O chororô dos super-ricos e seus sabujos
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Prezada
ministra Margareth Menezes,
Numa das
principais praças de Paracatu (MG), na semana passada, os quadros de Cândido
Portinari eram expostos como um convite para que uma nação ousasse se olhar no
espelho.
Ao nos
retratar, Portinari mostrou ao mundo quem somos. Mas também nos chamou a lidar
com nossos desafios. Décadas depois de sua morte, em 1962, uma ala da sociedade
ainda prefere alimentar uma cegueira deliberada e criminosa sobre nossas
incoerências.
Ali, naquela
cidade, ocorria o Festival Literário Internacional de Paracatu. Não era apenas uma programação
cultural. Como um mestre de uma olaria artesanal, seu organizador Afonso Borges
fazia parte de um elenco de homens e mulheres que, por todo o país, atuam de
forma incansável na construção de uma obra imponente e que jamais será
concluída chamada "democracia".
Seus
instrumentos? Imagens, palestras e livros que lutam pela superação da opressão
que ainda sufoca milhões de brasileiros, pela promoção da diversidade de uma
nação em sua formação e pela urgente necessidade de reconhecimento da dignidade
de homens e mulheres invisíveis para muitos.
O
próprio pintor certa vez disse:
"É
preciso haver uma mudança. O homem merece uma existência mais digna. Minha arma
é a pintura".
Escrevo,
ministra, para dar um depoimento do que vi: a transformação da cultura,
literatura e da arte em verdadeiras trincheiras de defesa avançada da
democracia.
Sim, a
cultura e a arte como armas. E, por isso mesmo, temidas por grupos reacionários
e ditadores de plantão diante de seu poder libertador e revolucionário.
Não por
acaso, vimos na pequena cidade mineira o protesto de bolsonaristas que não
queriam que as igrejas fossem usadas para debater literatura ou para acolher a
arte.
Confesso que
não me surpreendeu.
A história
é repleta de casos de regimes autoritários que enxergam a cultura, arte e
literatura como ameaças. Sequestram essas armas para transformá-las, quando
podem, em instrumentos de manipulação.
Ao longo dos
séculos, a queima de livros não apenas impediu que uma população tivesse acesso
a certos escritores. Sua fumaça asfixiava a própria liberdade daquela
comunidade.
Soviéticos e
os rincões mais reacionários do interior dos EUA de fato se encontravam num
ponto em comum: a tentativa de resistir ao rock e sua insurreição promovida na
mente de tantos jovens.
Do Khmer
Rouge aos nazistas, passando pelos chineses ou o Talebã, o controle da arte e
da cultura foi um esforço deliberado de controle das consciências.
Portinari
sabia muito bem o que isso significou. No Brasil, os arquivos da polícia
revelam como ele era monitorado e temido. Foi investigado por sua participação
em movimentos pela paz, considerados como fachadas para um suposto plano
comunista.
Um homem que
propunha que a saudação de "bom dia" fosse substituída por
"democracia", de fato, era alguém a ser temido.
Como
resultado, foi impedido de receber prêmios no exterior e teve seu visto negado
pelos americanos, até mesmo para a inauguração de seu mural Guerra e Paz, na
sede da ONU.
Em Paracatu,
porém, nem os protestos e nem o controle da economia da cidade por segmentos
bolsonaristas pareciam intimidar aqueles que optaram por formar longas filas
numa livraria improvisada em uma de suas praças.
Eram pessoas
ávidas para ter em suas mãos os livros de Conceição Evaristo, Itamar Vieira
Junior ou Eliana Alves Cruz. Eram pessoas ávidas por cidadania, talvez uma
outra camada daquilo que o escritor Jeferson Tenório chama de "literatura
como um direito humano". "O ato mais transgressor que eu fiz na minha
vida foi me tornar leitor", disse, em recente entrevista.
Naquelas
longas filas estava a resposta a longos anos de uma tentativa de sufocar a
cultura no Brasil.
Naquelas
longas filas estava uma atitude desafiadora, como os personagens dos quadros de
Portinari. O Brasil é aquilo que ele retratou. Retirantes miseráveis e
oprimidos. Mas também fortes, dignos, sólidos como árvores, disposto a cantar a
liberdade e elegantes como seu flautista.
A cultura
e a arte são elementos que nos definem como humanos. Mas também precisamos da
arte como antídoto ao autoritarismo, contra a desinformação, contra o ódio e
contra a manipulação.
Em Paracatu e
diante dos quadros do pintor, ficou evidenciado que o resgate da cultura não é
um luxo. Ele faz parte da construção da democracia, da resistência contra
qualquer tipo de opressão e da reinvenção do futuro.
Ou como
escreveu Luana Tolentino, literatura é vida, um direito inegociável.
Em suas mãos,
ministra, está também a alma de um país.
Ouse
uma revolução.
Saudações
democráticas,
Jamil Chade – UOL (02/09/2023)
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