Militares precisam ser punidos com Jair Bolsonaro para enterrar o golpismo
Alexandre Aragão de Albuquerque: A farra verde-oliva
Caro Neymar,
Depois de dez anos na
Europa, tua transferência para a Arábia Saudita revelou muito. Por vários
milhões de dólares, você emprestará sua imagem, suas postagens nas redes
sociais e até mesmo teu eventual desempenho em campo para ajudar um regime
autoritário e que viola direitos humanos diariamente a se reposicionar no
mundo.
Enterrados estão as
promessas de que você não se metia em política, que a questão tua era jogar
bola. Pois bem. Agora, cada vez que entrar em campo, ajudará a justificar a
existência de um ditador. Isso, meu caro, é política.
Você, assim como os demais
craques que optaram pela aventura saudita, faz parte de uma estratégia mais
ampla de promover uma suposta modernização do país. Pelo menos aos olhos do
mundo.
Mas deixe-me contar
o que ocorreria com tua mãe ou com tua irmã, caso vocês fossem sauditas:
No que país que te pagará
um valor obsceno de dinheiro, até 2018 as meninas não podiam fazer aulas de
esporte nas escolas e nem frequentar estádios. Verdade, depois de muitos
protestos, as mulheres sauditas conseguiram alguns direitos. Agora, elas podem
dirigir um carro e viajar sem a permissão de um homem.
Mas estamos longe de uma
situação de direitos iguais. Ativistas mulheres continuam impedidas de viajar
ao exterior e muitas estão detidas. No ano passado, a saudita Salma Al-Shehab
foi condenada a 34 anos de prisão por ter usado as redes sociais por defender
mais direitos para as mulheres. Quando ela terminar de cumprir essa sentença,
ela terá de permanecer em solo saudita por mais 34 anos. Ou seja, ela está
presa para sempre em seu país.
Na lei aprovada em 2022, a
relação entre homens e mulheres foi finalmente "codificada". Apesar
de alguns avanços, uma mulher ainda é obrigada a pedir autorização de um homem
- seu pai, irmão, tio ou avó - para se casar.
Uma vez casada, ela precisa
"obedecer" a seu marido. Esse marido ainda pode, por lei, impedir que
sua mulher viaje para estudar no exterior. E será dele a tutela dos filhos.
Também é necessária a
autorização de um homem para que uma mulher tenha acesso a saúde reprodutiva e
certos cuidados médicos.
Obviamente, qualquer
debate sobre gênero e sobre o movimento LGBTQI+ estão proibidos. Em 2020, por
exemplo, a Justiça saudita condenou a dez meses de prisão um blogueiro pelo
mero fato de ele ter escrito que homossexuais "merecem ter direitos"
Mas as mulheres e
homossexuais não são as únicas vítimas de teus atuais chefes. Qualquer um que
opte por se expressar livremente corre o risco de ser condenado a muitos anos
de prisão. Só no ano passado, mais de 15 pessoas foram sentenciadas por tais
atos de liberdade de expressão, com penas que variam de 15 a 45 anos.
Num só dia, as autoridades
sauditas executaram 81 homens por crimes como roubo, tráfico de armas e
"terrorismo", uma palavra jamais definida. Outros ainda foram
executados por "perturbar o tecido social e a coesão nacional" e
"participar e incitar manifestações e protestos". As autoridades
ainda executaram 20 pessoas por crimes relacionados a drogas.
Isso, claro, são as
decisões judiciais conhecidas. Há poucos anos, vimos o destino dado a um
jornalista - Jamal Kashooghi - que foi esquartejado num consulado saudita por
questionar o regime.
A lista de violações é
ampla e extensamente documentada. Não há como justificar que não se conhecia
essa realidade.
Obviamente você não é o
único a tomar esse caminho. Há uma legião de atletas e empresários dispostos a
fazer parte do plano saudita de convencer o mundo de que nada disso existe. A
estratégia é simples: usando o futebol, um regime dos mais autoritários vende
ao mundo uma ideia de modernidade, de abertura, de tolerância, de saúde e de
entretenimento.
Mas a história não
poupará quem se vendeu a um ditador.
Até hoje, o COI vive o
constrangimento de ter dado os Jogos Olímpicos de 1936 para Adolf Hitler. Mesmo
na Fifa, a Copa de Mussolini causa arrepios quando se constata que Il Duce deu
até mesmo um troféu seu para o vencedor do Mundial, claro, a própria Itália. Em
1978, João Havelange dizia que estava despolitizando o futebol ao levar a Copa
para a Argentina do ditador Videla.
Fique tranquilo. Não
estou comparando os fascistas aos sauditas. Apenas mostrando como o debate
entre o uso do esporte por líderes autoritários não é novo.
Você é apenas a
versão milionária e contemporânea de um antigo jogo: o de usar o papel picado
das arquibancadas para criar uma cortina de fumaça e camuflar a repressão.
Saudações democráticas,
Jamil Chade
Fonte: UOL,
19/08/2023
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