quinta-feira, 1 de junho de 2023

"Príncipe" - Ana Hatherly

 



Príncipe

 

 

 




Era de noite quando eu bati à tua porta


e na escuridão da tua casa tu vieste abrir


e não me conheceste.


Era de noite


são mil e umas


as noites em que bato à tua porta


e tu vens abrir


e não me reconheces


porque eu jamais bato à tua porta.


Contudo


quando eu batia à tua porta


e tu vieste abrir


os teus olhos de repente


viram-me


pela primeira vez


como sempre de cada vez é a primeira


a derradeira


instância do momento de eu surgir


e tu veres-me.


Era de noite quando eu bati à tua porta


e tu vieste abrir


e viste-me


como um náufrago sussurrando qualquer coisa


que ninguém compreendeu.


Mas era de noite


e por isso


tu soubeste que era eu


e vieste abrir-te


na escuridão da tua casa.


Ah era de noite


e de súbito tudo era apenas


lábios pálpebras intumescências


cobrindo o corpo de flutuantes volteios


de palpitações trémulas adejando pelo rosto.


Beijava os teus olhos por dentro


beijava os teus olhos pensados


beijava-te pensando


e estendia a mão sobre o meu pensamento


corria para ti


minha praia jamais alcançada


impossibilidade desejada


de apenas poder pensar-te.




São mil e umas


as noites em que não bato à tua porta


e vens abrir-me




 

 

Ana Hatherly


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