José de Sousa Miguel Lopes - "Para dar um rosto ao futuro"
Para dar um rosto ao futuro*
José de Sousa
Miguel Lopes
Em
primeiro lugar quero agradecer o amável convite nesta sessão comemorativa dos
10 anos de existência do Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Minas Gerias (UEMG). Para mim é uma honra
estar aqui. Este momento proporcionou-me elaborar algumas reflexões que quero
partilhar com todos vocês.
Todos
nós temos vindo a acompanhar a enorme complexidade de que se reveste a
sociedade atual, perpassada por fraturas cada vez mais acentuadas no campo
político, econômico e social.
O
homem do século XXI depara–se com problemas cada vez mais desconcertantes, como
o de desligar, ou não desligar, a máquina que suporta a vida do doente
terminal, a existência das chamadas ‘’barrigas de aluguel‘’, a experimentação
científica com pessoas e animais, a exploração mediática da vida privada, os
conteúdos das campanhas publicitárias, o comércio de órgãos e de seres humanos,
a violência deliberada sobre crianças, jovens e idosos ou as múltiplas
agressões ecológicas. A resposta para estes e outros problemas requer, de fato,
competências novas no âmbito da reflexão, do diálogo, da negociação, da decisão
e da ação.
Os
problemas e os desafios de uma sociedade em mutação acelerada refletem–se
forçosamente na educação, obrigando a repensar papéis e funções que não podem,
de forma alguma, ser impostos de fora para dentro. Os novos papéis exigem ser
escritos com a participação das pessoas que lhes dão corpo, alma e voz. Não
podem ficar à mercê de autoridades exteriores, por mais especializadas, em
ciências da educação ou em legislação moral, que essas autoridades possam ser
ou parecer. E, pela mesma razão, os novos papéis não podem, também, pretenderem
ser estipulados por uma qualquer lei profissional de caráter meramente
corporativo.
Calhou–nos
um tempo difícil, aparentemente privado de convicções ou certezas, órfão de
grandes narrativas, carente de referências axiológicas e terrivelmente ameaçado
por fatores de perturbação, incerteza, insegurança e imprevisibilidade
associados ao progresso científico, à revolução tecnológica, à complexificação
de modo de vida e à recorrência de acontecimentos violentos que ensombram
qualquer esperança de felicidade ou bem estar.
Face
ao anunciado desmoronamento das bases teóricas, filosóficas, ideológicas,
políticas e religiosas que, durante séculos, sustentaram as nossas posições,
onde poderemos ir agora procurar o fundamento racional para valores humanos
nucleares como o bem, a felicidade, a verdade, a paz, a justiça ou a
solidariedade?
É
possível, ou legítimo, ambicionar a concentração de valores num mundo
‘’polifônico’’ como este em que vivemos? O que mudou realmente no universo das
nossas escolhas morais? Que princípios devem estruturar hoje o espaço da ação
humana? Como equacionar o futuro de um presente tão incerto, vulnerável e violento?
É
preciso ter presente que o lado sombrio da condição humana, a aptidão para
provocar sofrimento, continua a surpreender–nos em múltiplas figuras de ódio e
violência. O poder do homem para fazer mal a si próprio, aos outros e à própria
natureza, obriga-nos a colocar a responsabilidade no centro de uma ética do
futuro que enquanto tal, deve funcionar, como eixo de um saber previsional
capaz de antecipar as ameaças que pairam sobre o destino das gerações
vindouras.
Na
nossa perspectiva, é a esperança e não o medo que deve orientar a construção do
futuro. Visando dominar a natureza, o homem acabou por contribuir para a sua
destruição, ameaçando desse modo as próprias condições de vida humana,
presentes e futuras. Potenciadas pelo extraordinário desenvolvimento
tecnológico, as novas formas de agir reclamam regras de regulação prática que
permitam, justamente salvaguardar a possibilidade de não desistir de procurar
tornar o mundo num lugar mais justo, pacífico e solidário.
Os
partidários do relativismo e do universalismo pecam pelo mesmo defeito – a
desvalorização das potencialidade do diálogo intercultural. Porque, na
realidade, e independentemente da dignidade de cada cultura, nem todos os
valores culturais se equivalem. Por isso é que o diálogo democrático é
necessário e que é importante partir para ele com convicções. Dizemos mesmo que
este é um dever ético, o de sujeitar as nossas próprias posições às exigências
de debate e de reflexão partilhada. Um debate que deve ter sempre em referência
o rumo que se pretende seguir. A reflexão ética é um exercício delicado
precisamente porque requer sentido de antecipação. Mais do que descrever os
valores, tal reflexão deverá preocupar–se em saber em que medida é que eles se
podem transformar– e nos transformar.
Não
podemos deixar de reconhecer como fundamentais: o direito à vida, o respeito
pela liberdade e dignidade de cada ser ou a recusa de práticas de discriminação
e de violência, expressa no reconhecimento de que a humanidade exige-nos a
realização de tarefas que pedem esforço e vigilância constante. Afinal, o horror nazista aconteceu no coração de uma
civilização orgulhosa das suas tradições e dos seus ideais e foi protagonizada
por homens alfabetizados e familiarizados com as leis do seu tempo. Por
outro lado, e importa não esquecer também, esse crime hediondo contra a
humanidade contou com o silêncio cúmplice de muitas pessoas e instituições.
Como se a humanidade tivesse entrado em estado de suspensão, permaneceram então
caladas as vozes do socorro e da justiça. Por tudo isto, a cultura ocidental
ficou desde então menos segura das verdades que vinha acumulando ao longo dos
séculos.
Claro
que é muito mais simples construir consensos em torno das ideias de mal.
Identificar o que nos incomoda é bastante mais fácil do que tentar chegar a
acordo sobre o que queremos. O que explica, de resto, a tentação de todos os
moralismos. Negar, proibir, apontar o dedo, mostrar o que não se pode fazer é,
a todos os níveis, uma tarefa menos árdua do que persistir na definição do bem.
Por
mais incerto e imprevisível que o tempo por vir se nos apresente, importa
superar a crise do futuro que parece ameaçar hoje a vida social. É que sem
futuro o presente fica mais pobre e, em certa medida, ameaçado. Precisamos do
futuro para viver, compreender, conhecer e reinventar o presente. Por outro
lado, no entanto, importa também prevenir o excesso de futuro. Só um sujeito
verdadeiramente implicado no seu presente se torna capaz de futuro. Este é
afinal, um dos grandes paradoxos do tempo: é no presente que podemos ser
sujeitos de passado e de futuro. Que podemos, enfim, tomar conta do tempo que
nos coube viver.
A
tarefa do educador está, de um modo muito especial, marcada por esta misteriosa
relação com as diferenças dimensões do tempo. Cabe–lhe dar rosto ao futuro,
ajudando a abrir portas para um mundo que, em rigor, lhe é desconhecido. Por
esse motivo também, o educador não pode precipitar–se na caminhada visando
alcançar um determinado objetivo, como se tudo dependesse apenas da sua própria
vontade ou convicção.
Ao
nível da função docente, a responsabilidade pelo futuro não pode, pois, ser
entendida apenas como responsabilidade perante a humanidade que há de vir, mas
sim como dever de proximidade com o futuro, com o tempo outro, que se apresenta
pessoalmente no rosto de cada educando.
A par
de categorias espaciais como limites, fronteiras, centros e periferias, a
atitude pedagógica deve valorizar categorias como ritmo, paciência, atenção.
Por inerência da função que desempenham, os educadores trabalham na zona de
contato interpessoal, estando por isso em situação privilegiada para ajudar a
evidenciar as linhas de proximidade que sinalizam essa nova geografia.
Para
que possa ser democrática, solidária e justa, a sociedade do conhecimento
precisa alicerçar–se em valores como o respeito pelo tempo do outro a
sensibilidade, a paciência, a atenção, a escuta e as atitudes de ajuda.
Que
melhor oportunidade de aprendizagem, de crescimento, do que abrirmos a nossa
vida à entrada de vidas outras?
Antes
de mais, a aprendizagem corresponde a um dever de cada ser humano no sentido da
obrigação de procurar ir sempre mais longe no processo do seu próprio
aperfeiçoamento. Tendo nascido incompleto, o homem possui o poder, logo também
o dever, de transcender continuamente as condições que condicionam o seu modo
de ser no mundo. Por isso dizemos com a cantora Mercedes Sousa, não basta
viver, é preciso saber honrar a vida. Mas para que tal possa acontecer, é
necessário poder contar com a colaboração ativa de outros seres humanos. É aqui
que entra a educação enquanto prática intersubjetiva intencionalmente
direcionada para a promoção da humanidade em cada um de nós. Neste sentido, a
educação representa, em si mesma, um enorme desafio ético.
Na
verdade, só teremos uma sociedade de todos quando forem superadas as
desigualdades no acesso à educação. Apesar dos progressos registrados durante o
século XX, o mundo entrou no novo século com cerca de 900 milhões de
analfabetos, 100 milhões de crianças privadas de acesso à formação básica e com
70% dos seus professores, num universo de 57 milhões, a viver em condições
materiais indignas no seu estatuto e da sua missão (UNESCO, 2004).
Sabemos
que os melhores investimentos para a sociedade são aqueles que apostam no
desenvolvimento permanente de cada pessoa. Ora, a educação constitui, sem
sombra de dúvida, a melhor das apostas nesse sentido.
Cabe
à educação dotar as pessoas, todas as pessoas, dos meios que lhes permitem
compreender o mundo agir, sobre ele, relacionar–se solidariamente com os outros
e decidir, em liberdade, sobre o futuro.
Ao recorrermos à História dela podemos extrair ao
menos uma importante lição: a universidade tende a nascer e a se estabelecer lá
onde ela atende às demandas por educação superior, isto é, ensino, pesquisa e
extensão de qualidade.
E, nesse sentido, a UEMG e particularmente o
Programa do Mestrado em Educação tem-se orientado por esses parâmetros. A
história deste Programa tem dado uma grande contribuição ao desenvolvimento do
Estado de Minas Gerais, mas também sofrido as consequências nefastas de crises
econômicas e políticas erráticas de educação superior nesses últimos 10 anos.
Tive o privilégio de ser um dos fundadores do
Mestrado. Do corpo docente inicial, apenas eu próprio e as minhas colegas
Santuza e Lana “sobrevivemos”. Nesta década colegas saíram e entraram numa
renovação permanente do quadro docente. Esta renovação, se por um lado foi
muito desafiadora, pois permitiu ampliar o leque de experiências com tantos
educadores, por outro lado, gerou, inevitavelmente, um quadro de enorme
instabilidade e insegurança, sobrecarga de orientandos por professor, etc.
No caso específico das orientações importa realçar
que o
papel do orientador tem relevância não somente pela complexidade da função, em
seus diversos aspectos, mas também pela tamanha responsabilidade de capacitar e
qualificar alguém a ser autor de seu próprio trabalho. Um dos maiores problemas
enfrentados pelos orientadores e orientandos na contemporaneidade, além da
dificuldade de escrita e dos inevitáveis conflitos pessoais, é a diminuição de
prazos para a escrita das dissertações e teses. Discutir o papel do orientador,
também devido à exigência de produção de artigos e participação em eventos
científicos com produção e várias formas de publicações exigidos nos meios
acadêmicos, torna-se cada vez mais oportuno. O orientando tem como incumbência
a escrita e a reescrita; em contrapartida, o orientador faz sua análise
avaliativa, apontando partes dos textos/pesquisa que não estão adequadas e
necessitam da reescrita. A tarefa de orientação é individualizada (avaliação da
Capes) e a qualificação dos cursos reflete a soma do desempenho dos seus
orientadores. A experiência acumulada, seguindo critérios de como se avalia o
desempenho científico de um pesquisador, baseada na análise de suas linhas de
pesquisa, de sua produção científica, número e qualidade dos trabalhos
publicados, é um aspecto a ser considerado na orientação. O frenesi produtivo
tem provocado um fenômeno diverso daquele a que se postulava, que é uma
qualificada formação acadêmica, pois tem inibido produções mais detidas e
jogado os pesquisadores em uma trincheira de competitividade.
Mas importa realçar que, mesmo com estes problemas,
o corpo docente, técnicos-administrativos e estudantes, sempre estiveram e
estão irmanados num projeto de formação humana e profissional de qualidade como
um dever do Estado e um direito de toda a sociedade. Comprometido com uma cultura
política identificada com processos democráticos, o programa de Mestrado em
Educação tem possibilitado conviver, internamente, com as contradições próprias
a uma instituição social como é a universidade, mas também transmitindo à
comunidade externa seu compromisso com uma educação de qualidade e de respeito à
diferença.
Para não ficar apenas em termos abstratos , eu
teceria um breve comentário ao que foi minha própria experiência profissional
neste programa ao longo da última década. Esta minha experiência,
salvaguardadas as devidas exceções, não é muito diferente das dos meus colegas.
Por isso, alguns dados estatísticos da minha trajetória do programa, que a
seguir apresentarei podem ser encarados como uma média pois, seguramente,
alguns colegas terão dados estatísticos superiores e outros inferiores aos
dados da minha trajetória.
Vejamos então alguns desses dados:
As disciplinas que
ministrei no programa
Disciplinas obrigatórias:
·
Sociedade e Educação
Brasileiras: questões contemporâneas de formação humana;
·
Educação e Formação Humana.
Disciplinas optativas:
·
Fronteiras do Pensamento;
·
Educação e Diversidade
Cultural;
·
A linguagem do cinema e
questões pedagógicas: elementos pra uma educação do olhar;
·
Diálogos da arte com a
Educação.
Alguns projetos de
pesquisa
·
Poesia e etnicidade nos livros didáticos de
português: um estudo comparativo Moçambique e Brasil;
·
Música como processo de desenvolvimento cognitivo e
motor na educação infantil;
·
Educação ambiental: da teoria à implementação nas
Escolas Públicas de Belo Horizonte;
·
O cinema em Belo Horizonte no olhar dos
educadores/cinéfilos: pelas trilhas da História e da memória.
Publicações
·
3 livros publicados;
·
11 livros organizados;
·
17 capítulos de livros publicados;
·
15 artigos completos publicados em periódicos;
·
7 trabalhos publicados em Anais;
·
9 artigos em revistas.
Fazendo uma
média destas 64 publicações, significa que nestes 10 anos foram publicados 6 por
ano, ou seja, uma a cada dois meses.
·
28 pareceres solicitados para trabalhos a publicar.
·
Membro de conselhos editoriais de várias revistas.
·
Membro da Comissão de Acompanhamento Discente por 9
anos e responsável pela mesma Comissão durante os últimos 6 anos.
·
Participação em 3 comissões de Revalidação de
títulos do exterior.
·
Inscrevi-me num Concurso para professor efetivo
para a área de Educação e Tecnologia na UEMG. Fui aprovado para a única vaga
oferecida.
·
Fiz meu pós-doutorado na Universidade de Lisboa.
·
Fui convidado pela Universidade Eduardo Mondlane, a
principal universidade pública de Moçambique, para ministrar duas conferências
em 2017 e 2018.
·
Junto com meus alunos de uma turma de mestrado
criei em 13/05/2011 o BLOG “Navegaçõesnas Fronteiras do Pensamento”.
Nestas quase
9 anos de funcionamento já tem cerca de 15 mil postagens de todos os campos do
saber.
· Tornei-me Membro da Anistia Internacional.
· Como intelectual não me furtei aos debates na
mídia, em defesa de causas que considero justas. Nesse sentido, travei
polêmicas na internet com um sociólogo e um escritor moçambicanos, com um
historiador brasileiro e com um dos principais jornalistas da Televisão
portuguesa. Essas polêmicas estão inseridas no Blog “Navegações nas Fronteiras do Pensamento” para quem tiver interesse
em conhecê-las.
Todas
as ações que descrevi só se tornaram possíveis, não apenas pelo meu esforço
pessoal, mas porque me senti sempre acolhido e apoiado pelo Programa de
mestrado na pessoa dos meus queridos colegas e pessoal administrativo e pelas
várias instâncias pedagógicas e administrativas da UEMG, particularmente as
chefias do Departamento de Técnicas e Método de Ensino e a direção da Faculdade
de Educação.
Reflexões finais ou como continuar lutando
pelo Programa de Mestrado por forma a que ele continue sua luta para dar rosto
ao futuro
O
tempo destes 10 anos de programa do Metrado em Educação da UEMG foi um tempo de
caminhar, de palavra em palavra, de frase em frase, de problema em problema.
Tempo para aprender a escutar e a ser escutado, tempo para aprender a ajudar e
a ser ajudado. Aqui vivenciei um tempo para pensar a vida, este foi o lugar de
muitos encontros e de muitos começos. Lugar onde também aprendi a sentir o
mundo. Lugar onde nos preocupamos, e ocupamos, com os outros. Foi neste lugar
de aprendizagem, de humanismo e de cultura, que pude estabelecer plataformas de
confianças e de compromisso com os colegas e com os alunos. Num mundo difícil,
agitado, cheio de insegurança e de pressa, é preciso valorizar a chamada para a
aventura de uma aprendizagem feita de esforço, de obstáculos e de desafios de
uma descoberta contínua e exigente. Valorizar igualmente o espaço da alegria.
Como em toda a sociedade, o lugar da academia é um
lugar de tensões, de conflitos. Eles ocorrem entre os alunos no seu diálogo
como os docentes: a participação nas aulas, os momentos de avaliação, as
leituras exigidas, os adoecimentos. Mas esse espaço pode e deve ser um lugar
onde haja alegria, aqueles momentos proporcionados pelos professores e pelos
alunos. Não posso deixar, entre tantos desses momentos, de referir,
rapidamente, três deles:
1.
O diálogo com o aluno do Curso de
Pedagogia que descobriu que eu não possuía celular. Um pouco antes de iniciar a
aula das 19:00h no curso de Pedagogia, o primeiro aluno que chegou veio ter
comigo e falou com um ar conspiratório e em voz baixa: “Ouvi dizer que o professor...”). Fez uma pausa e eu interpretei
essa pausa como algo de muito ruim que teria acontecido e no qual eu estaria
envolvido. Depois ganhou coragem e disse-me: “Ouvi dizer que o professor não tem celular”. Com muita naturalidade
confirmei que não tinha celular. Quando se conseguiu recompor do espanto que a
minha resposta lhe provocou, pois ele imaginava que tudo não passaria de um
boato, falou: “Mas, professor, o celular
é muito barato!!!!!”.
2.
Numa turma do Mestrado em educação
passei o filme “O olhar de Michelangelo”
(15’) do diretor italiano Michelangelo Antonioni, considerado uma das maiores
obras de arte no campo do cinema. Quando o filme terminou, um aluno resolveu
mostrar sua indignação e espanto com a obra que acabava de ver. Falou: “Mas, professor, neste filme não aconteceu
nada”. De forma provocativa respondi “Sim,
tem razão, não aconteceu nada, ou melhor, aconteceu tudo”. Com um olhar
contaminado pelas produções hollywoodianas onde os efeitos especiais reinam
soberanos, este aluno não tinha um olhar educado para observar detalhes
estéticos e filosóficos. Depois de tecer vários comentários sobre a obra, o
aluno se deu conta que precisaria começar a prestar mais atenção àquilo que não
é tão diretamente acessível a um olhar menos atento e preparado. Sorriu, sorri
com ele, a turma caiu na gargalhada. Este episódio desencadeou um processo de
reflexão que me levou, logo que cheguei a casa, a começar a escrever um texto
sobre esse filme. Ao longo de várias semanas de escrita terminei o texto a que
dei o título “Para uma educação do olhar
cinematográfico: visitando “O olhar de Michelangelo”. Pode ser lido no
link aqui
3.
O episódio do meu concurso para
professor efetivo na UEMG.
No ano de 2010 decidi inscrever-me num concurso para
professor efetivo da Universidade do Estado de Minas Gerais. Minha formação é
na área de História e Filosofia da Educação e o concurso era na área de
Educação e Tecnologia. Eram 15 candidatos para uma vaga. Tive que estudar
bastante, pois eu era o único candidato que não era da área de Educação e
Tecnologia. No dia da prova escrita entre os 10 temas propostos, havia um “Elaboração de Softwares de Educação” que
eu tinha enorme receio que fosse sorteado. Meu receio era tão grande que
abertamente manifestei para os membros da banca e dos meus colegas candidatos,
que se saísse esse tema “Eu pegaria o
boné e sairia da sala”. Chegou o momento do sorteio e um dos candidatos foi
chamado para retirar de uma caixa um papel dobrado. Desdobrou o papel e
anunciou o tema da prova escrita para todos os presentes: “Elaboração de Softwares de Educação”. Eu desabei e todo o mundo
ficou olhando para ver minha reação. Tinha estudado esse tema mais do que qualquer
dos outros. Fiz a prova e, no final, quando fui entrega-la aos membros da banca
fui questionado com a pergunta que não quer calar: “Mas você não disse que se se saísse este tema pegaria o boné e sairia da sala? E então, o que aconteceu?”. “Sim,
respondi, confirmo que eu fiz essa
afirmação. Mas quando olhei para o lado constatei que não tinha trazido o boné”!!!
Foi a gargalhada geral. A título informativo, passei no concurso.
Fechado
este parêntesis com toques humorísticos, retomo minha fala, afirmando que a
interação com outros espaços de aprendizagem, com outras lógicas de educação e
formação, além do mais, constitui uma oportunidade preciosa para que o Mestrado
em Educação possa sair de um espaço ainda com problemas preocupantes,
nomeadamente a rotatividade do corpo docente.
Minhas
vivências nestes 10 anos são o resultado da combinação singular de alguns
ingredientes, produzidos à medida do sentido, do prazer, da ternura, da
criatividade e da inteligência dos colegas e alunos com quem trabalhei e que
fornecem conteúdos à vida, à sublime utopia de uma democracia assente na
soberania dos cidadãos. Porque somos nós que trabalhamos em equipe que fazemos
os lugares, os espaços, as cidades. Somos nós que enchemos os espaços de
odores, de sabores, de sons, de memórias, de sonhos, de amores e de desamores.
Na multidimensionalidade dos nossos atos de viver, partilhamos alegrias,
tristezas, razões, afetos e emoções, construindo assim lugares de pertença e de
comunidade. Em termos pedagógicos, o desafio passou por procurar dar expressão
a esses atos, perspectivando-os numa lógica de desejo e de futuro, de acordo
com os ideais de justiça e de solidariedade consensualizados no espaço
acadêmico. Ou seja, potenciando–os enquanto atos de aprender intencionais e,
como tal, racionalmente planificados.
A
melhor forma de preservar o humano será a de instaurar dinâmicas de ruptura
continua, impelindo o homem a aventurar-se na permanente reinvenção de si
mesmo. A de, por um lado, levar cada um a descobrir, e a desenvolver, o que já
possui dentro de si próprio e, por outro lado, provocar situações de trabalhos
colaborativos propiciadores da ruptura e, nessa medida, de abertura a
realidades nunca antes possuídas ou percorridas.
Estas
duas posições nos colocam, na verdade, perante mais um dos equilíbrios
necessários à tarefa do educador no exercício da sua missão impossível.
Educar
significa empurrar para o exterior, incitando à viagem pelo desconhecido, mesmo
sabendo que isso representa a possível quebra dos laços que dão conforto.
Por
outro lado, porém, é necessário prevenir os riscos da domesticação e do
doutrinamento. Vivemos tempos sombrios. Daí a importância da vigilância ética
assegurada por uma consciência profissional crítica, reflexiva e atenta. Como
educadores não temos o direito de vedar ao aluno o acesso às portas do futuro
possível, a pretexto da falta de convicção ou de empenhamento, mas, por outro
lado, não podemos tentar obter resultados a todo o custo, enveredando por
manobras de sedução, de manipulação e de violência.
Os
educadores formam para os valores, a partir de valores. Ou seja, ensinando com
e desde valores. Enquanto profissionais da relação, são agentes privilegiados
de proximidade humana. O seu testemunho ético começa na sua própria presença, sensibilidade
e atitude. É importante a forma como escutam, como comunicam e partilham
conhecimentos. A forma como se envolvem no trabalho de equipa, como lidam com
as situações de conflito, como acolhem e respeitam a liberdade do outro. Porém,
o dever de antecedência faz dos educadores mais do que meros agentes de
contágio humano. A sua missão está investida de uma intencionalidade
incontornável.
O
educador demite–se da sua função educativa sempre que, dentro da sala de aula
ou em qualquer outro espaço escolar, fecha comodamente os olhos perante
comportamentos que reconhece como inaceitáveis. Cada vez que escolhe não
intervir, abdicando da sua condição de autor, o professor põe em causa uma
responsabilidade profissional. Naturalmente, e como acontece com qualquer outro
poder, o exercício da autoridade pedagógica carece de reflexão, ponderação
moral e mesmo de regulação.
O
sentido de humanidade exigido por um mundo violento, incerto, problemático e
especialmente desencantado como o nosso, é indissociável de uma ligação
positiva a um lugar, de uma referência afetiva aos espaços onde se dorme, onde
se come, onde se ama, onde se estuda, onde se trabalha e onde se partilham
alegrias e tristezas. A sociedade tecnológica favorece o anonimato e, com ele,
a solidão necessária também à afirmação de uma liberdade pessoal, mas ao
inviabilizar os tradicionais espaços de encontro põe em causas as condições de
emergência e de consolidação dos laços sociais. Justamente, pela sua vocação
socializadora, o espaço acadêmico surge-nos como um espaço privilegiado para a
emergência e consolidação desses laços. Façamos então desse espaço um lugar
antropológico com tudo o que isso implica em termos de afeto, de memória e de
identidade. O programa de Mestrado em Educação precisa continuar a ser um lugar
de hospitalidade, de reconhecimento, de proximidade e de encontro, um lugar ode
a formação humana esteja sempre no posto de comando.
Essa
é a tarefa desafiadora que teremos pela frente, mas que estou certo estará à
altura do nosso empenhamento, do nosso sonho em construir um mundo melhor.
Muito
obrigado.
*Palestra proferida
no dia 07/12/2019 por ocasião da comemoração dos 10 anos do Mestrado em
Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
0 comentários:
Postar um comentário