domingo, 10 de setembro de 2023

"Ignorâncias paternas" - Mia Couto

 



Ignorâncias paternas

 




Altas horas,


já secos cuspos e copos,


meu pai dizia:


vou reparar o teto.


E saía, para além da noite,


por interditos caminhos.


Minha mãe


retorcia a alma


nas magras mãos.


No peito, não no ventre,


a mãe vai gerando filhos.


Por trás dos cortinados,


seu olhar se desfiava


no longo rosário da espera.


Cegos para as suas fadigas


nós, os filhos,


pedíamos que nos alonjasse o medo.


E a voz dela acontecia


como inundação do rio:


lavando águas e tristezas.


Pobre do vosso pai, suspirava.


Que pena ela dele sentia


que, no escuro, em vão procurava.


A nossa casa, de tão alta,


não poderia nunca ter telhado.


Filhos deitados,


medos dormindo:


antes do meu pai regressar


já minha mãe


tinha reparado


as telhas todas do mundo.



 

Mia Couto


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