Quando os poetas dialogam
Imbondeiros (baobás) – Moçambique
Ponte 25 de abril - Lisboa
Esta postagem tem uma história. Num e-mail enviado à Cristina Vicente (1), amiga de longa data, coloquei, sem qualquer tipo de comentário, um poema do Manoel de Barros, um de meus poetas brasileiros preferidos. Estava longe de imaginar que a reação de minha amiga a este poema, fosse... um outro poema. “Ouçamos” primeiro o poema de Barros, mote que inspirou a digressão dialógica de Maria Machamba (2). É a partir desse poema, na inquietude da sua íntima condição, que a autora vai desvelando nos seus versos o silêncio desabitado, buscando uma condição de sujeito capaz de devanear, sonhar, produzir sentidos num sujeito ao qual, na fissura entre a realidade e a imaginação, só lhe resta o sussurro e a fuga.
José
de Sousa Miguel Lopes
Prezo
insetos mais que aviões.
Prezo
a velocidade
das
tartarugas
mais
que a dos mísseis.
Tenho
em mim
esse
atraso de nascença.
Eu
fui aparelhado
para
gostar de passarinhos.
Tenho
abundância
de
ser feliz por isso.
Meu
quintal
É
maior do que o mundo.
Manoel de Barros
Prezo
amigos mais que insetos
Estórias
mais que autores.
Os
jardins, as árvores ainda mais que os livros.
Passarinhos,
gatos, cães
Certamente
mais que todos os insetos.
Mas
sim, tal como o Manoel de Barros
Também
eu prefiro os insetos aos aviões.
Sou
feliz com a música
Mas
não apenas, no meu quintal
Azeitonas,
pão quentinho, chocolate, morangos, ameixas
Ai,
que nem sei se não os prezo mais que à astronomia, pintura, política, biologia,
medicina
Tal
é a abundância de matéria, de saber.
Amo
a terra, toco-a, planto-a
Congemino
o seu germinar na magia das coisas.
E
a brisa quente e suave mais que o vento.
Mais
que isso, silêncio
Porque
vou confidenciar, no meu jardim...
Prezo
a vida, mais que a morte
A
morte mais que a tortura.
O
Homem, mais que a Deus.
E
só prezo alguns
A
ti também.
O
adeus não prezo.
Prefiro
o até sempre
Que
é uma forma mais consciente
De
ir e ficar ao mesmo tempo.
O
adeus ou até sempre, têm uma ordem, que só mora no meu pensamento.
Prezo
os homens mais que as fronteiras.
O
horizonte que às vezes é maior que a janela
Como
o conto ultrapassa a escrita
Ou
o pensamento
Mais
veloz que os sentidos.
Prezo
tantas coisas mais que insetos.
Mas
porque não hão-de ser os gafanhotos, ainda que canhotos,
mais
prezados que a vida ou a morte, ou que o conto?
Ou
as abelhas, vá, que sustêm todo o equilíbrio do mundo
Em
cada flor que se abre e fruto que se forma.
Se
os livros nem conseguem saltar de esguelha
E
as estórias não vão além da memória.
Só
os insetos, por pura discricionariedade, hão-de valer menos que os poetas.
E
mais que os aviões.
Maria Machamba
(1) Cristina Vicente, nascida em Moçambique em 1971 e
descolonizada para Portugal ainda na tenra infância, filha e trineta de
professores, neta de emigrantes machambeiros, lendo precocemente, evidenciou
cedo a escrita poética. Advogada, consultora jurídica em funções públicas,
entre outros desempenhos, a escrita, contida, transformou-se por longo tempo em
ferramenta oficinal, laborando cuidadosamente para que não lhe coscuvilhasse a
alma.
Maria Machamba é um pseudónimo nascido
de um diálogo imaginário entre esta cidadã europeia do século XXI, ativa e
cosmopolita, e um inteligente e bem humorado lente e mestiço de cultura,
aspirante a griot. No momento em que o griot a convence a escutar
a sua escrita, e embora desconfie não haver nela sons, fogo ou essência de
imbonda, Maria Machamba nasce depois de ter estado morta.
Com vivências familiares marcadas por
uma ligação distante, não obstante intensa e lúcida, a um continente
desconhecido, a autora, partindo do afeto profundo por baobás e num regresso às
suas origens africanas, marca agora o tempo intimista do reencontro de amizades
improváveis e da escrita, para uma viagem extraordinária entre continentes, e
sujeitos, pelo mundo da ciência, da música, das artes, ou qualquer outro campo
fértil da vida.
(2) Machamba - Terreno agrícola para produção familiar em
Moçambique.
4 comentários:
O que dizer pra os outros
Que dizem tudo da gente
Que traduzem insetos e aviões
Em viagens incomuns...
Obrigado!
Coisa de encanto,em dia ensolarado e proximidade de árvores, flores, pássaros e insetos, receber calor via carinho de amigo moçambicano e poesia brotada daquelas raízes!
Obrigada por essa beleza!
DELÍCIA!!!!!
Na sequência do teu Prezar...
Prezo tudo e quase nada, mas prezo...prezo gente como Tu nesta minha sensibilidade da vida, prezo carinho, amizade conversas banais, pessoas, sinais...prezo inocência, pureza e a beleza interior...prezo palavras e silêncios...prezo Almas mais que os corpos, a sinceridade mais do que as crenças...prezo os sentires, gestos, olhares...prezo a luz da musica dos saberes...prezo a dança combinada entre a paz a generosidade a ternura e o carinho...e prezo muito a da tua doce amizade...
Grata por me deixares sentir a tua Alma!
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