quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

"Natureza morta" - Carlos Loures

 




Natureza morta



 

 

 

 

Olhando a natureza morta,


frias laranjas dormindo


numa fruteira inerme,


silenciosa,


que o azul cerúleo recorta


na quadrícula branca


da janela,


recuso a natureza


assim estagnada,


sem dentes, sem fome, sem desejo,


sem nada que triture as laranjas,


sem dedos que as esmaguem,


nem crianças que partam


a puta da fruteira,


sem sequer um grito de revolta


que trespasse a gélida fronteira


entre a morte e o silêncio


emoldurados


e a vida que se agita,


grita, ruge e dói


deste lado de cá


da maldita moldura.


Recuso a natureza


pálida, parada,


sem aves, vento ou som


que sulquem o azul do céu


desta natureza, assim


tão contra natura


como a que assassinada


a tiros de pincel,


jaz fria, morta  e enterrada


na tela e nas cores


desta pintura.




 

 

 

Carlos Loures





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