quarta-feira, 2 de novembro de 2022

"Devia morrer-se de outra maneira" - José Gomes Ferreira




Devia morrer-se de outra maneira

 

 

 




Devia morrer-se de outra maneira.


Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.


Ou em nuvens.


Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol


a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos


os amigos mais íntimos com um cartão de convite


para o ritual do Grande Desfazer: “Fulano de tal comunica


a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje


às 9 horas. Traje de passeio”.


E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos


escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir


a despedida.


Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.


“Adeus! Adeus!”


E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,


numa lassidão de arrancar raízes…


(primeiro, os olhos… em seguida, os lábios… depois os cabelos… )


a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se


em fumo… tão leve… tão sutil… tão pólen…


como aquela nuvem além (veem?) — nesta tarde de outono


ainda tocada por um vento de lábios azuis…

 

 




José Gomes Ferreira 



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