autenticidade,
Ética da manipulação, Ética do comprometimento, Ética da alteridade, Ética
utilitarista, Ética deontológica, Ética do bem comum, Ética dos interesses
materiais, entre outras”.
Mais ainda, a autora nos oferece uma ocasião
propícia para continuar dialogando com valores que dão sentido ao que é humano,
preparando caminhos futuros para a superação das mazelas que as sociedades
contemporâneas enfrentam.
O seu livro constitui, desse modo, uma verdadeira
biografia intelectual, no seu sentido mais pleno. Alexsandra ao usar o devido
rigor investigativo armado de um consciencioso aparelho conceitual, alcança um
grande desafio: entender sua pesquisa em perfeita sintonia com o espírito do
seu tempo, isto quer dizer, o sentido social do momento que estamos vivendo e que
ela mesma foi capaz de captar e sintetizar, como uma intelectual que luta por
uma causa justa. Escrever este texto significa nada mais nada menos que
escrever algo prazeroso e estimulante.
Alexsandra lembra-nos que estamos inseridos numa
realidade muito desafiadora. Ela mostra-nos, a cada página, o processo de
confluência em direção a um amplo debate da educação e da ética, pensadas como
caminho necessário para chegar ao verdadeiramente humano.
Cabe ao leitor usar as ferramentas, oferecidas
por esse livro instigante, para explorar os caminhos percorridos e as
possibilidades do devir dessa estratégia.
José de Sousa Miguel
Lopes
(Doutor em História e
Filosofia da Educação e professor no Mestrado em Educação da Universidade do
Estado de Minas Gerais – UEMG)
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