domingo, 29 de dezembro de 2019

José de Sousa Miguel Lopes - O “tríbrido” cultural: refletindo sobre minha própria identidade


Naturalidade

Europeu, me dizem.
Eivam-me de literatura e doutrina
europeias
e europeu me chamam.
Não sei se o que escrevo tem raiz de algum
pensamento europeu.
É provável... Não. É certo,
mas africano sou.
Pulsa-me o coração ao ritmo dolente
desta luz e deste quebranto.
Trago no sangue uma amplidão
de coordenadas geográficas e mar Índico.
Rosas não me dizem nada,
caso-me mais à agrura das micaias
e ao silêncio longo e roxo das tardes
com gritos de aves estranhas.
Chamais-me europeu? Pronto, calo-me.
Mas dentro de mim há savanas de aridez
e planuras sem fim
com longos rios langues e sinuosos,
uma fita de fumo vertical,
um negro e uma viola estalando.

Rui Knopfli
(Poeta moçambicano de origem europeia)


Introdução

Alguns teóricos culturais argumentam que a tendência em direção a uma maior interdependência global está levando ao colapso de todas as identidades culturais fortes e está produzindo aquela fragmentação de códigos culturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanente, na diferença e no pluralismo cultural.
Em certa medida, o que está sendo discutido é a tensão entre o "global" e o "local" na transformação das identidades. As identidades nacionais representam vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias particulares. Elas representam o que algumas vezes é chamado de uma forma particularista de vínculo ou pertencimento. Sempre houve uma tensão entre essas identificações e identificações mais universalistas — por exemplo, uma identificação maior com a "humanidade" do que com a "portugalidade”, a “moçambicanidade” ou a “brasilidade”. Esta tensão continuou a existir ao longo da modernidade: o crescimento dos estados-nação, das economias nacionais e das culturas nacionais continua a dar um foco para a primeira; a expansão do mercado mundial e da modernidade como um sistema global davam o foco para a segunda.
Num mundo de fronteiras dissolvidas e de continuidades rompidas, as velhas certezas e hierarquias da identidade têm sido postas em questão.
A categoria da identidade não é, ela própria, problemática? É possível, de algum modo, em tempos globais, ter-se um sentimento de identidade coerente e integral? A continuidade e a historicidade da identidade são questionadas pela imediatez, pela intensidade das confrontações culturais globais.
Importa lembrar que o século XXI abre com uma confissão, a da extrema fragilidade de todos. E de Tudo.

Poder permanecer e poder mover-se livremente não serão condições sine qua non da partilha do mundo ou, ainda, do que Édouard Glissant chamou ‘relação global’? O que poderá identificar os seres humanos, em termos de reconhecimento, para além do acidente do nascimento, da nacionalidade e da cidadania? (Mbembe 2017, p. 248).

É neste quadro que me senti desafiado a pensar as questões identitárias a partir de minhas vivências/influências culturais, tomando como referências três culturas que, em maior ou menor grau, fizeram de mim o que sou.
Embora tenha visitado, por períodos bastante curtos, outros países na África, Europa e América Latina, essas fugazes permanências não possibilitaram que, de algum modo, tivesse sido marcado por traços culturais desses lugares. Assim, são as vivências ou permanências relativamente longas que permitem a aquisição de marcas culturais mais significativas.
Nesse sentido, defino-me como um “tríbrido” cultural, um neologismo sintático que ironicamente criei e que busca refletir, entre muitas influências que recebi na minha trajetória de vida, três que considero mais marcantes:
·         portuguesa, pois meus pais eram portugueses e eu estudei durante duas décadas (1954-1974) no sistema educacional no Moçambique colonial com professores portugueses e com o mesmo currículo de Portugal;
·         moçambicana, pois uma parcela significativa da minha vida decorreu em Moçambique (1946-1988) no qual recebi as influências da cultura africana (hábitos de convivência, hábitos alimentares, música, dança, alegria mesmo na adversidade...);
·         brasileira, pois cheguei ao Brasil para frequentar o ensino superior em 1988, portanto, há 32 anos, e acabei incorporando novos conhecimentos, vocábulos, outras pronúncias da língua portuguesa, outros hábitos alimentares, uma intensificação da cordialidade...
Outro “tríbrido” cultural que partilhou, salvaguardadas as devidas diferenças de trajetória e tempo histórico, foi o poeta brasileiro Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), português nascido na cidade do Porto, em Portugal e que veio para ao Brasil aos sete anos de idade. Foi um dos mais importantes revoltosos que participou da Inconfidência Mineira, acabando por ser deportado para Moçambique onde viria a morrer. Em terras moçambicanas, sua amargura por estar longe da pátria, ainda deixou espaço na sua poesia para traços esperançosos, com forte carga utópica e profundamente elogiosa à forma tão solidária como foi recebido pelos moçambicanos.
Algumas pessoas argumentam que o "hibridismo" e o sincretismo — a fusão entre diferentes tradições culturais — são uma poderosa fonte criativa, produzindo novas formas de cultura, mais apropriadas à modernidade tardia que às velhas e contestadas identidades do passado. Outras, entretanto, argumentam que o hibridismo, com a indeterminação, a "dupla consciência" e o relativismo que implica, também tem seus custos e perigos. O romance de Salman Rushdie sobre a migração, o Islã e o profeta Maomé, “Versos satânicos”, com sua profunda imersão na cultura islâmica e sua secular consciência de um "homem traduzido" e exilado, ofendeu de tal forma os fundamentalistas iranianos que eles decretaram-lhe a sentença de morte, acusando-o de blasfêmia.
Por conta dessas várias influências que recebi, enfrento situações curiosas nos meus deslocamentos geográficos que têm por cenário Moçambique, Brasil e Portugal e que acabaram dando forma à minha identidade cultural. Quando me desloco a Moçambique, alguns dos meus amigos dizem que, pela forma como falo, já estou muito abrasileirado, ou seja, já não sou um “verdadeiro” moçambicano! Quando visito Portugal, as pessoas me dizem ”você não é daqui, deve ser de algum país ex-colônia de Portugal em África ou, talvez, do Brasil”. Portanto, já não sou um português. No Brasil, pela forma como falo a língua portuguesa, de imediato me dizem que eu não sou brasileiro. Em resumo, não sou de lugar nenhum ou... sou de todos os lugares o que, devo reconhecer, me coloca numa posição em que posso exercitar com mais coerência mecanismos de solidariedade e de desprendimento.
O que de fato significa ter nascido em algum lugar? Como esse acidente assinalará de maneira tão irrevogável quem sou, como sou conhecido e por quem me tomam? Não pertencer propriamente a nenhum lugar é próprio do ser humano, uma vez que, por sua condição de ser composto por outros seres vivos e outras espécies, pertence a todos os lugares em conjunto. Portanto, aprender a passar constantemente de um lugar para outro deveria ser o projeto de qualquer ser humano, visto que esse é, de todo modo, seu destino. Como refere Mbembe (2017, p. 248):

...passar de um lugar para outro é também tecer com cada um deles uma dupla relação de solidariedade e de desprendimento. A essa experiência de presença e de diferença, de solidariedade e de desprendimento, mas nunca de indiferença, chamemos a ética do passante.

E acrescenta (Idem, p. 245):

Atravessar o mundo, dar conta do grau do acidente que representa o nosso lugar de nascimento e o seu peso de arbitrário e de constrangimento, agarrar o irreversível fluxo que é o tempo da vida e da existência, aprender a assumir o nosso estatuto de passagem, uma vez que é provavelmente, em última instância, a condição da nossa humanidade, a base da qual criamos a cultura – são, talvez, afinal, as questões mais difíceis do nosso tempo, que herdamos de Fanon na sua farmácia, a farmácia do passante.

Estamos assim em presença da figura de alguém que parte, que deixa seu país, que vive em lugares onde cria casa e liga seu destino ao daqueles que o acolheram e reconheceram, no seu rosto e sua singularidade, uma humanidade. Nesse processo, que implica tradução, mas também conflito e mal-entendidos, algumas questões vão dissolver-se por si, na busca do que nos é comum, de nossa condição comum.
Nunca procurei, pelo menos de forma deliberada, inserir-me na realidade brasileira, ou seja, pensar e agir como um brasileiro, mesmo com todas as diferenças culturais existentes neste imenso país. Isso poderia sugerir uma via de mão única. Ao contrário, pensava numa inserção em termos de troca igualitária: o único meio de retribuir a hospitalidade que meus anfitriões brasileiros me facultavam era procurar, ainda que inconscientemente, oferecer a eles algo que não possuíam e que dificilmente poderiam adquirir a não ser num encontro face a face com um pensamento e um modo de agir alternativos; algo novo e diferente que pudesse, eventualmente, enriquecê-los do mesmo modo que me tenho enriquecido no encontro com as vivências dos brasileiros. Na verdade, desejava ser aceito — mas aceito precisamente pelo que eu era, por minha dessemelhança.
Posso pensar em muitos países onde viver com tal atitude teria sido muito mais difícil, social e espiritualmente mais complexo. Se alguém tiver de ser um exilado ou um estrangeiro, o Brasil me parece ser o lugar mais adequado para se estar. Pode-se esperar boa vontade, respeito mútuo e bastante hospitalidade — com a condição de que não se queira fingir que se é brasileiro... Além disso, quem aqui chega não é colocado numa classe, mas numa categoria separada, de “estrangeiro”, na qual a liberdade de pensamento e de ação tem amplo espaço; os estrangeiros escapam da atribuição de classe, de certo modo inflexível e rija, que interfere na vida dos outros...
É óbvio que o fator linguístico exerceu em mim, e exerce até hoje, uma forte aproximação cultural. Tendo como língua materna a língua portuguesa, vindo de Moçambique cuja língua oficial é a portuguesa, foi bastante fácil a minha inserção em território brasileiro.
Portugal, Moçambique, Brasil, países que falam a língua portuguesa, comunidades nascidas da viagem, da transposição de fronteiras e da mestiçagem - que são elementos estruturantes das culturas portuguesa, moçambicana e brasileira – estas três “comunidades” culturais não são apenas o outro lado do mar, mas o outro lado da nossa alma. O nosso modo próprio e único de sermos europeus, africanos e latino-americanos. Em seu poema “Língua-Mar” (1997), o brasileiro Adriano Espínola nos fala dessa língua oceânica, na qual a língua portuguesa se transformou ao longo de uma prolongada viagem:

A Língua em que navego, marinheiro,
na proa das vogais e consoantes,
é a que me chega em ondas incessantes
na praia deste poema aventureiro.

É a Língua Portuguesa - a que primeiro
transpôs o abismo e as dores velejantes,
no mistério das águas mais distantes,
e que a gora me banha por inteiro.

Língua de sol, espuma e maresia,
que a nau dos sonhadores-navegantes
atravessa caminho dos Instantes,
cruzando o Bojador de cada dia.

Ó Língua-Mar, viajando em todos nós!
No teu sal, singra errante a minha voz.

Pátria-língua, língua-pátria, nos lábios dos poetas é uma só realidade, ao mesmo tempo caminho e luz. A partir das peculiares diversidades gramaticais com que seres humanos de diferentes azimutes ideológicos e culturais exprimem suas ideias, não traem, não poluem nem disformam as fecundas raízes seculares, configuradas nas trocas e apropriações linguísticas.
Para além disso, minha inserção contou com a “presença” de Moçambique e da África em geral na consciência brasileira que se manifesta na religiosidade, nas cores, nas gestualidades, na forma de falar a língua portuguesa, nas danças, nas comidas. Muitos terreiros do candomblé (só no Maranhão são mais de 2000) são ilhas de África no Brasil.
Em muitas circunstâncias, posso me sentir "fora de lugar". Diria que esse sentimento implica perdas e ganhos, mas é algo que me agrada. Não tenho certeza se tal atitude foi fruto de uma escolha livre que gradualmente se tornou um hábito, ou se foi, e ainda é, um meio de transformar uma necessidade em virtude. Perdas devem ocorrer, como ser ocasionalmente objeto de desconfiança ou, em casos absolutamente raros, de rejeição. Mas os ganhos superam imensamente as perdas. No meu ponto de vista (e por experiência), estar "fora de lugar", ao menos em parte do nosso ser, não concordar completamente, manifestar divergência e dissensão, é o único meio de resguardarmos nossa autonomia e liberdade. Estar "dentro", mas parcialmente "fora", é também um meio de preservar o frescor, a inocência e a surpreendente ingenuidade de visão. Quem está assim situado tende a fazer perguntas que não ocorreriam àqueles estabelecidos mais solidamente; tende a notar o estranho no familiar, o anormal no óbvio. Este longo afastamento do meu país (embora com alguma irregularidade o visite) é, muito frequentemente, uma situação de desconforto, mas também de expansão do pensamento crítico, de independência, insight e criatividade. No conjunto, minha grande sorte foi ter tido a possibilidade de viajar, estudar e ser professor universitário no Brasil e conviver com tantos brasileiros de várias regiões e classes sociais. Ao transpor uma fronteira novos desafios emergem.

A problemática das fronteiras

A capacidade de decidir quem pode se mover, quem pode se estabelecer onde e sob quais condições, ocupa cada vez mais o centro de lutas políticas por soberania, nacionalismo, cidadania, segurança e liberdade. O poder da fronteira está em sua capacidade de regular as múltiplas distribuições das populações – humanas e não humanas – sobre o corpo da terra, e, assim, afetar as forças vitais de todos os tipos de seres.
É importante levar em consideração que a questão de um mundo sem fronteiras é uma intenção obviamente utópica. Às vezes, de forma irônica, afirmo para os meus alunos e para os meus amigos que no espaço reservado à nacionalidade do meu passaporte gostaria que tivesse a inscrição “cidadão do mundo”. Mas se quiser ser mais radical, o ideal seria não ser necessária a existência, sequer, desse documento.
Desde a sua origem, o “movimento”, ou mais precisamente “a ausência de fronteiras”, tem sido central para várias tradições utópicas. O próprio conceito de utopia refere-se ao que não tem fronteiras, a começar pela imaginação em si. O poder da utopia consiste em sua capacidade de representar a tensão entre a ausência de fronteiras, o movimento e o lugar, uma tensão – se observarmos com cuidado – que marcou as transformações sociais na era moderna. Essa tensão continua nas discussões contemporâneas sobre processos sociais baseados no movimento, especialmente a migração internacional, as fronteiras abertas, o transnacionalismo e até o cosmopolitismo. Nesse contexto, a ideia de um mundo sem fronteiras pode ser um recurso poderoso, embora problemático, para o social, o político e até mesmo para a imaginação estética.
Antes de tudo, importa referir que a África pré-colonial pode não ter sido um mundo sem fronteiras, pelo menos não no sentido em que as temos definido; as fronteiras existentes sempre foram porosas e permeáveis. A função de uma fronteira, na realidade, é ser cruzada. É para isso que ela serve. Não há fronteira concebível fora desse princípio, a lei da permeabilidade. Como atestam as tradições de comércio de longa distância, a circulação era essencial. Era fundamental na produção de formas culturais, arranjos políticos, configurações econômicas, sociais e religiosas. O veículo mais importante para a transformação e a mudança era a mobilidade. Não era a luta de classes, no sentido em que a compreendemos. A mobilidade era o motor de qualquer tipo de transformação social, econômica ou política. Aliás, era o princípio indutor por trás da delimitação e da organização do espaço e dos territórios. Assim, o princípio primordial da organização espacial era o movimento contínuo. E isso ainda é parte da cultura hoje. Parar é correr riscos. É preciso estar em constante movimento. Sobretudo em situações de crise, essa é a própria condição da sobrevivência. Se você não se move, as oportunidades de sobreviver diminuem. Logo, o domínio sobre a soberania não era expresso exclusivamente por meio do controle de território, marcado fisicamente com fronteiras. Como era, então? Se não se controla um território, como se pode exercer a soberania? Como se pode extrair qualquer coisa, uma vez que, pelo que sabemos, o poder se expressa também, se não essencialmente, por meio de alguma forma de extração?
Tudo isso era representado pelas redes. Redes e encruzilhadas. As encruzilhadas, os fluxos de pessoas e os fluxos da natureza, ambos em relações dialéticas, porque nessas cosmogonias as pessoas são impensáveis sem o que chamamos de natureza.
A corrida para a África no século 19 e a demarcação de suas fronteiras de acordo com as linhas coloniais transformou o continente africano em um enorme espaço carcerário no qual fizeram de cada africano um imigrante ilegal em potencial, impedido de circular salvo sob condições cada vez mais punitivas. Na realidade, o aprisionamento se tornou a precondição para a exploração do trabalho dos africanos e, por isso, as lutas pela emancipação racial e por melhorias das condições de vida dos negros são tão entrelaçadas às lutas pelo direito de circular livremente. Se se quiser concluir o trabalho de descolonização, é preciso derrubar as fronteiras coloniais africanas e transformar a África num vasto espaço de circulação para os africanos, para seus descendentes e para todos aqueles que quiserem ligar seus destinos a este continente.
Assim, a África, tal como a conhecemos hoje, não é difícil constatar que é uma construção europeia. Os europeus a batizaram, a desenharam e criaram fraturas no coração de conjuntos homogêneos, impondo a sua língua através de políticas de assimilação. Línguas maternas que se falam em Moçambique são faladas também em países com quem Moçambique faz fronteira, como é o caso da África do Sul, Suazilândia, Zimbabwe, Zâmbia, Malawi e Tanzânia. Se for fato que nem todas as tradições desapareceram, não se pode negar que os povos africanos necessitam atualmente de se recriar e reinventar. É um desafio que deve ser levado em conta e aceite, mesmo que seja doloroso e que, de certa forma, signifique habitar as identidades de fronteira construídas historicamente. O hibridismo é, portanto, uma condição do estrangeiro, do africano que se desloca no mundo.
Dado que o mundo colonial foi pensado como um mundo dividido em dois, que funcionava segundo uma dialética de exclusão recíproca das identidades nele simetricamente colocadas, o mundo pós-colonial define-se pelo desaparecimento dessa dialética. Ele não está mais dividido em dois, mas mostra-se, antes, em termos de diferenças, de misturas, de hibridismo e de ambivalência.
Em resumo, qualquer verdadeira desconstrução para fechar e demarcar fronteiras entre “aqui e acolá, o próximo e o distante, o interior e o exterior” deve fazer a crítica a todas as formas de universalismo abstrato.

Uma herança inevitável: as culturas nacionais

Impossível pensar em identidades culturais, ignorando que o lugar privilegiado de suas constituições ocorre no interior das culturas dos Estados-Nação. Sabemos que as culturas nacionais são compostas não apenas de instituições culturais, mas também de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um discurso — um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos. As culturas nacionais, ao produzirem sentidos sobre "a nação", sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades. Esses sentidos estão contidos nas estórias que são contadas sobre a nação, memórias que conectam seu presente com seu passado e imagens que dela são construídas. Como argumentou Benedict Anderson (2008), a identidade nacional é uma "comunidade imaginada".
O discurso da cultura nacional não é, assim, tão moderno como aparenta ser. Ele constrói identidades que são colocadas, de modo ambíguo, entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entre a tentação por retornar a glórias passadas e o impulso por avançar ainda mais em direção à modernidade. As culturas nacionais são tentadas, algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuar defensivamente para aquele "tempo perdido", quando a nação era "grande"; são tentadas a restaurar as identidades passadas. Este constitui o elemento regressivo, anacrônico, da estória da cultura nacional. Mas, frequentemente, esse mesmo retorno ao passado oculta uma luta para mobilizar as "pessoas" para que purifiquem suas fileiras, para que expulsem os "outros" que ameaçam sua identidade e para que se preparem para uma nova marcha para a frente. Esta vertente está bastante visível no projeto de governo de extrema-direita que desde o início de 2019 governa os destinos da nação brasileira.
Ao refletirmos sobre as nações, pode-se constatar que a maioria delas consiste de culturas separadas que só foram unificadas por um longo processo de conquista violenta, isto é, pela supressão forçada da diferença cultural. Moçambique, por exemplo, tem mais de duas dezenas de culturas étnicas, línguas e religiões. Durante o período colonial, que só terminou em 1975, a tática do colonialismo, aliás, de todos os colonialismos, era a de dividir para reinar. Assim, um moçambicano do sul não conhecia a cultura e a língua de um moçambicano do norte, o que instaurava uma relação de incomunicabilidade. Depois da independência era necessário construir a nação e todas as formas que o poder político considerava como forças de divisionismo eram combatidas. Afirmava-se não existirem as etnias changanasmacondes ou rongas, mas sim que todos eram moçambicanos. As várias línguas étnicas eram silenciadas e se valorizava apenas a língua portuguesa, a língua oficial do novo país.
Por outro lado, importa ter em consideração que as nações são sempre compostas de diferentes classes sociais e diferentes grupos étnicos e de gênero. E não se deve ignorar que as nações ocidentais modernas foram também os centros de impérios ou de esferas neoimperiais de influência, exercendo uma hegemonia cultural sobre as culturas dos colonizados.
Assim, em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são atravessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo "unificadas" apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural.
Uma forma de unificá-las tem sido a de representá-las como a expressão da cultura subjacente de "um único povo". A etnia é o termo que utilizamos para nos referirmos às características culturais — língua, religião, costume, tradições, sentimento de "lugar" — que são partilhadas por um povo. É tentador, portanto, tentar usar a etnia dessa forma "fundacional". Mas essa crença acaba, no mundo moderno, por ser um mito. A Europa Ocidental, por exemplo, não tem qualquer nação que seja composta de apenas um único povo, uma única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas, híbridos culturais.
É ainda mais difícil unificar a identidade nacional em torno da raça. Em primeiro lugar, porque — contrariamente à crença generalizada — a raça não é uma categoria biológica ou genética que tenha qualquer validade científica. Há diferentes tipos e variedades, mas eles estão tão largamente dispersos no interior do que chamamos de "raças" quanto entre uma "raça" e outra. A diferença genética — o último refúgio das ideologias racistas — não pode ser usada para distinguir um povo do outro. A raça é uma categoria discursiva e não uma categoria biológica. Isto é, ela é a categoria organizadora daquelas formas de falar, daqueles sistemas de representação e práticas sociais (discursos) que utilizam um conjunto frouxo, frequentemente pouco específico, de diferenças em termos de características físicas — cor da pele, textura do cabelo, características físicas e corporais, etc. — como marcas simbólicas, a fim de diferenciar socialmente um grupo de outro.
Alguns teóricos argumentam que o efeito geral de processos globais tem sido o de enfraquecer ou solapar formas nacionais de identidade cultural. Eles argumentam que existem evidências de um afrouxamento de fortes identificações com a cultura nacional, e um reforço de outros laços e lealdades culturais, "acima" e "abaixo" do nível do estado-nação. As identidades nacionais permanecem fortes, especialmente com respeito a coisas como direitos legais e de cidadania, mas as identidades locais, regionais e comunitárias têm-se tornado mais importantes. Colocadas acima do nível da cultura nacional, as identificações "globais" começam a deslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidades nacionais. O fenômeno das novas tecnologias e as redes sociais revela como em Moçambique a inserção na comunidade global é visível não apenas nos grandes centros urbanos, mas também nos meio rurais (vestuário, hábitos alimentares, música...).

O impacto das migrações no atual processo de globalização e seus reflexos identitários: tradição e tradução

Uma das questões que tensiona o campo dos direitos humanos é justamente a restrição contemporânea do direito ao universalismo, a pertencer ao mundo, a viajar por ele e deixar a sua marca como humano.
A associação entre os que chegam de fora e a iminência de perigo não é nova: a ideia do estrangeiro como boca a mais e roubador de empregos, de cujas manias e doenças ameaçam diretamente a integridade do corpo nacional está, com diferentes modulações e matizes, presente em toda a história.
No entanto, na contemporaneidade, esse comportamento apresenta algumas especificidades: o possível e falado inimigo é posto como um perigo difuso, sem rosto, sem nome e sem lugar, podendo ser uma religião, uma ideia, uma civilização.
Estes inimigos, que surgem geralmente sob caricaturas, clichês e estereótipos, são representados como não semelhantes com os quais nenhum acordo é possível ou desejável, o que é traço de um tempo de indisposição para a partilha. A proposta da igualdade universal foi gradual e violentamente substituída por um “mundo sem”: sem muçulmanos, negros, terroristas e estrangeiros, que devem ser deportados, torturados “pessoalmente ou por procuração”. O discurso é o da suspensão ou restrição das constituições, da lei, dos direitos, das liberdades públicas, das nacionalidades, enfim, de todas as proteções e garantias até hoje consideradas como adquiridas. Tal processo seria uma espécie de saída da democracia que “suspende as normas em nome de proteger as próprias normas”, que, portanto, não seriam para todos.
À incessante busca por um inimigo soma-se a mobilização contemporânea do racismo, um dado fundamental de nosso tempo, central na vida das populações em movimento, passando pelas histórias de negação de imigrantes, de nacionais que continuam sendo vistos e chamados de imigrantes, de fronteiras que devem ser restauradas, de intrusos, de inimigos, de segurança nacional e de tradições, infinitas histórias que se reciclam. Existe uma relação direta entre o recrudescimento do racismo e a maneira como as populações estrangeiras não brancas são representadas. Essas populações correm constantemente o risco de serem atingidas por alguém, por uma instituição, por uma voz, por uma autoridade pública ou privada que lhes pede para justificar quem são, por que razão estão ali, de onde vêm, para onde vão, por que não voltam para casa.
A globalização retém alguns aspectos da dominação global ocidental, mas as identidades culturais estão, em toda parte, sendo relativizadas pelo impacto da compressão espaço-tempo.
Talvez o exemplo mais impressionante deste impacto seja o fenômeno da migração. Após a Segunda Guerra Mundial, as potências europeias descolonizadoras pensaram que podiam simplesmente cair fora de suas esferas coloniais de influência, deixando as consequências do imperialismo atrás delas. Mas a interdependência global agora atua em ambos os sentidos. O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro, num dos períodos mais longos e sustentados de migração "não-planejada" da história recente. impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome, pelo subdesenvolvimento econômico e por colheitas fracassadas, pela guerra civil e pelos distúrbios políticos, pelo conflito regional e pelas mudanças arbitrárias de regimes políticos, pela dívida externa acumulada de seus governos para com os bancos ocidentais. As pessoas mais pobres do globo, em grande número, acabam por acreditar na "mensagem" do consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os "bens" e onde as chances de sobrevivência são maiores. Na era das comunicações globais, o Ocidente está situado apenas à distância de uma passagem aérea.
A globalização tem, sim, o efeito de contestar e deslocar as identidades centradas e "fechadas" de uma cultura nacional. Ela tem um efeito pluralizante sobre as identidades, produzindo uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação, e tornando as identidades mais posicionais, mais políticas, mais plurais e diversas; menos fixas, unificadas ou trans-históricas. Entretanto, seu efeito geral permanece contraditório. Algumas identidades gravitam ao redor da "Tradição", tentando recuperar sua pureza anterior e recobrir as unidades e certezas que são sentidas como tendo sido perdidas. Outras aceitam que as identidades estão sujeitas ao plano da história, da política, da representação e da diferença e, assim, é improvável que elas sejam outra vez unitárias ou "puras"; e essas, consequentemente, gravitam ao redor da "Tradução".
Importa salientar que o conceito de Tradução descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas sem a ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a negociar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem assimiladas por elas e sem perderem completamente suas identidades. Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas. A diferença é que elas não são e nunca serão unificadas no velho sentido, porque elas são, irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interconectadas, pertencem a uma e, ao mesmo tempo, a várias "casas" (e não a uma "casa" particular). As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sitio obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra "tradução", observa Salman Rushdie, "vem, etimologicamente, do latim, significando "transferir", "transportar entre fronteiras". Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, "tendo sido transportados através do mundo..., são homens traduzidos" (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia.
Naquilo que diz respeito às identidades, essa oscilação entre Tradição e Tradução está se tornando mais evidente num quadro global. Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado. Pode ser tentador pensar na identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro: ou retornando às suas "raízes" ou desaparecendo através da assimilação e da homogeneização. Mas esse pode ser um falso dilema.
Tanto o liberalismo quanto o marxismo, em suas diferentes formas, davam a entender que o apego ao local e ao particular dariam gradualmente vez a valores e identidades mais universalistas e cosmopolitas ou internacionais; que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicas de apego —a espécie de coisa que seria "dissolvida" pela força revolucionária da modernidade. De acordo com essas "metanarrativas" da modernidade, os apegos irracionais ao local e ao particular, à tradição e às raízes, aos mitos nacionais e às "comunidades imaginadas", seriam gradualmente substituídos por identidades mais racionais e universalistas. Entretanto, a globalização não parece estar produzindo nem o triunfo do "global" nem a persistência, em sua velha forma nacionalista, do "local". Os deslocamentos ou os desvios da globalização mostram-se, afinal, mais variados e mais contraditórios do que sugerem seus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto, isto também sugere que, embora alimentada, sob muitos aspectos, pelo Ocidente, a globalização pode acabar sendo parte daquele lento e desigual, mas continuado, descentramento do Ocidente.

Considerações finais

Falando de minha condição de passante, de minha situação comum de vulnerabilidade no mundo, parece-me pertinente tomar em consideração um pensamento de passagem, de travessia e de circulação, relacionado ao trajeto, à circulação e à transfiguração, de forma que habitar não é pertencer. Assim, se faz necessário recusar as classificações que imobilizam, elogiando uma ética que considere a tradução, os mal-entendidos e conflitos, recuperando o corpo, o rosto, a palavra.
Então uma nova linguagem faz-se necessária, uma linguagem afiada, que tenha como fim atormentar a realidade não apenas para soltar seus cadeados mas, sobretudo, para salvar vidas. Essa nova linguagem passa pelo corpo, o rosto e a voz:

Restaurado à vida e, assim, diferente do corpo rebaixado da vida colonizada, este novo corpo será convidado a pertencer a uma nova comunidade. Desenvolvendo-se de acordo com o seu próprio plano, caminha agora com outros órgãos, podendo assim recriar o mundo (Mbembe, 2017, p. 250).

Inspirado pela fala de Mbembe, diria que habitar o mundo é partir de certo lugar, um lugar matriz (uma matriz de lugar) que aprendemos a desprender para articulá-lo a outros lugares, aprendendo a se dessituar para habitar um espaço mais vasto. Emergem aqui as “identidades de fronteira”, ancoradas num espaço de acolhimento permanente, e não de ruptura. É a fronteira definida como o lugar onde os mundos inevitavelmente se tocam; o lugar da oscilação constante: de um espaço ao outro, de uma sensibilidade à outra, de uma visão de mundo à outra. É onde as línguas se misturam – não necessariamente de forma florescente, mas impregnando-se naturalmente umas nas outras, para produzir, numa página em branco, a representação de um universo composto, híbrido. A fronteira evoca a relação e faz nascer um novo significado.
Apesar de poderem indicar violência, ódio e desprezo, as fronteiras também anunciam que os povos se encontraram e que

...as plantas não se reduzem às suas raízes e estas podem ser replantadas e florescer num novo solo. Uma planta também pode cruzar as suas raízes com as de outra e engendrar um novo ser vivo. O mundo ao qual pertencemos é, em primeiro lugar, aquele que trazemos em nós (Miano, 2012, p. 25).

Ao refletirmos sobre o caso das mobilidades, se faz necessário recuperar também a bem-vinda luta por uma narrativa da hospitalidade a ser partilhada em um mundo comum. Uma narrativa que frustre a ideologia securitária dominante, que ignora todas as práticas de hospitalidade que constroem outra compreensão do nosso mundo. Segundo o filósofo Guillaume Le Blanc (2018), a prática da hospitalidade tem como desafio participar na disputa de poder e ultrapassar o discurso da utopia. Assim, Le Blanc propõe restituir a inteligência (eficiência) da hospitalidade na nossa sociedade, tornando-a uma palavra de ordem política.
Tomás Antônio Gonzaga, o poeta brasileiro que atrás referimos, enquanto esteve deportado em Moçambique escreveu um poema “Os africanos peitos caridosos” que incorpora, simultaneamente e de forma emblemática, a narrativa da hospitalidade e a da utopia:

A Moçambique aqui vim deportado.
Descoberta a cabeça ao sol ardente;
Trouxe por irrisão duro castigo
Ante a africana, pia boa gente.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!
Não esmolei, aqui não se mendiga;
Os africanos peitos caridosos
Antes que a mão infeliz lhe estenda,
A socorrê-lo correm pressurosos.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!

Nesta busca de diálogo com o outro, consta-se como são longínquos os laços entre brasileiros e moçambicanos. Como Gonzaga, quase dois séculos depois, moçambicanos e brasileiros, continuam tendo como bússola a utopia. Ela dá sentido à estrela de que falava o poeta. Mas mais do que estrela o que se configura é a valorização do humano.
O itinerário da hospitalidade passa não só por receber e acolher, mas também por partilhar. O receber, dar alívio (e segurança) diz respeito a um imperativo humanitário, moral e ético. Quando alguém tem necessidade, vamos prestar-lhe ajuda, qualquer que seja a pessoa: este é o ponto de partida, e que deve estar sempre presente. No entanto, a passagem do alívio ao acolhimento está completamente quebrada. Sabemos como ajudar, não sabemos acolher. Porque acolher supõe um longo tempo, um espaço durável, um dispositivo em que se leva tempo para sustentar uma existência, para ver com ela aonde ela quer ir. Este desenvolvimento sustentável da política humana não está na agenda. A política da hospitalidade aparece então como uma resposta potente à política da inimizade.
Assim importa pensar numa condição que ultrapasse as “essências” identitárias que nos afastam e constroem muros entre nós. Nela não há fantasia, longe disso, já que, por si só, opera a síntese de toda a inflexão, que se concentra em pensar a interpenetração de culturas e imaginários. Deste modo, o Todo Mundo designa a nova copresença de seres e coisas, o estado de globalidade em que reina a relação. Seja na ética do passante, que visa evitar a necropolítica e a política da inimizade, seja na relação global pode nos ajudar a pensar os direitos humanos como plataforma de luta em que a dignidade humana não seja relativizada.
Glissant (2008, p. 53) considera precioso o direito à diferença, não para tolerá-la, mas para fazê-la se relacionar ao Uno, compósito e também ambíguo. Nessa relação, caberia ao outro, tentação máxima da pretensão ao universal, introduzir o Diverso nas culturas modernas, em suas errâncias e na reivindicação estrutural de uma igualdade sem reservas.
Mais abrangente do que a miscigenação ou o sincretismo sintético, a “creolização do mundo” aventada por Glissant (1996) é concebida como processo de formação das sociedades crioulas. Imprevisíveis, tais sociedades nasceriam do desenvolvimento de novas entidades culturais oriundas de variadas estradas, sem a diluição de suas origens.
O grande desafio da atualidade, mais do que em outros períodos, é o de enfrentar uma cultura em movimento. Um caminho do meio consiste nesses procedimentos de deslocamento, de nomadismo, em que a identidade possa nascer da tensão entre o apelo do enraizamento e a tentação da errância, um caminho do meio para superar o fundamento encerrado pela questão identitária: afirmar-se e excluir o outro. Portanto, a afirmação das identidades passa por um processo de diferenciação, onde se estabelece uma relação complementar entre as alteridades.
Estas identidades, que como vimos, são todas identidades de fronteira, nascem da dor, do roubo, do estupro, da auto-aversão. Elas tiveram de atravessar múltiplas sombras para inventar uma ancoragem sobre as areias movediças e se impor não contra, mas entre os outros. No fundo, elas habitam um espaço de cicatriz. A cicatriz não é a ferida, é a nova “linha” de vida que se criou. Ela é o campo dos possíveis, os mais insuspeitos. É o motivo da sombra e da luz, onde uma sempre engendra a outra, onde não se coloca a hipótese de escolha, mas de assumir: a sua parte da sombra e a sua parte da luz. Este movimento, esta dualidade, representa o fundamento da natureza humana. O humano é, antes de tudo, esta criatura de contraste que habita um lugar onde a sombra e a luz se tocam.

Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia da Letras, 2008.

ESPÍNOLA, Adriano. In: Jornal de Letras, Artes e Ideias. Lisboa, 1997.

GLISSANT, Édouard. Pela opacidade. Criação & Crítica, n. 1, pp. 355. 2008.

LE BLANC, Guillaume. 2018. Il manque le courage politique pour secourir, accueillir et appartenirDisponível aqui Acesso em: 1 dez. 2019.

MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona. 2017.

MIANO, Léonora. Habiter la frontière. Paris: L’Arche. 2012

RUSHDIE, Salman. Imaginary HornelandsLondres: Cranta Books, 1991.


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