sábado, 28 de dezembro de 2024

"Dia de Natal" - António Gedeão


 


Dia de Natal



Hoje é dia de ser bom.


É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,


de falar e de ouvir com mavioso tom,


de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.


É dia de pensar nos outros – coitadinhos – nos que padecem,


de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,


de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,


de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.



Comove tanta fraternidade universal.


É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,


como se de anjos fosse,


numa toada doce,


de violas e banjos,


entoa gravemente um hino ao Criador.


E mal se extinguem os clamores plangentes,


a voz do locutor


anuncia o melhor dos detergentes.



De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu


e as vozes crescem num fervor patético.


(Vossa excelência verificou a hora exata em que o Menino Jesus nasceu?)


Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)


Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.


Toda a gente acotovela, se multiplica em gestos esfuziante,


Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas


e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.



Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,


com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,


cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,


as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.



Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,


ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.


E como se tudo aquilo nos dissesse diretamente respeito,


como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.



A oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.


Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.


E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento


e compra – louvado seja o Senhor! – o que nunca tinha pensado comprar.



Mas a maior felicidade é a da gente pequena.


Naquela véspera santa


a sua comoção é tanta, tanta, tanta,


que nem dorme serena.


Cada menino abre um olhinho


na noite incerta


para ver se a aurora já está desperta.


De manhãzinha


salta da cama,


corre à cozinha em pijama.


Ah!!!!!!!


Na branda macieza


da matutina luz


aguarda-o a surpresa


do Menino Jesus.



Jesus,


o doce Jesus,


o mesmo que nasceu na manjedoura,


veio pôr no sapatinho


do Pedrinho


uma metralhadora.



Que alegria


reinou naquela casa em todo o santo dia!


O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,


fuzilava tudo com devastadoras rajadas


e obrigava as criadas


a caírem no chão como se fossem mortas:


tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.


Já está!


E fazia-as erguer para de novo matá-las.


E até mesmo a mamã e o sisudo papá


fingiam


que caíam


crivados de balas.



Dia de Confraternização Universal,


dia de Amor, de Paz, de Felicidade,


de Sonhos e Venturas.


É dia de Natal.


Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.


Glória a Deus nas Alturas.


 

António Gedeão




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