O Plano Republicano para Devastar a Educação Pública na América
Prezado Mark
Zuckerberg, Li nos jornais espanhóis
uma notícia que desfarelou meu coração. A polícia descobriu na casa de um
ex-carteiro mais de 20 mil envelopes que jamais foram entregues. As contas de
luz, os eternos boletos e alertas judiciais estavam lá, para a sorte daqueles
que não as receberam. Mas também estavam naqueles sacos de lixo milhares de
cartas de amor, pedidos de perdão, convites para uma nova vida, declarações
sinceras de amizade. Nenhuma delas jamais
entregues. Originalmente, essa carta
eu escrevi para minha companheira de correspondências, Juliana Monteiro, e
faz parte de um novo livro que vamos lançar, na próxima semana: "Ao Brasil, com Amor" (Editora Autêntica). Agora, eu envio essas
palavras ao senhor. Sabe, fiquei pensando
quantos namoros asfixiados estavam naquelas sacolas imundas de pó naquela
casa descoberta pela polícia. Quantos apaixonados que, diante da falta de uma
resposta, fizeram suas malas e deixaram a cidade. Diante do silêncio, mudaram
de vida, de amores. O senhor que havia
cometido o crime foi devidamente denunciado. Se, enquanto eu lia a história
uma certa angústia me tomava o espírito, foi a acusação que me obrigou a
refletir. No documento oficial dos
procuradores, o delinquente era denunciado e detido por um crime bárbaro:
"a infidelidade na guarda de documentos". Infidelidade: quantos
crimes foram cometidos em seu nome. Não é verdade que, depois
de dedicar horas em um texto, buscar um papel, selo, envelope e, com o
coração batendo forte, buscar uma caixa de correio, entregamos tudo à sorte.
Há, entre o remetente e o correio, um pacto de confiança. É verdade que se
trata de um pacto com regras, contratos, padrões, um sistema sofisticado de
envios e até uma organização internacional com sede na palpitante cidade de
Berna. Mas, acima de tudo,
trata-se de um acordo de confiança mútua. Essa mesma relação é o
que marca instituições como o dinheiro. As regras existem, com seus bancos
centrais e um elaborado sistema financeiro. Mas aquele pedaço de papel apenas
tem um valor por existir um pacto na sociedade de que o lastro é aceito por
todos. Em nossas vidas, existe
outro acordo: o da democracia. Sim, países contam com constituições, leis,
tribunais e uma infraestrutura para garantir que suas regras sejam
respeitadas e cumpridas. Mas, uma vez mais, nada disso se sustentaria se não
houvesse um pacto de sociedade maior. Hoje, porém, ele está
profundamente ameaçado. Numa aliança espúria entre os desiludidos pelas
promessas de uma vida melhor, os frustrados pelo capitalismo, os
privilegiados que se recusam a abrir mão de seu poder e charlatães de toda
espécie, nutre-se a ideia de que existem caminhos alternativos para uma
sociedade. Estariam dispostos a
operar uma fraude massiva nas urnas? Estariam prontos para uma ruptura? Mas, senhor Zuckemberg,
minha impressão é que a ameaça é muito maior e a fraude no sistema já está
ocorrendo em grandes proporções. Para que o pacto da democracia e das urnas
funcione, a base é a de que todos nós votaremos com pleno controle de nossas
consciências. Mas qual a
legitimidade de um sistema eleitoral se nossas preferências foram hackeadas?
E se nossas decisões foram sequestradas? Saqueadas sem que
soubéssemos. Pior, com nossa ajuda. Ao longo de quase duas décadas,
entregamos todos nossos dados a um sistema sobre qual não temos controle
algum e sequer sabemos como funciona. Descobrimos, nos últimos
anos, acordos entre essas plataformas e serviços de inteligência. Descobrimos
contratos entre essas empresas e a venda de nossas informações, transformando
garotos em bilionários. O senhor sabe do que estou falando. Certa vez, em Londres,
Julian Assange me recebeu na embaixada do Equador, onde ele fugia da polícia.
Num papo longo, ele insistia que as redes sociais poderiam ser chamadas como
"o maior roubo da história". E com a nossa cumplicidade. Claro, o roubo de
todos nossos dados, nossa privacidade e, talvez, de nossos destinos. Para as redes que nos dão
a impressão de serem virtuais, contamos quantos filhos temos, o que
compramos, quem admiramos, quem são nossos amantes e entregamos as mentiras
para proteger um segredo. Postamos nossas alegrias e nossas tristezas. Hoje, o senhor sabe mais
de mim que minha mãe. No fundo, vocês me conhecem melhor que eu mesmo. Sabem
onde eu sugeri um encontro entre a minha casa e a da pessoa pela qual me
apaixonei. Ela sabe o que pensei no dia 1 de janeiro de 2016, numa madrugada
de insônia, no dia do nascimento do meu
primeiro filho ou em qualquer outra data. Está armazenado no sistema quais
palavras eu coloquei num buscador e, portanto, o que eu estava pensando. Nenhum regime
totalitário, com sua ampla rede de espiões e tentativa de controle, jamais
sonhou ter em suas mãos tal poder sobre sua população. Mas essa, sr. Zuckerberg, não é
apenas uma história do confisco de nossos dados, transformado em fortunas
inimagináveis. Há, no fundo, uma batalha por nossas consciências. Na verdade,
uma guerra total. Se eu posso saber cada uma das preferências daquela pessoa,
nada me impede de levá-la a consumir certos produtos. E oferecer exatamente o
que ela achou que precisava. Nada me impede de
apresentar àquele potencial consumidor um novo artista, com base nas
preferências que eu sei daquele meu cliente. E nada me impede de,
eventualmente, direcionar o debate político ou social para favorecer um certo
movimento político. Eu posso ensinar o ódio, o nojo e o desprezo. Eu posso
erguer um mito. O voto consciente,
portanto, estaria ameaçado por um sistema capaz de criar uma realidade
paralela e deslocada. No século 21, nossas
consciências estão no centro do debate. Mas, aqui, retomo o questionamento do
historiador Yuval Noah Harari. Sem o controle sobre nossas decisões, o
sistema democrático entraria em colapso? Qual legitimidade do voto se minha
escolha não é mais minha? Eles saberão de nosso
futuro antes de nós mesmos? Mas se eu sei o teu futuro antes de você, eu
talvez possa moldar esse teu destino, sempre deixando que você acredite que
foram tuas as decisões. Na Primavera Árabe, um
cartunista amigo meu, Patrick Chappatte, rabiscou algo que revelava muito
daquele momento e do otimismo que tínhamos sobre as redes sociais. Ele
desenhou um encontro fictício entre Hosni Mubarak e outros ditadores da
região. Pela janela do local onde os líderes autoritários conversavam,
podia-se ver uma multidão que pedia democracia. E um deles questionava aos
demais: quantos inimigos vocês têm hoje no Facebook? Sim, era ainda um
momento de esperança das redes sociais. Hoje, sem controle, são essas mesmas
plataformas que podem cancelar a democracia. O pacto foi desfeito? Será que
ele chegou a existir? Ao mandar esta carta ao
senhor, espero que o correio cumpra sua parte do acordo. Se alguém vai
definir meu destino, que seja arrombando a porta da minha casa, do meu
coração. E que eu esteja com minhas faculdades mentais intactas. Saudações democráticas. Jamil Chade FONTE: UOL (03/09/2022) |
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