terça-feira, 18 de janeiro de 2022

"Falemos de paisagem" - Carlos Loures

 





Falemos de paisagem



 

 

 

 

Como queres, amigo, que haja flores nos meus versos,


como queres grinaldas e primavera no meu poema?


Em meu redor há homens humilhados, crianças


descalças e com fome, mulheres grávidas


trabalhando a terra. Como queres, amigo,


que eu veja esse tal céu azul de que tu falas,


esse sol eterno, que cante a beleza da paisagem,


se o sofrimento humano altera a cor das coisas?


É cinzenta a paisagem, é cor de cinza o céu,


por isso os meus poemas são cinzentos e sem beleza


(acaso tem beleza a fome?).


Sim, eu sei, poesia não é bem economia política


e humildemente sei que após os meus versos


tudo continuará cinzento – o dealbar


não será erigido pelos meus poemas


nem por quaisquer outros – mas sei também


que a poesia deve ser a verdade do poeta,


a sua maneira de explicar o mundo


e de o tentar transformar. Por isso digo


– um de nós está enganado e creio bem que és tu,


pois me pedes uma poesia que não pode nascer


de um homem que queira ser fiel ao seu povo.


Quando o céu for azul, prometo-te, amigo,


os meus versos o dirão e o meu poema será lírio,


deixará esta cor de lama e de sangue.


Quando o céu for azul, amigo meu


– antes, não!



 

 

 

 

 

Carlos Loures



 

 

 

 

 

 

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