O músico moçambicano João Carlos Schwalbach nas palavras de Mia Couto
Leia o
que o prestigiado escritor moçambicano Mia Couto escreveu, em 2001,
sobre o músico moçambicano João Carlos Schwalbach*:
Nos
momentos em que o mundo a si mesmo se interroga, nesse intervalo em que
perdemos chão, surge como que uma canção que restabelece a ordem ou, pelo
menos, a ilusão do fim da desordem. Usei já as palavras do poeta: “no auge da
tempestade há sempre um pássaro para nos tranquilizar. É a ave desconhecida que
canta antes de voar”. Quando escreveu estas palavras, René Char sabia da
existência desses seres que, mesmo no silêncio, escutam vozes e cantos. São
esses os tradutores do silêncio. São os que, quando tudo parece calado,
decifram mensagens de aves que transitam de outros mundos. Esses são os
músicos. São eles que redigem aquilo que o texto poético aspira: ser música, ser
peça cantável num mundo encantável.
Sucedeu
quando, há pouco mais de duas dezenas de anos, os guerrilheiros atravessavam as
matas de Niassa e Cabo Delgado. Eles não traziam apenas uma arma apontada
contra um tempo cinzento. Eles eram mensageiros de um outro mundo, que se
pretendia novo e se anunciava mais humano. Enquanto caminhavam eles cantavam.
No início dos encontros com os camponeses entoavam-se canções. Celebrava-se,
pode-se dizer, a invenção de uma esperança. Como se tratasse de um ritual que
assumia caráter religioso. Pouco importa aqui saber quanto o mundo mudou,
quanto a profecia foi ou não cumprida. Importa que se criava, se produzia a
canção como um presságio. Os cânticos da luta de libertação nacional ficaram,
testemunho de um período em que cantando nos cantávamos.
Agora,
parecemos empobrecidos de canções. Possivelmente, trata-se de um sinal de
quanto estamos carentes de sonho. E mais do que sonho, estamos carecidos de
sermos sonhadores. E de sermos sonhados. Mas existem vozes que não desistem.
Entre essas vozes está a de João Carlos. Que desde há anos não desiste de nos
trazer, para além do silêncio, esse convite para que não desistamos de nós
mesmos. João Carlos reinstala, como a ave no auge da tempestade, a esperança de
que tudo pode renascer. Daí a gratidão que mantenho para com este jovem
moçambicano que prossegue essa conversão mágica, esse poder criador que ele
generosamente teima em partilhar com outros músicos. Mas que sempre tem como
destinatário a nossa necessidade de sermos encantados. Mesmo que o mundo pareça
perder o encanto. Por essa teimosia, por esse dedilhar da esperança, essa
indecifrável escrita, nota a nota nas costas do silêncio e da ausência. Por
tudo isso, obrigado, João Carlos.
Mia Couto
Ouça
agora a interpretação das músicas “Nascimento” & “Cordas bambas”
de João Carlos Schwalbach, clicando aqui
*Pianista, compositor,
arranjador e produtor, nasceu em Maputo - Moçambique. Iniciou seus estudos de
piano aos 7 anos de idade na Escola Nacional de Música em Maputo durante dois
anos. Em seguida, foi um autodidata até que passou a estudar no prestigiado Departamento
de Música da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em São Paulo -
Brasil, onde se formou em Música Popular em 1999. Em 2002 completou o Mestrado
em Etnomusicologia na SOAS (Escola de Estudos Orientais e Africanos) -
University of London, no Reino Unido. Além de sua carreira solo (projetos:
Despertar, VIAJENS, 100 Palavras, Fortaleza, entre outros), é membro da
lendária banda moçambicana “Ghorwane” desde 1993 (www.ghorwane.com) e participa de muitos outros projetos
como pianista/tecladista/produtor/programador, tanto com artistas nacionais
como internacionais. É o fundador da Ekaya Produções Lda (www.ekayaproductions.com),
uma empresa de trabalho bem estabelecida em diversas áreas da indústria na
região: estúdio de gravação, mistura e masterização, pós-produção áudio, Film
Scores/Som faixas/design de som, jingles, Concerto de Produção, Distribuição
Music. João é também o fundador da gravadora independente ManinGroove.
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