domingo, 18 de junho de 2023

"A amante do texto" - Armando Silva Carvalho

 




A amante do texto

 

 

 




Possuíra o texto, ou era possuída.


Nas naves do discurso pousara a sua alma,


doara o corpo aos nautas do poema, às efígies remotas


que vinham repetidamente chamar filosofia


aos palimpsestos.


Sentira a natureza como um coito.


Arrebatadamente, enviara palavras à procura


e guardara nos olhos a aparição repentina


das sílabas fogosas, nos lábios,


secos de ternura.



 

Ninguém como ela soube comparar


a música célebre dos mortos,


as vozes reptilíneas, a memória do ouro,


o desdobrar o trágico,


à mesquinhez sentada num jardim, presa do tempo,


das ondas simultâneas no mar


serigrafado.



 

A solenidade dos seus verbos, a extensa e alucinada


formação de estranhos signos, levaram-na


à orgia das imagens.



 

O útero, o gineceu da fala, o gélido ardor do corpo,


Eram a geometria do desejo


Exposto.



 

Todo o prazer é texto


e o tempo o mais sólido palácio


em telha vã.


Lemos nos seus versos as mais solenes núpcias


das figuras mentais.


Ela caminhava no aroma,


transmudava o espaço num andamento


de imagofagia, silábico,


exorbitante.



 

Chegaria mais tarde ao choro junto


à orla marítima.


Unia os animais de casa


ao silencioso planar dos abutres


sobre o relevo histórico.


E devagar, murchava com as malvas e os resíduos,


rasteira dos sentidos.



 

Acabou intuído a fome do amor,


o alimento do chão, esse irmão franciscano,


a côdea de silêncio no lugar


dos soluços,


o pássaro enternecido pelo céu de água


no tanque,


a rebeldia natural das cenas redivivas,


a cancela do pátio apaixonada pelo vento,


o último sabor, o saber da dor


elementar.



 

 

 

Armando Silva Carvalho


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