quarta-feira, 27 de setembro de 2017

'Desigualdade no Brasil é escolha política', diz economista

Economista irlandês Marc Morgan no prédio do Ipea, em Brasília

'Desigualdade no Brasil é escolha política', diz economista

MARIANA CARNEIRO
FLAVIA LIMA
DE BRASÍLIA

24/09/2017  

As medidas de ajuste fiscal do governo do presidente Michel Temer tendem a elevar ainda mais a desigualdade no Brasil, diz o economista irlandês Marc Morgan Milá, 26.
Em entrevista à Folha na última segunda-feira (18), ele afirma que a contenção dos gastos públicos afetará especialmente os mais pobres.
As novas conclusões do economista estão provocando um debate sobre a realidade dos últimos 15 anos: a desigualdade no Brasil não caiu como se pensava até então.
Para ele, os sucessivos governantes brasileiros optaram por não enfrentar o problema, evitando políticas que poderiam limitar a renda do topo da pirâmide, como um sistema tributário mais justo.
"A história recente do Brasil nos leva a dizer que houve uma escolha política pela desigualdade."
Morgan está no Brasil, onde participa de estudos com economistas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O grupo pretende lançar, ainda neste ano, uma série da desigualdade brasileira com início em 1926.
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Folha - Os críticos dos governos do PT partem da sua pesquisa para questionar a leitura de que a desigualdade caiu. O que aconteceu de fato?
Marc Morgan Milá - Análise mais minuciosa mostra que, na verdade, não é que a desigualdade não caiu entre 2001 e 2015, ela não caiu tanto quanto se imaginava. Meu estudo mostra que a queda da desigualdade é bem menor.
A interpretação anterior estava errada?
É apenas equivocada, não representa a sociedade corretamente. Houve declínio da desigualdade de renda no mercado de trabalho, como mostra a Pnad [pesquisa por domicílio realizada pelo IBGE]. Mas os mais ricos não respondem a pesquisa ou escondem fontes de riqueza. Então, não há representação acurada do topo.
Quem são os ricos no Brasil?
O grupo dos 1% mais ricos tem cerca de 1,4 milhão de pessoas, com renda anual a partir de R$ 287 mil. O 0,1% mais rico reúne 140 mil pessoas com renda mínima de R$ 1,4 milhão. Enquanto isso, a renda média anual de toda a população é de R$ 35 mil. É uma discrepância muito grande. Esse é o ponto importante no caso brasileiro: a concentração do capital é muito alta.
O Brasil é um caso extremo?
O Brasil é um animal diferente. É o país mais desigual do mundo, com exceção do Oriente Médio e, talvez, da África do Sul. Um ponto importante é que todos os governos brasileiros das últimas décadas têm responsabilidade por isso.
Em que sentido?
A história recente indica que houve uma escolha política pela desigualdade e dois fatores ilustram isso: a ausência de uma reforma agrária e um sistema que tributa mais os pobres. Para nós, estrangeiros, impressiona que alíquotas de impostos sobre herança sejam de 2% a 4%. Em outros países chega a 30%. A tributação de fortunas fica em torno de 5%. Enquanto isso, os mais pobres pagam ao menos 30% de sua renda via impostos indiretos sobre luz e alimentação.
Que papel têm os programas de transferência de renda na redução da desigualdade?
As transferências chegam aos mais pobres, mas o sistema tributário injusto faz com que o ganho líquido se torne menor. Como esses programas representam cerca de 1,5% da renda nacional, o nível de redistribuição que se pode obter com eles é limitado. Fora que as transferências são financiadas por impostos que incidem sobre o consumo. E como o consumo pesa mais no orçamento dos mais pobres, é possível dizer que os mais pobres estão pagando por parte das transferência que recebem.

O Brasil falhou ao não resolver o problema durante o boom de commodities?
A alta das commodities poderia ter sido usada para melhorar o quadro, mas não é preciso um boom de commodities para reorganizar o sistema tributário. Tributação mais justa é muito mais importante dos que as transferências de renda e algo que todos os governos brasileiros nas últimas décadas falharam em fazer.

O ajuste fiscal pode impactar a desigualdade?
O congelamento das despesas públicas por 20 anos pode ter impacto negativo sobre a desigualdade porque são os mais pobres que dependem mais dessas despesas. Também pesam na conta a legislação sobre terras e a política fiscal, seja na criação de uma tributação mais justa, seja na retirada de renúncias que beneficiam os mais ricos.

Quais renúncias?
A principal é a taxação de lucros e dividendos. O Brasil é um dos únicos que não taxam dividendos distribuídos à pessoa física. Obviamente, isso favorece as pessoas de renda mais elevada.

Por que é tão difícil reduzir a desigualdade no Brasil?
É uma escolha política. O conflito distributivo vem de longa data, o país foi o último do Ocidente a abolir a escravidão. Outra explicação para o nível alto de desigualdade está na natureza do Estado: grande historicamente. Isso não é necessariamente ruim, mas sim a forma como ele se organiza e transfere recursos. Acredito que tenha relação com a estrutura herdada de regimes passados.

Que tipo de estrutura?
Por exemplo, as evidências do período da ditadura são de que a desigualdade era maior, em especial no fim do regime militar. O crescimento econômico podia ser maior, mas a desigualdade era também elevada. Não há evidências de que o país esteja voltando àqueles níveis, mas é uma possibilidade.

Melhor combater a pobreza em vez da desigualdade?
Pobreza e desigualdade estão relacionadas. Há políticas que podem atacar ambas, não devemos restringir o foco em apenas uma delas.

Nos últimos 15 anos, a pobreza foi reduzida, é inquestionável. Ao mesmo tempo, a desigualdade melhorou um pouco porque muitas pessoas pobres ascenderam.
Mas os pobres ainda são muito pobres e a diferença de renda entre os dois extremos é muito elevada. Ao se excluir os 20% mais ricos, a renda dos 80% restantes no Brasil é equivalente à dos 20% mais pobres na França. A desigualdade é semelhante à da França do final do século 19.
Daí, é possível ver a jornada que se tem pela frente. Talvez não sejam necessários cem anos, afinal Brasília foi construída em cinco.
Não fizemos novamente o bolo crescer sem distribuí-lo?
Não devemos enxergar crescimento e desigualdade como opostos, como se para ser mais igualitário fosse necessário reduzir o crescimento. A economia acelera quando as pessoas que estão na base passam a consumir ou poupar mais.
Será que os que estão no topo da pirâmide vão parar de consumir ou investir menos se pagarem um pouco mais de impostos? Não é o que parece.
Qual o impacto da recessão sobre a desigualdade?
Políticas de austeridade costumam afetar mais os pobres. É plausível pensar que os níveis desigualdade vão parar de melhorar nos próximos anos se essas políticas forem implementadas. As expectativas não são favoráveis para a continuidade da queda da desigualdade de renda.


FONTE: Aqui

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