Retorno da contra-ofensiva ucraniana
Carta às potências nucleares: Desistimos do futuro?
Senhores líderes,
Pensem nas crianças, mudas
telepáticas. Pensem nas meninas cegas inexatas.
Escrevo aos senhores com
esses pedidos por ter lido, nesta semana, que seus governos gastaram estúpidos
US$ 82,9 bilhões em armas nucleares apenas em 2022. Isso
representa US$ 157.664 gastos por minuto.
Com esse dinheiro, o mundo
poderia ter bancado a vacinação de dois bilhões de pessoas contra a covid-19 ou
fornecido água potável e saneamento básico a 1,275 bilhão de pessoas por um
ano. O valor ainda seria suficiente para atender a mais de 250 milhões de
pessoas que vivem em crises humanitárias.
O que foi destinado para
armar o mundo com a ignorância da destruição total é quatro vezes o que meu
país —o Brasil— investe a cada ano em educação.
Vou ser muito sincero aqui.
Se o plano é desistir do futuro, quero ser avisado imediatamente. Tenho muito
ainda a fazer, coisas a dizer, canções a cantar, lugares a visitar, sonecas a
tirar, amores a amar.
Senhores líderes,
Pensem nas mulheres, nas
rotas alteradas.
Será que foram cegos por
aquela luz que escureceu Hiroshima? Ou foram afetados pela cômoda perda de
memória que tipicamente assola os vencedores?
Após a explosão, foi um
silêncio criminoso que se abateu sobre crianças, mulheres, idosos, homens e animais.
Não o silêncio da paz.
Aquele ato, seguido pela
impunidade completa, abriu as cortinas uma nova era na história: a da guerra
perpétua.
Como ousam chamar de paz um
mundo que conta com um inventário de 12.512 ogivas nucleares? Como ousam falar
em segurança quando cerca de 9.576 delas estavam em estoques militares para uso
potencial?
Diriam seus lobistas e
generais de prontidão: essas armas não existem para serem usadas. É sua
existência que garante a segurança e a paz. Um otimismo perverso ou simplesmente
hipócritas?
Nos últimos meses, diante
da guerra na Ucrânia, voltamos a ouvir abertamente sobre a possibilidade de que
essas armas possam ser usadas. Mais uma vez, ouviríamos vozes alertando que
isso não passava de uma estratégia e de uma ameaça vazia.
Como sabem?
Nos tratados assinados nas
últimas décadas, vocês fecharam um pacto: ninguém mais teria o direito de ter
essa arma. E, em troca, vocês se comprometiam em promover um desarmamento.
Mais uma mentira.
Como, então, querem que eu
acredite que nunca haverá um irresponsável capaz de apertar o botão diante de
uma crise ou de uma desinformação, brincando de deus?
Certa vez, um jornalista
questionou o então primeiro-ministro britânico, Harold Macmillan, sobre qual
seria o maior desafio de um estadista. E ele respondeu: "os eventos,
querido garoto, os eventos".
Senhores líderes,
Para os próximos 15 anos, a
indústria de armamentos tem contratos com governos para a produção de armas
nucleares no valor de pelo menos US$ 278,6 bilhões. De forma hipócrita, esses
fabricantes gastaram milhões financiando o trabalho de acadêmicos e
especialistas que que, por sua vez, influenciam as políticas governamentais e
as atitudes do público em relação às armas nucleares.
Só não falam de paz.
Com um mundo onde o déficit
de confiança é total, escrevo esta carta para pedir que pensem nas feridas,
como rosas cálidas.
Hannah Arendt chegou a
dizer que uma das ameaças da existência de bombas nucleares era a de chacoalhar
o próprio significado do conceito de coragem. A coragem como disposição de
cuidar do mundo, da sociedade. Afinal, com qual finalidade nos arriscaremos se
a aniquilação é uma opção real?
"Ao colocar em risco a
sobrevivência da humanidade e não apenas a vida individual ou a de um povo
inteiro", conclui Arendt, "a guerra moderna está prestes a
transformar o homem mortal individual em um membro consciente da raça humana,
de cuja imortalidade ele precisa ter certeza para ser corajoso e por cuja
sobrevivência ele deve se preocupar mais do que qualquer outra coisa".
Assim, senhores líderes,
não se esqueçam da rosa da rosa. Da rosa de Hiroshima. A rosa hereditária,
radioativa, estúpida e inválida. A rosa com cirrose, a antirrosa atômica. Sem
cor, sem perfume, sem rosa, sem nada.
A embriaguez do poder nos
conduz a uma situação na qual temos, em suas mãos, a capacidade de destruir a
civilização tal qual a conhecemos.
Ninguém jamais vencerá uma
guerra nuclear. Ninguém sobreviverá a uma guerra nuclear.
Nem a coragem.
Saudações,
Jamil Chade
Fonte: UOL,
17/06/2023
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