domingo, 22 de dezembro de 2019

José de Sousa Miguel Lopes - "Para dar um rosto ao futuro"

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Para dar um rosto ao futuro*

José de Sousa Miguel Lopes

Em primeiro lugar quero agradecer o amável convite nesta sessão comemorativa dos 10 anos de existência do Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Minas Gerias (UEMG). Para mim é uma honra estar aqui. Este momento proporcionou-me elaborar algumas reflexões que quero partilhar com todos vocês.
Todos nós temos vindo a acompanhar a enorme complexidade de que se reveste a sociedade atual, perpassada por fraturas cada vez mais acentuadas no campo político, econômico e social.
O homem do século XXI depara–se com problemas cada vez mais desconcertantes, como o de desligar, ou não desligar, a máquina que suporta a vida do doente terminal, a existência das chamadas ‘’barrigas de aluguel‘’, a experimentação científica com pessoas e animais, a exploração mediática da vida privada, os conteúdos das campanhas publicitárias, o comércio de órgãos e de seres humanos, a violência deliberada sobre crianças, jovens e idosos ou as múltiplas agressões ecológicas. A resposta para estes e outros problemas requer, de fato, competências novas no âmbito da reflexão, do diálogo, da negociação, da decisão e da ação.
Os problemas e os desafios de uma sociedade em mutação acelerada refletem–se forçosamente na educação, obrigando a repensar papéis e funções que não podem, de forma alguma, ser impostos de fora para dentro. Os novos papéis exigem ser escritos com a participação das pessoas que lhes dão corpo, alma e voz. Não podem ficar à mercê de autoridades exteriores, por mais especializadas, em ciências da educação ou em legislação moral, que essas autoridades possam ser ou parecer. E, pela mesma razão, os novos papéis não podem, também, pretenderem ser estipulados por uma qualquer lei profissional de caráter meramente corporativo.
Calhou–nos um tempo difícil, aparentemente privado de convicções ou certezas, órfão de grandes narrativas, carente de referências axiológicas e terrivelmente ameaçado por fatores de perturbação, incerteza, insegurança e imprevisibilidade associados ao progresso científico, à revolução tecnológica, à complexificação de modo de vida e à recorrência de acontecimentos violentos que ensombram qualquer esperança de felicidade ou bem estar.
Face ao anunciado desmoronamento das bases teóricas, filosóficas, ideológicas, políticas e religiosas que, durante séculos, sustentaram as nossas posições, onde poderemos ir agora procurar o fundamento racional para valores humanos nucleares como o bem, a felicidade, a verdade, a paz, a justiça ou a solidariedade?
É possível, ou legítimo, ambicionar a concentração de valores num mundo ‘’polifônico’’ como este em que vivemos? O que mudou realmente no universo das nossas escolhas morais? Que princípios devem estruturar hoje o espaço da ação humana? Como equacionar o futuro de um presente tão incerto, vulnerável e violento?
É preciso ter presente que o lado sombrio da condição humana, a aptidão para provocar sofrimento, continua a surpreender–nos em múltiplas figuras de ódio e violência. O poder do homem para fazer mal a si próprio, aos outros e à própria natureza, obriga-nos a colocar a responsabilidade no centro de uma ética do futuro que enquanto tal, deve funcionar, como eixo de um saber previsional capaz de antecipar as ameaças que pairam sobre o destino das gerações vindouras.
Na nossa perspectiva, é a esperança e não o medo que deve orientar a construção do futuro. Visando dominar a natureza, o homem acabou por contribuir para a sua destruição, ameaçando desse modo as próprias condições de vida humana, presentes e futuras. Potenciadas pelo extraordinário desenvolvimento tecnológico, as novas formas de agir reclamam regras de regulação prática que permitam, justamente salvaguardar a possibilidade de não desistir de procurar tornar o mundo num lugar mais justo, pacífico e solidário.
Os partidários do relativismo e do universalismo pecam pelo mesmo defeito – a desvalorização das potencialidade do diálogo intercultural. Porque, na realidade, e independentemente da dignidade de cada cultura, nem todos os valores culturais se equivalem. Por isso é que o diálogo democrático é necessário e que é importante partir para ele com convicções. Dizemos mesmo que este é um dever ético, o de sujeitar as nossas próprias posições às exigências de debate e de reflexão partilhada. Um debate que deve ter sempre em referência o rumo que se pretende seguir. A reflexão ética é um exercício delicado precisamente porque requer sentido de antecipação. Mais do que descrever os valores, tal reflexão deverá preocupar–se em saber em que medida é que eles se podem transformar– e nos transformar.
Não podemos deixar de reconhecer como fundamentais: o direito à vida, o respeito pela liberdade e dignidade de cada ser ou a recusa de práticas de discriminação e de violência, expressa no reconhecimento de que a humanidade exige-nos a realização de tarefas que pedem esforço e vigilância constante. Afinal, o horror nazista aconteceu no coração de uma civilização orgulhosa das suas tradições e dos seus ideais e foi protagonizada por homens alfabetizados e familiarizados com as leis do seu tempo. Por outro lado, e importa não esquecer também, esse crime hediondo contra a humanidade contou com o silêncio cúmplice de muitas pessoas e instituições. Como se a humanidade tivesse entrado em estado de suspensão, permaneceram então caladas as vozes do socorro e da justiça. Por tudo isto, a cultura ocidental ficou desde então menos segura das verdades que vinha acumulando ao longo dos séculos.
Claro que é muito mais simples construir consensos em torno das ideias de mal. Identificar o que nos incomoda é bastante mais fácil do que tentar chegar a acordo sobre o que queremos. O que explica, de resto, a tentação de todos os moralismos. Negar, proibir, apontar o dedo, mostrar o que não se pode fazer é, a todos os níveis, uma tarefa menos árdua do que persistir na definição do bem.
Por mais incerto e imprevisível que o tempo por vir se nos apresente, importa superar a crise do futuro que parece ameaçar hoje a vida social. É que sem futuro o presente fica mais pobre e, em certa medida, ameaçado. Precisamos do futuro para viver, compreender, conhecer e reinventar o presente. Por outro lado, no entanto, importa também prevenir o excesso de futuro. Só um sujeito verdadeiramente implicado no seu presente se torna capaz de futuro. Este é afinal, um dos grandes paradoxos do tempo: é no presente que podemos ser sujeitos de passado e de futuro. Que podemos, enfim, tomar conta do tempo que nos coube viver.
A tarefa do educador está, de um modo muito especial, marcada por esta misteriosa relação com as diferenças dimensões do tempo. Cabe–lhe dar rosto ao futuro, ajudando a abrir portas para um mundo que, em rigor, lhe é desconhecido. Por esse motivo também, o educador não pode precipitar–se na caminhada visando alcançar um determinado objetivo, como se tudo dependesse apenas da sua própria vontade ou convicção.
Ao nível da função docente, a responsabilidade pelo futuro não pode, pois, ser entendida apenas como responsabilidade perante a humanidade que há de vir, mas sim como dever de proximidade com o futuro, com o tempo outro, que se apresenta pessoalmente no rosto de cada educando.
A par de categorias espaciais como limites, fronteiras, centros e periferias, a atitude pedagógica deve valorizar categorias como ritmo, paciência, atenção. Por inerência da função que desempenham, os educadores trabalham na zona de contato interpessoal, estando por isso em situação privilegiada para ajudar a evidenciar as linhas de proximidade que sinalizam essa nova geografia.
Para que possa ser democrática, solidária e justa, a sociedade do conhecimento precisa alicerçar–se em valores como o respeito pelo tempo do outro a sensibilidade, a paciência, a atenção, a escuta e as atitudes de ajuda.
Que melhor oportunidade de aprendizagem, de crescimento, do que abrirmos a nossa vida à entrada de vidas outras?
Antes de mais, a aprendizagem corresponde a um dever de cada ser humano no sentido da obrigação de procurar ir sempre mais longe no processo do seu próprio aperfeiçoamento. Tendo nascido incompleto, o homem possui o poder, logo também o dever, de transcender continuamente as condições que condicionam o seu modo de ser no mundo. Por isso dizemos com a cantora Mercedes Sousa, não basta viver, é preciso saber honrar a vida. Mas para que tal possa acontecer, é necessário poder contar com a colaboração ativa de outros seres humanos. É aqui que entra a educação enquanto prática intersubjetiva intencionalmente direcionada para a promoção da humanidade em cada um de nós. Neste sentido, a educação representa, em si mesma, um enorme desafio ético.
Na verdade, só teremos uma sociedade de todos quando forem superadas as desigualdades no acesso à educação. Apesar dos progressos registrados durante o século XX, o mundo entrou no novo século com cerca de 900 milhões de analfabetos, 100 milhões de crianças privadas de acesso à formação básica e com 70% dos seus professores, num universo de 57 milhões, a viver em condições materiais indignas no seu estatuto e da sua missão (UNESCO, 2004).
Sabemos que os melhores investimentos para a sociedade são aqueles que apostam no desenvolvimento permanente de cada pessoa. Ora, a educação constitui, sem sombra de dúvida, a melhor das apostas nesse sentido.
Cabe à educação dotar as pessoas, todas as pessoas, dos meios que lhes permitem compreender o mundo agir, sobre ele, relacionar–se solidariamente com os outros e decidir, em liberdade, sobre o futuro.
Ao recorrermos à História dela podemos extrair ao menos uma importante lição: a universidade tende a nascer e a se estabelecer lá onde ela atende às demandas por educação superior, isto é, ensino, pesquisa e extensão de qualidade.
E, nesse sentido, a UEMG e particularmente o Programa do Mestrado em Educação tem-se orientado por esses parâmetros. A história deste Programa tem dado uma grande contribuição ao desenvolvimento do Estado de Minas Gerais, mas também sofrido as consequências nefastas de crises econômicas e políticas erráticas de educação superior nesses últimos 10 anos.
Tive o privilégio de ser um dos fundadores do Mestrado. Do corpo docente inicial, apenas eu próprio e as minhas colegas Santuza e Lana “sobrevivemos”. Nesta década colegas saíram e entraram numa renovação permanente do quadro docente. Esta renovação, se por um lado foi muito desafiadora, pois permitiu ampliar o leque de experiências com tantos educadores, por outro lado, gerou, inevitavelmente, um quadro de enorme instabilidade e insegurança, sobrecarga de orientandos por professor, etc.
No caso específico das orientações importa realçar que o papel do orientador tem relevância não somente pela complexidade da função, em seus diversos aspectos, mas também pela tamanha responsabilidade de capacitar e qualificar alguém a ser autor de seu próprio trabalho. Um dos maiores problemas enfrentados pelos orientadores e orientandos na contemporaneidade, além da dificuldade de escrita e dos inevitáveis conflitos pessoais, é a diminuição de prazos para a escrita das dissertações e teses. Discutir o papel do orientador, também devido à exigência de produção de artigos e participação em eventos científicos com produção e várias formas de publicações exigidos nos meios acadêmicos, torna-se cada vez mais oportuno. O orientando tem como incumbência a escrita e a reescrita; em contrapartida, o orientador faz sua análise avaliativa, apontando partes dos textos/pesquisa que não estão adequadas e necessitam da reescrita. A tarefa de orientação é individualizada (avaliação da Capes) e a qualificação dos cursos reflete a soma do desempenho dos seus orientadores. A experiência acumulada, seguindo critérios de como se avalia o desempenho científico de um pesquisador, baseada na análise de suas linhas de pesquisa, de sua produção científica, número e qualidade dos trabalhos publicados, é um aspecto a ser considerado na orientação. O frenesi produtivo tem provocado um fenômeno diverso daquele a que se postulava, que é uma qualificada formação acadêmica, pois tem inibido produções mais detidas e jogado os pesquisadores em uma trincheira de competitividade.
Mas importa realçar que, mesmo com estes problemas, o corpo docente, técnicos-administrativos e estudantes, sempre estiveram e estão irmanados num projeto de formação humana e profissional de qualidade como um dever do Estado e um direito de toda a sociedade. Comprometido com uma cultura política identificada com processos democráticos, o programa de Mestrado em Educação tem possibilitado conviver, internamente, com as contradições próprias a uma instituição social como é a universidade, mas também transmitindo à comunidade externa seu compromisso com uma educação de qualidade e de respeito à diferença.
Para não ficar apenas em termos abstratos , eu teceria um breve comentário ao que foi minha própria experiência profissional neste programa ao longo da última década. Esta minha experiência, salvaguardadas as devidas exceções, não é muito diferente das dos meus colegas. Por isso, alguns dados estatísticos da minha trajetória do programa, que a seguir apresentarei podem ser encarados como uma média pois, seguramente, alguns colegas terão dados estatísticos superiores e outros inferiores aos dados da minha trajetória.
Vejamos então alguns desses dados:

As disciplinas que ministrei no programa

Disciplinas obrigatórias:
·         Sociedade e Educação Brasileiras: questões contemporâneas de formação humana;
·         Educação e Formação Humana.
Disciplinas optativas:
·         Fronteiras do Pensamento;
·         Educação e Diversidade Cultural;
·         A linguagem do cinema e questões pedagógicas: elementos pra uma educação do olhar;
·         Diálogos da arte com a Educação.
Alguns projetos de pesquisa
·         Poesia e etnicidade nos livros didáticos de português: um estudo comparativo Moçambique e Brasil;
·         Música como processo de desenvolvimento cognitivo e motor na educação infantil;
·         Educação ambiental: da teoria à implementação nas Escolas Públicas de Belo Horizonte;
·         O cinema em Belo Horizonte no olhar dos educadores/cinéfilos: pelas trilhas da História e da memória.
Publicações
·         3 livros publicados;
·         11 livros organizados;
·         17 capítulos de livros publicados;
·         15 artigos completos publicados em periódicos;
·         7 trabalhos publicados em Anais;
·         9 artigos em revistas.
Fazendo uma média destas 64 publicações, significa que nestes 10 anos foram publicados 6 por ano, ou seja, uma a cada dois meses.
·         28 pareceres solicitados para trabalhos a publicar.
·         Membro de conselhos editoriais de várias revistas.
·         Membro da Comissão de Acompanhamento Discente por 9 anos e responsável pela mesma Comissão durante os últimos 6 anos.
·         Participação em 3 comissões de Revalidação de títulos do exterior.
·         Inscrevi-me num Concurso para professor efetivo para a área de Educação e Tecnologia na UEMG. Fui aprovado para a única vaga oferecida.
·         Fiz meu pós-doutorado na Universidade de Lisboa.
·         Fui convidado pela Universidade Eduardo Mondlane, a principal universidade pública de Moçambique, para ministrar duas conferências em 2017 e 2018.
·         Junto com meus alunos de uma turma de mestrado criei em 13/05/2011 o BLOG “Navegaçõesnas Fronteiras do Pensamento”.
Nestas quase 9 anos de funcionamento já tem cerca de 15 mil postagens de todos os campos do saber.
·        Tornei-me Membro da Anistia Internacional.
·        Como intelectual não me furtei aos debates na mídia, em defesa de causas que considero justas. Nesse sentido, travei polêmicas na internet com um sociólogo e um escritor moçambicanos, com um historiador brasileiro e com um dos principais jornalistas da Televisão portuguesa. Essas polêmicas estão inseridas no Blog “Navegações nas Fronteiras do Pensamento” para quem tiver interesse em conhecê-las.

Todas as ações que descrevi só se tornaram possíveis, não apenas pelo meu esforço pessoal, mas porque me senti sempre acolhido e apoiado pelo Programa de mestrado na pessoa dos meus queridos colegas e pessoal administrativo e pelas várias instâncias pedagógicas e administrativas da UEMG, particularmente as chefias do Departamento de Técnicas e Método de Ensino e a direção da Faculdade de Educação.
Reflexões finais ou como continuar lutando pelo Programa de Mestrado por forma a que ele continue sua luta para dar rosto ao futuro
O tempo destes 10 anos de programa do Metrado em Educação da UEMG foi um tempo de caminhar, de palavra em palavra, de frase em frase, de problema em problema. Tempo para aprender a escutar e a ser escutado, tempo para aprender a ajudar e a ser ajudado. Aqui vivenciei um tempo para pensar a vida, este foi o lugar de muitos encontros e de muitos começos. Lugar onde também aprendi a sentir o mundo. Lugar onde nos preocupamos, e ocupamos, com os outros. Foi neste lugar de aprendizagem, de humanismo e de cultura, que pude estabelecer plataformas de confianças e de compromisso com os colegas e com os alunos. Num mundo difícil, agitado, cheio de insegurança e de pressa, é preciso valorizar a chamada para a aventura de uma aprendizagem feita de esforço, de obstáculos e de desafios de uma descoberta contínua e exigente. Valorizar igualmente o espaço da alegria.
Como em toda a sociedade, o lugar da academia é um lugar de tensões, de conflitos. Eles ocorrem entre os alunos no seu diálogo como os docentes: a participação nas aulas, os momentos de avaliação, as leituras exigidas, os adoecimentos. Mas esse espaço pode e deve ser um lugar onde haja alegria, aqueles momentos proporcionados pelos professores e pelos alunos. Não posso deixar, entre tantos desses momentos, de referir, rapidamente, três deles:

1.    O diálogo com o aluno do Curso de Pedagogia que descobriu que eu não possuía celular. Um pouco antes de iniciar a aula das 19:00h no curso de Pedagogia, o primeiro aluno que chegou veio ter comigo e falou com um ar conspiratório e em voz baixa: “Ouvi dizer que o professor...”). Fez uma pausa e eu interpretei essa pausa como algo de muito ruim que teria acontecido e no qual eu estaria envolvido. Depois ganhou coragem e disse-me: “Ouvi dizer que o professor não tem celular”. Com muita naturalidade confirmei que não tinha celular. Quando se conseguiu recompor do espanto que a minha resposta lhe provocou, pois ele imaginava que tudo não passaria de um boato, falou: “Mas, professor, o celular é muito barato!!!!!”.

2.    Numa turma do Mestrado em educação passei o filme “O olhar de Michelangelo” (15’) do diretor italiano Michelangelo Antonioni, considerado uma das maiores obras de arte no campo do cinema. Quando o filme terminou, um aluno resolveu mostrar sua indignação e espanto com a obra que acabava de ver. Falou: “Mas, professor, neste filme não aconteceu nada”. De forma provocativa respondi “Sim, tem razão, não aconteceu nada, ou melhor, aconteceu tudo”. Com um olhar contaminado pelas produções hollywoodianas onde os efeitos especiais reinam soberanos, este aluno não tinha um olhar educado para observar detalhes estéticos e filosóficos. Depois de tecer vários comentários sobre a obra, o aluno se deu conta que precisaria começar a prestar mais atenção àquilo que não é tão diretamente acessível a um olhar menos atento e preparado. Sorriu, sorri com ele, a turma caiu na gargalhada. Este episódio desencadeou um processo de reflexão que me levou, logo que cheguei a casa, a começar a escrever um texto sobre esse filme. Ao longo de várias semanas de escrita terminei o texto a que dei o título “Para uma educação do olhar cinematográfico: visitando “O olhar de Michelangelo”. Pode ser lido no link aqui

3.    O episódio do meu concurso para professor efetivo na UEMG.
No ano de 2010 decidi inscrever-me num concurso para professor efetivo da Universidade do Estado de Minas Gerais. Minha formação é na área de História e Filosofia da Educação e o concurso era na área de Educação e Tecnologia. Eram 15 candidatos para uma vaga. Tive que estudar bastante, pois eu era o único candidato que não era da área de Educação e Tecnologia. No dia da prova escrita entre os 10 temas propostos, havia um “Elaboração de Softwares de Educação” que eu tinha enorme receio que fosse sorteado. Meu receio era tão grande que abertamente manifestei para os membros da banca e dos meus colegas candidatos, que se saísse esse tema “Eu pegaria o boné e sairia da sala”. Chegou o momento do sorteio e um dos candidatos foi chamado para retirar de uma caixa um papel dobrado. Desdobrou o papel e anunciou o tema da prova escrita para todos os presentes: “Elaboração de Softwares de Educação”. Eu desabei e todo o mundo ficou olhando para ver minha reação. Tinha estudado esse tema mais do que qualquer dos outros. Fiz a prova e, no final, quando fui entrega-la aos membros da banca fui questionado com a pergunta que não quer calar: “Mas você não disse que se se saísse este tema pegaria o boné e sairia da sala? E então, o que aconteceu?”.Sim, respondi, confirmo que eu fiz essa afirmação. Mas quando olhei para o lado constatei que não tinha trazido o boné”!!! Foi a gargalhada geral. A título informativo, passei no concurso.

Fechado este parêntesis com toques humorísticos, retomo minha fala, afirmando que a interação com outros espaços de aprendizagem, com outras lógicas de educação e formação, além do mais, constitui uma oportunidade preciosa para que o Mestrado em Educação possa sair de um espaço ainda com problemas preocupantes, nomeadamente a rotatividade do corpo docente.
Minhas vivências nestes 10 anos são o resultado da combinação singular de alguns ingredientes, produzidos à medida do sentido, do prazer, da ternura, da criatividade e da inteligência dos colegas e alunos com quem trabalhei e que fornecem conteúdos à vida, à sublime utopia de uma democracia assente na soberania dos cidadãos. Porque somos nós que trabalhamos em equipe que fazemos os lugares, os espaços, as cidades. Somos nós que enchemos os espaços de odores, de sabores, de sons, de memórias, de sonhos, de amores e de desamores. Na multidimensionalidade dos nossos atos de viver, partilhamos alegrias, tristezas, razões, afetos e emoções, construindo assim lugares de pertença e de comunidade. Em termos pedagógicos, o desafio passou por procurar dar expressão a esses atos, perspectivando-os numa lógica de desejo e de futuro, de acordo com os ideais de justiça e de solidariedade consensualizados no espaço acadêmico. Ou seja, potenciando–os enquanto atos de aprender intencionais e, como tal, racionalmente planificados.
A melhor forma de preservar o humano será a de instaurar dinâmicas de ruptura continua, impelindo o homem a aventurar-se na permanente reinvenção de si mesmo. A de, por um lado, levar cada um a descobrir, e a desenvolver, o que já possui dentro de si próprio e, por outro lado, provocar situações de trabalhos colaborativos propiciadores da ruptura e, nessa medida, de abertura a realidades nunca antes possuídas ou percorridas.
Estas duas posições nos colocam, na verdade, perante mais um dos equilíbrios necessários à tarefa do educador no exercício da sua missão impossível.
Educar significa empurrar para o exterior, incitando à viagem pelo desconhecido, mesmo sabendo que isso representa a possível quebra dos laços que dão conforto.
Por outro lado, porém, é necessário prevenir os riscos da domesticação e do doutrinamento. Vivemos tempos sombrios. Daí a importância da vigilância ética assegurada por uma consciência profissional crítica, reflexiva e atenta. Como educadores não temos o direito de vedar ao aluno o acesso às portas do futuro possível, a pretexto da falta de convicção ou de empenhamento, mas, por outro lado, não podemos tentar obter resultados a todo o custo, enveredando por manobras de sedução, de manipulação e de violência.
Os educadores formam para os valores, a partir de valores. Ou seja, ensinando com e desde valores. Enquanto profissionais da relação, são agentes privilegiados de proximidade humana. O seu testemunho ético começa na sua própria presença, sensibilidade e atitude. É importante a forma como escutam, como comunicam e partilham conhecimentos. A forma como se envolvem no trabalho de equipa, como lidam com as situações de conflito, como acolhem e respeitam a liberdade do outro. Porém, o dever de antecedência faz dos educadores mais do que meros agentes de contágio humano. A sua missão está investida de uma intencionalidade incontornável.
O educador demite–se da sua função educativa sempre que, dentro da sala de aula ou em qualquer outro espaço escolar, fecha comodamente os olhos perante comportamentos que reconhece como inaceitáveis. Cada vez que escolhe não intervir, abdicando da sua condição de autor, o professor põe em causa uma responsabilidade profissional. Naturalmente, e como acontece com qualquer outro poder, o exercício da autoridade pedagógica carece de reflexão, ponderação moral e mesmo de regulação.
O sentido de humanidade exigido por um mundo violento, incerto, problemático e especialmente desencantado como o nosso, é indissociável de uma ligação positiva a um lugar, de uma referência afetiva aos espaços onde se dorme, onde se come, onde se ama, onde se estuda, onde se trabalha e onde se partilham alegrias e tristezas. A sociedade tecnológica favorece o anonimato e, com ele, a solidão necessária também à afirmação de uma liberdade pessoal, mas ao inviabilizar os tradicionais espaços de encontro põe em causas as condições de emergência e de consolidação dos laços sociais. Justamente, pela sua vocação socializadora, o espaço acadêmico surge-nos como um espaço privilegiado para a emergência e consolidação desses laços. Façamos então desse espaço um lugar antropológico com tudo o que isso implica em termos de afeto, de memória e de identidade. O programa de Mestrado em Educação precisa continuar a ser um lugar de hospitalidade, de reconhecimento, de proximidade e de encontro, um lugar ode a formação humana esteja sempre no posto de comando.
Essa é a tarefa desafiadora que teremos pela frente, mas que estou certo estará à altura do nosso empenhamento, do nosso sonho em construir um mundo melhor.
Muito obrigado.

*Palestra proferida no dia 07/12/2019 por ocasião da comemoração dos 10 anos do Mestrado em Educação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).


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