quinta-feira, 10 de agosto de 2023

"Un soir à Lima" - Fernando Pessoa

 




Un soir à Lima

 





Vem a voz da radiofonia e dá


A notícia num arrastamento vão:


“A seguir


Un soir à Lima”…



 

Cesso de sorrir…


Para-me o coração…


E, de repente,


Essa querida e maldita melodia


Rompe do aparelho inconsciente.


Numa memória súbita e presente


Minha alma se extravia….


O grande luar da África fazia


A encosta arborizada alvinitente.



 

A sala em nossa casa era ampla, e estava


Posta onde, até ao mar, tudo se dava


À clara escuridão do luar ingente…


Mas só eu, à janela.


Minha mãe estava ao piano


E tocava.


Exatamente “Un Soir à Lima”.



 

Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!


Que é do seu alto porte?


Da sua voz continuamente acolhedora?


Do seu sorriso ‘carinhoso e forte?


O que hoje há


Que mo recorda é isto que ouço agora  

    
Un Soir à Lima.


Prossegue na radiofonia


A mesma, a mesma melodia O mesmo


“Un Soir à Lima”.



 

Seu cabelo grisalho era tão lindo


Sob a luz


E eu que nunca julguei que ela morresse


E me deixasse entregue a quem eu sou!


Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.


Ninguém é homem para a sua mãe!


(…)


Onde é que a hora, e o lar e o amor está


Quando, mãe, mãe, tocavas


Un Soir à Lima?


E num recanto de cadeira grande


Minha irmã,


Pequena e encolhidinha


Não sabe se dorme se não.


(…)


Meu padrasto


(Que homem! que alma! que coração!)


Reclinava o seu corpo basto


De atleta sossegado e são


Na poltrona maior


E ouvia, fumando e cismando,


E o seu olhar azul não tinha cor.


A minha irmã, criança,


No recanto da sua poltrona


Enrolada, ouvia a dormir


E a sorrir


Que estava alguém tocando


Se calhar uma dança.



 

E eu, de pé, ante a janela


Via todo o luar de toda a África inundar


A paisagem e o meu sonhar.



 

Onde tudo isto está!


Un Soir à Lima,


Quebra-te, coração!




 

Fernando Pessoa




17/09/1935



In: Poesia 1931-1935 e não datada, Assírio & Alvim, ed. 2006.


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