O 'momento ruim' de Zelensky
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Jamil Chade - Carta à ONU: quantos morreram enquanto os belos discursos eram lidos?
Caros
cidadãos do mundo,
Como ocorre
todos os anos, líderes de todo o mundo usaram o palco mais famoso da diplomacia
mundial nesta semana para fazer seus discursos, durante a Assembleia Geral da
ONU. Não faltaram promessas de paz e denúncias sobre a injustiça.
Mas, enquanto
os discursos ecoavam ainda pelas salas do prédio de Nova York, a Rússia lançava
uma operação de grande escala sobre o território ucraniano, os sauditas
anunciaram que iriam desenvolver uma bomba atômica se o Irã seguir na mesma
linha, gangues no Haiti declaravam que iriam derrubar o primeiro-ministro, o
Azerbaijão iniciava uma ofensiva militar no enclave de maioria armênia
Nagarno-Karabakh, centenas de imigrantes desembarcaram em Lampedusa e o calor
era evidente nas cidades brasileiras.
Enquanto os
ecos daquelas palavras ainda reverberavam, naquela noite, 750 milhões de
pessoas iam dormir famintas e 110 milhões de deslocados e refugiados sentiam
saudade de suas casas.
Mais
uma vez, nesta semana, sonolentos discursos embalam a inércia de um mundo que
vive um dos momentos mais sombrios em décadas e que, mesmo assim, não abala o
balé de limusines, jantares de gala, reuniões apáticas e diálogos de surdos.
Se somarmos
tudo o que foi dito nesta semana, a realidade é que a equação não fecha. E por
um só motivo: o que impera é a hipocrisia. Suspeito que não seja o mar que
causa náusea para milhões de refugiados que tentam escapar da morte e se
aventuram em cruzar as águas do Mediterrâneo.
Ouvimos do
presidente americano, Joe Biden, que o destino de bilhões de pessoas
pelo mundo o preocupa, enquanto mantém sanções seletivas contra inimigos,
entrega de armas para os amigos e apoio financeiro para quem não lhe conteste o
poder.
Ouvimos da boca
de ditadores que seus países "continuam a fortalecendo a democracia".
Ouvimos do presidente do Irã, Seyyed Ebrahim Raisi, que seu país é "o
futuro". Mas o silêncio imperou sobre a repressão contra as mulheres que
se rebelaram, justamente por não ter futuro.
Também vimos um
teatro de sombras, com fantoches gesticulando enquanto os cabos que suspendem
seus braços - e legitimidade - estavam a olhos nus.
Num dos
alertas mais poderosos, emergentes apontavam desesperadamente que estava na
hora das grandes potências entenderem que o mundo mudou. O não reconhecimento
da necessidade de uma reforma não significaria que o status quo seria mantido.
Mas que viveríamos um colapso.
Não faltaram os
charlatães e vendedores de ilusão, como o presidente de El Salvador que
resolveu que o assento de seu país na sala da ONU seria ocupado por sua filha
pequena. Em casa, ele prorroga a cada mês seu "regime de exceção".
Suas leis, em nome do combate ao crime, suspendem garantias individuais, o
direito de defesa e a liberdade de associação. Sua política de encarceramento
em massa levou El Salvador a ter a maior taxa de pessoas presas no mundo.
Poucos
daqueles discursos sobreviveriam a um teste simples de realidade. A meta de
erradicar a pobreza extrema e a fome extrema até 2030 está sob ameaça e
bastaria, por ano, um quarto do dinheiro destinado às armas para que esses
velhos sonhos da humanidade fossem atingidos.
Com metade
do dinheiro destinado para a guerra na Ucrânia o mundo atenderia 250 milhões de
pessoas afetadas por crises humanitárias espalhadas por mais de 40 países.
Sem
compromissos sólidos, os maiores emissores de CO2 do planeta sequer foram
convidados para a reunião nesta semana na ONU para tratar do assunto. O motivo?
A secretaria da ONU não tolera mais o uso de seus eventos para que esses
líderes continuem mentindo.
Neste teatro do
absurdo onde parte é realidade e parte é pesadelo, como diria Martin Esslin, o
que se constata é um triste espetáculo da falência de um sistema.
Hoje,
precisamos reconhecer: a irrelevância da ONU não é um risco. É uma realidade.
Ela é consequência de um mundo fraturado e a de uma estrutura que perpetua a
concentração de poder na mão de poucos.
A resposta,
porém, não é fechar suas portas, como pretende a extrema direita, e transferir
a tela de Portinari a um museu.
Num cenário no
qual não existem soluções nacionais para as crises que nos afetam, seguir a
receita de esvaziar a entidade ainda mais significaria abrir mão da única
experiência real de uma resposta global aos desafios que afetam a todos.
Encerrar
a única tentativa de se traduzir em tratados e esforços diplomáticos o sonho da
paz perpétua apenas nos jogará num inferno ainda mais dramático, com
consequências imprevisíveis.
Alguns
diriam que eu, depois de 23 anos nos corredores da ONU, ainda não entendi o que
é política e o conceito de poder. Se equivocam. O que eu me recuso a entender é
nossa indiferença ao sofrimento e a capacidade de aceitar tanta hipocrisia como
parte de nossa era. Me recuso a ceder e burocratizar minhas utopias e às
tentações infantis dos nacionalismos.
Construir uma
nova governança mundial não é uma opção. É uma necessidade. Em jogo, está nossa
sobrevivência.
Saudações
democráticas,
Jamil
Chade
Fonte:
UOL, 23/09/2023
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