"A amante do texto" - Armando Silva Carvalho
A amante do texto
Possuíra o texto, ou era possuída.
Nas naves do discurso pousara a sua alma,
doara o corpo aos nautas do poema, às efígies
remotas
que vinham repetidamente chamar filosofia
aos palimpsestos.
Sentira a natureza como um coito.
Arrebatadamente, enviara palavras à procura
e guardara nos olhos a aparição repentina
das sílabas fogosas, nos lábios,
secos de ternura.
Ninguém como ela soube comparar
a música célebre dos mortos,
as vozes reptilíneas, a memória do ouro,
o desdobrar o trágico,
à mesquinhez sentada num jardim, presa do tempo,
das ondas simultâneas no mar
serigrafado.
A solenidade dos seus verbos, a extensa e alucinada
formação de estranhos signos, levaram-na
à orgia das imagens.
O útero, o gineceu da fala, o gélido ardor do
corpo,
Eram a geometria do desejo
Exposto.
Todo o prazer é texto
e o tempo o mais sólido palácio
em telha vã.
Lemos nos seus versos as mais solenes núpcias
das figuras mentais.
Ela caminhava no aroma,
transmudava o espaço num andamento
de imagofagia, silábico,
exorbitante.
Chegaria mais tarde ao choro junto
à orla marítima.
Unia os animais de casa
ao silencioso planar dos abutres
sobre o relevo histórico.
E devagar, murchava com as malvas e os resíduos,
rasteira dos sentidos.
Acabou intuído a fome do amor,
o alimento do chão, esse irmão franciscano,
a côdea de silêncio no lugar
dos soluços,
o pássaro enternecido pelo céu de água
no tanque,
a rebeldia natural das cenas redivivas,
a cancela do pátio apaixonada pelo vento,
o último sabor, o saber da dor
elementar.
Armando Silva Carvalho
0 comentários:
Postar um comentário