sábado, 27 de agosto de 2022

Carta de amor a uma filha ausente - José Paulo Pinto Lobo

 




Carta de amor a uma filha ausente

 

 





Cascais, 24 de Agosto 2022




 

 

Minha querida filha,




 

Estou cheio de saudades tuas.


 


Faleceu há dias a grande poeta Ana Luísa Amaral uma


verdadeira artífice da palavra. A sua escrita é filigrana fina,


tecida a fios de ouro e prata, que nos soa aos ouvidos como


cristal.



 

Atenta a este trecho de um belo poema seu, “Um pouco de

Goya: carta a minha filha”.



 

“A vida, minha filha, pode ser de metáfora outra: uma língua

de fogo; uma camisa branca da cor do pesadelo. Mas

também esse bolbo que me deste, e que agora floriu,

passado um ano. Porque houve terra, alguma água leve, e

uma varanda a libertar-lhe os passos.



 

Sonhei-te, minha filha, dando os primeiros passos. Desenhei-

te pequena e frágil. Morena exótica olhos cor de esmeralda

herdados da tua mãe.



 

Dela também a herança da alegria, do riso fácil e sonoro que

professores e colegas reconheciam nos corredores da

faculdade. Assim como a paixão, curiosidade e a coragem. A

determinação, a doçura e o carinho pelos outros.



 

Ouço as tuas gargalhadas nos corredores da minha mente. O

som dos teus passos nas correrias pelo labirinto dos meus

pensamentos. As brincadeiras pelas sinopses dos meus

neurónios. E, na minha memória, o bater das tuas asas no

voo libertador.



 

À medida que fui envelhecendo te foste ausentando cada vez

mais na impossibilidade concreta de estares presente. Talvez

porque neste ocaso da vida a solidão se torne mais real e me

faça doer fundo a tua falta, te escrevo esta carta.



 

Dir-me-ás certamente daquele teu jeitinho carinhoso trocista,

“o que te deu agora pai, para me escreveres uma carta de

amor ridícula?”



 

Como escreveu Álvaro de Campos, o poeta maior de mil

faces:


“Todas cartas de amor são


Ridículas.


Não seriam cartas de amor se não fossem


Ridículas”



 

Quis apenas dizer-te, minha filha, que te sonhei inúmeras

vezes e que te amo apesar da tua contínua ausência.



 

Mil beijos, do teu pai,


José Paulo



 

 

PS: Sei o que me irás responder. “Pai, eu não me afastei,

apenas não fui concebida nem nascida. Fui, sou somente um

sonho teu, tardio, sexagenário, como os outros sonhos que

só descobriste neste tempo. Como me poderia apartar se

vivo dentro de ti? Beijos mil desta tua filha que muito te

quer”.

 

 

 



José Paulo Pinto Lobo

 


(Poeta moçambicano)

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