"Un soir à Lima" - Fernando Pessoa
Un soir à Lima
Vem a voz da radiofonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
“A seguir
Un soir à Lima”…
Cesso de sorrir…
Para-me o coração…
E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente.
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia….
O grande luar da África fazia
A encosta arborizada alvinitente.
A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente…
Mas só eu, à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava.
Exatamente “Un Soir à Lima”.
Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso ‘carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isto que ouço agora
Un Soir à Lima.
Prossegue na radiofonia
A mesma, a mesma melodia O mesmo
“Un Soir à Lima”.
Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz
E eu que nunca julguei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguém é homem para a sua mãe!
(…)
Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un Soir à Lima?
E num recanto de cadeira grande
Minha irmã,
Pequena e encolhidinha
Não sabe se dorme se não.
(…)
Meu padrasto
(Que homem! que alma! que coração!)
Reclinava o seu corpo basto
De atleta sossegado e são
Na poltrona maior
E ouvia, fumando e cismando,
E o seu olhar azul não tinha cor.
A minha irmã, criança,
No recanto da sua poltrona
Enrolada, ouvia a dormir
E a sorrir
Que estava alguém tocando
Se calhar uma dança.
E eu, de pé, ante a janela
Via todo o luar de toda a África inundar
A paisagem e o meu sonhar.
Onde tudo isto está!
Un Soir à Lima,
Quebra-te, coração!
Fernando Pessoa
17/09/1935
In: Poesia
1931-1935 e não datada, Assírio & Alvim, ed. 2006.
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