quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

"Nada consta" - ruy belo

 



Nada consta

 




Falta-me a folha cinco


E entretanto a barba foi crescendo


a minha barba veio crescendo ferozmente


indiferente à morte de um ou outro amigo


às letras protestadas aos desgostos domésticos


às viagens lunares às convenções às lutas


Quando as coisas se erguem contra o homem


se eriçam agressivas contra ele


nem ao poeta basta o parapeito das palavras


Eu por exemplo homem de pouco tempo


trazido pelos dias aqui estou


Continuo a dizer: se alguma coisa há


que podias perder e ainda não perdeste


de que já a perdeste podes estar certo


Falta-me a folha cinco


Estou com a barba feita


Ainda este ano talvez em marienbad


eu vi mulheres curtidas pelos lutos


Mal de morte é o meu


em plena posição de pé às três da tarde


em meio do movimento do rossio


sentado à tarde no cinema em dias de semana


Já caem carnes já se perdem pêlos


já quase só me resta a devoção


lisboa certos dias um amigo às vezes


Poucas coisas importantes pensei durante a vida


uma mesa de sol em pleno inverno


um mar incontroverso alguns papéis


– continua a faltar-me a folha cinco –


pois apesar de tudo nada consta



 
 
ruy belo


0 comentários:

  © Blogger template 'Solitude' by Ourblogtemplates.com 2008

Back to TOP