sábado, 17 de agosto de 2013

O músico moçambicano João Carlos Schwalbach nas palavras de Mia Couto

Leia o que o prestigiado escritor moçambicano Mia Couto escreveu, em 2001, sobre o músico moçambicano João Carlos Schwalbach*:
 
Nos momentos em que o mundo a si mesmo se interroga, nesse intervalo em que perdemos chão, surge como que uma canção que restabelece a ordem ou, pelo menos, a ilusão do fim da desordem. Usei já as palavras do poeta: “no auge da tempestade há sempre um pássaro para nos tranquilizar. É a ave desconhecida que canta antes de voar”. Quando escreveu estas palavras, René Char sabia da existência desses seres que, mesmo no silêncio, escutam vozes e cantos. São esses os tradutores do silêncio. São os que, quando tudo parece calado, decifram mensagens de aves que transitam de outros mundos. Esses são os músicos. São eles que redigem aquilo que o texto poético aspira: ser música, ser peça cantável num mundo encantável.
Sucedeu quando, há pouco mais de duas dezenas de anos, os guerrilheiros atravessavam as matas de Niassa e Cabo Delgado. Eles não traziam apenas uma arma apontada contra um tempo cinzento. Eles eram mensageiros de um outro mundo, que se pretendia novo e se anunciava mais humano. Enquanto caminhavam eles cantavam. No início dos encontros com os camponeses entoavam-se canções. Celebrava-se, pode-se dizer, a invenção de uma esperança. Como se tratasse de um ritual que assumia caráter religioso. Pouco importa aqui saber quanto o mundo mudou, quanto a profecia foi ou não cumprida. Importa que se criava, se produzia a canção como um presságio. Os cânticos da luta de libertação nacional ficaram, testemunho de um período em que cantando nos cantávamos.
Agora, parecemos empobrecidos de canções. Possivelmente, trata-se de um sinal de quanto estamos carentes de sonho. E mais do que sonho, estamos carecidos de sermos sonhadores. E de sermos sonhados. Mas existem vozes que não desistem. Entre essas vozes está a de João Carlos. Que desde há anos não desiste de nos trazer, para além do silêncio, esse convite para que não desistamos de nós mesmos. João Carlos reinstala, como a ave no auge da tempestade, a esperança de que tudo pode renascer. Daí a gratidão que mantenho para com este jovem moçambicano que prossegue essa conversão mágica, esse poder criador que ele generosamente teima em partilhar com outros músicos. Mas que sempre tem como destinatário a nossa necessidade de sermos encantados. Mesmo que o mundo pareça perder o encanto. Por essa teimosia, por esse dedilhar da esperança, essa indecifrável escrita, nota a nota nas costas do silêncio e da ausência. Por tudo isso, obrigado, João Carlos.
 
Mia Couto
 

Ouça agora a interpretação das músicas “Nascimento” & “Cordas bambas” de João Carlos Schwalbach, clicando aqui
 


*Pianista, compositor, arranjador e produtor, nasceu em Maputo - Moçambique. Iniciou seus estudos de piano aos 7 anos de idade na Escola Nacional de Música em Maputo durante dois anos. Em seguida, foi um autodidata até que passou a estudar no prestigiado Departamento de Música da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), em São Paulo - Brasil, onde se formou em Música Popular em 1999. Em 2002 completou o Mestrado em Etnomusicologia na SOAS (Escola de Estudos Orientais e Africanos) - University of London, no Reino Unido. Além de sua carreira solo (projetos: Despertar, VIAJENS, 100 Palavras, Fortaleza, entre outros), é membro da lendária banda moçambicana “Ghorwane” desde 1993 (www.ghorwane.com) e participa de muitos outros projetos como pianista/tecladista/produtor/programador, tanto com artistas nacionais como internacionais. É o fundador da Ekaya Produções Lda (www.ekayaproductions.com), uma empresa de trabalho bem estabelecida em diversas áreas da indústria na região: estúdio de gravação, mistura e masterização, pós-produção áudio, Film Scores/Som faixas/design de som, jingles, Concerto de Produção, Distribuição Music. João é também o fundador da gravadora independente ManinGroove.





0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP