CARL SAGAN: As variedades da experiência científica
Leonardo Motta
08/01/2008
Acabei de ler nessas férias o belíssimo livro The Varieties of
Scientific Experience (As variedades da experiência científica) de
Carl Sagan. A versão original pode ser encontrada aqui e
a edição em português de Portugal aqui. O subtítulo do livro
é uma visão pessoal da busca de Deus. Até onde eu saiba é o único
livro de Sagan que fala explicitamente sobre religião. O livro é póstumo e foi
publicado no final de 2006, editado pela sua esposa Ann Druyan e consiste
nas Palestras Gifford de
1985 apresentadas por Sagan. Esta série de palestras é sobre teologia
natural, i.e. aspectos da religião que não são obtidos por revelação
divina. Ao longo da sua existência, esta série de palestras já apresentou
ideias de diversos intelectuais, teólogos e cientistas, como os físicos Arthur
Eddington ('26-'27), Niels Bohr ('48-'50), Werner Heisenberg ('55-'56), Freeman
Dyson ('85), Roger Penrose ('92-'93) e humanistas do porte de Hannah Arendt
('72-'74) e Noam Chomsky ('05). O livro contém belas imagens coloridas do
cosmos, bem típicas da paixão do astrônomo pelo mundo natural e também um
apêndice com transcrições parciais das sessões de perguntas e respostas ao
final de cada palestra.
Com sua diplomacia intelectual característica, Sagan fala sobre as razões para
acreditar em um Deus ou outros entes sobrenaturais que poderiam intervir no
rumo do universo em especial no quotidiano humano. Sem palavras ásperas ou
ataques, Sagan tenta construir um momento de reflexão para todos que tem
interesse em avaliar sua fé. É um livrinho muito salutar para qualquer pessoa,
e é um dos poucos com alguma chance de abalar a fé dos religiosos liberais,
contrastando bastante com os mais vendidos de Richard Dawkins e Sam Harris.
Infelizmente, como Sagan mantém um discurso sereno e cheio de conteúdo ao invés
de inflamar corações, é bem provável que ele não figurará entre os mais lidos.
Aqui eu gostaria de
colocar alguns pedaços do livro que mais me chamaram atenção.
Metafísica
Um dos aspectos da experiência religiosa é a metafísica, aquelas ideias
sobre a existência, em algum sentido, de "apêndices" da realidade, da
natureza. Por exemplo, a idéia de que os relâmpagos são fisicamente lançados
por um homem gigante e muito forte no alto do monte Olimpo; ou a existência dos
milagres, de anjos, espíritos e outros entes imateriais que podem se comunicar
direta ou indiretamente conosco; ou uma consciência omnipotente que arquitetou
e executou o programa da vida no universo. Vamos começar a refletir sobre este
aspecto lembrando que na Idade Média acreditava-se que eram os anjos que
empurravam os planetas no céu. Hoje temos a compreensão de que existe gravidade
no universo. No final das contas, o aspecto metafísico da religião busca
buracos na ciência e os preenche com uma hipótese do gênero: "se isso não
se explica pelo movimento de elétrons, então só pode ser obra divina". Mas
o fato de não termos uma compreensão completa de um fenômeno não significa que
uma explicação racional, objetiva e matemática, não exista. De fato, a história
tem mostrado sistematicamente que várias das idéias da metafísica da religião
de séculos passados foram explicadas em termos científicos que gerou um poder
de explicação muito mais abrangente. Pense por exemplo em como a hipótese de
que os relâmpagos são produto de Zeus poderia nos levar a construir o aparelho
de rádio.
Hoje em dia a maioria das pessoas não disputaria com a ciência o que
produz o relâmpago. Embora o princípio seja o mesmo, há pessoas que aderem a
concepções de mundo logicamente inconsistentes que aceitam a explicação
científica para o relâmpago mas acreditam que apenas no que diz respeito a criação
do universo e da vida, e somente nisso, há um dedinho de Deus. O capítulo 3 do
livro de Sagan versa sobre esse debate. Algo de muito interessante que aprendi
nesse capítulo é que as moléculas orgânicas mais simples — os
blocos químicos que compõe os aminoácidos, proteínas, DNA e RNA — são
muito comuns em lugares inesperados do universo, como por exemplo a cauda de um
cometa. Além disso, no próprio sistema solar há corpos como os satélites de
Saturno Iapetus e Titã que contém água
e moléculas orgânicas (como cianeto, hidrocarbonetos, metano, álcoois). Titã em
especial contém uma atmosfera dominada por nitrogênio, assim como é a da Terra
(nós vivemos numa atmosfera quase 70% de gás nitrogênio). Carl Sagan expressa
sua admiração por esse mundo:
Eu acho que é algo muito interessante que há um mundo no sistema solar
exterior carregado de material para vida. E nós podemos calcular, dada a taxa
com que esses materiais são formados hoje em Titã, quanto destes materiais
acumulou lá ao longo da vida do sistema solar. A resposta é equivalente a uma
camada de pelo menos cem metros de espessura por todo Titã e possivelmente
quilômetros de espessura. [...] E, coincidentemente, há também evidências que
há uma camada de oceano de hidrocarboneto líquido. Então, apenas pense sobre
esse ambiente. Há terra, provavelmente há oceano. A terra é coberta por essa
camada orgânica que cai do céu. [...] O que aconteceu com esse material ao
longo de 4,6 bilhões de anos? Quão complexas são as moléculas lá?
A presença de
moléculas orgânicas em várias partes do universo, produzidas pela ação das
reações nas caudas de cometas ou formação de atmosferas de planetas e satélites
indica que a vida deve ser muito comum no universo. Só o telescópio espacial
Hubble é capaz de enxergar 1020estrelas (equivalente ao número de
grãos de areia de toda a superfície da Terra!). Como o Sol é uma estrela
típica, muitas dessas estrelas possuem sistemas planetários, e tal como o
nosso, provavelmente produziram ao acaso a vida, uma vez que moléculas
orgânicas estão disponíveis em abundância na formação desses sistemas. Como a
evolução é um relojeiro cego, alguns desses mundos podem ter produzidos apenas
micróbios, outros podem ter produzido seres muito mais inteligentes que os seres
humanos. Não temos evidências de que há vida fora da Terra, todavia a
argumentação precedente indica que ela muito provavelmente existe. Se um dia o
projeto SETI ou outro similar fizer contato com extraterrestres inteligentes,
será algo profundo para repensar o quão importante os seres humanos são para
esse universo e se o criador realmente intervém a nosso favor em qualquer
situação.
Folclore
sobre extraterrestres
Sagan foi um explorador espacial, então muito lhe interessava alegações
sobre visitas de alienígenas. Ele relata com mais cuidado sua experiência no
ramo da investigação de relatos de abdução em O Mundo Assombrado Pelos
Demônios (Cia. das Letras). É evidente que para critérios razoáveis de
veracidade nunca fomos visitados por alienígenas. Sagan compara a experiência
que teve com estas investigações com os relatos das experiências religiosas e
dos milagres. Muitas pessoas genuinamente tem experiências religiosas, dizem
ter visto milagres ou terem sido elas próprias salvas por milagres. Isso contudo
não significa que a coisa seja como alegado. Por exemplo, uma experiência
religiosa muito relatada é a sensação de atravessar um túnel com uma luz
intensa no final. Esta experiência é descrita por muitas pessoas reanimadas por
desfibriladores. Esta sensação é real e pode ser obtida num experimento
controlado como na decolagem de um avião supersônico. O que acontece é que a
desoxigenação rápida do cérebro, característica deste experimento controlado ou
de certos tipos de paradas cardíacas, causa essa alucinação. As pessoas podem
ser facilmente enganadas por si próprias, por desconhecerem o funcionamento de
ilusões de óptica, alucinações ou delírio. Em alguns casos a questão é pura
fraude. De qualquer modo, a respeito disso é muito forte o pensamento do político
Thomas Paine, como citado por Sagan:
É mais provável que a Natureza sairá do seu rumo ou que um homem contará uma
mentira?
Nós nunca vimos no nosso tempo a Natureza sair do seu curso. Todavia há
evidências de que milhões de mentiras já foram contadas no mesmo tempo. É
portanto pelo menos um milhão para um que um relator de milagres está mentido.
Ou na versão de David Hume, com um pouco mais de significado para o
cristianismo:
Quando alguém me diz que viu um homem ressuscitar dos mortos, eu
imediatamente me pergunto o que seria mais provável: esta pessoa estar mentido
ou ter sido enganada, ou o milagre relatado ter realmente ocorrido. Eu sempre
escolho a opção menos milagrosa. Se a
falsidade do relato for mais milagrosa do que o evento que ele descreve,
então ele pode dizer que comanda meu credo ou opinião.
A
hipótese de Deus
O ápice do livro talvez seja o capítulo 6, intitulado A hipótese de
Deus. Sagan começa com um debate sobre as tentativas de justificar a
existência de Deus, incluindo ideias hindus, porém se concentrando na tradição
judaico-cristã-islâmica. Ele desnuda cada uma das justificativas. Depois
segue-se uma breve avaliação dos problemas inerentes a existência de Deus, como
o clássico problema da antiguidade grega que evidencia que Deus não pode ser ao
mesmo tempo omnipotente, omnisciente e bondoso:
Deus deseja acabar com o mal, mas não é capaz?
Então ele não é omnipotente.
Ele é capaz, mas não deseja?
Então ele é malevolente.
Ele é capaz e também deseja?
Então ele pratica o mal?
Ele não é capaz nem deseja?
Então porque chamá-lo de Deus?
— Epicuro
A propósito desta parte do livro, há uma outra observação interessante
apontada por Albert Einstein. Um Deus pessoal que intervém no universo a nosso
favor discorda com o princípio básico da ciência de que há leis imutáveis que
regem o comportamento do universo, leis que podem ser inferidas por meio de
experimentos reprodutíveis. O eletromagnetismo macroscópico é descrito por
equações — as equações de Maxwell — e não
pela vontade de uma consciência que altera como lhe convém o comportamento da
luz, da eletricidade e do magnetismo. Ou a ciência pode utilizar-se de modelos
lógicos e racionais para descrever o universo sem ambiguidades ou não pode.
Neste último caso, nossos modelos científicos devem estar errados.
Para encerrar o capítulo 6, Sagan faz uma pergunta legítima e simples que
merece uma resposta honesta. A tradição judaico-cristã-islâmica é baseada na
ideia de que algumas pessoas (entre elas, supostamente: Abraão, Moisés, Jesus e
Maomé) receberam comunicação direta de Deus, sabedoria então registrada nos
livros ditos sagrados. É também um fato universal que todas religiões precisam
se validar de alguma forma apresentando ideias sobre como ocorrem intervenções
sobrenaturais que "provam" as alegações dessas religiões (e.g. a
psicografia no espiritismo ou a encarnação da pomba-gira na umbanda). Dito
isto, a pergunta de Sagan é: por que Deus (ou outros deuses) não deixaram claro
e evidente para todos os seres humanos sinais de Sua existência? Por exemplo, o
Deus cristão bem que podia ter colocado um crucifixo maior que Júpiter em
órbita ao redor do Sol. Ou ao invés de ter secretamente fornecido a Moisés os
dez mandamentos no alto de uma montanha, quando ninguém estava por perto para ter
certeza, poderia tê-los escrito em hebraico na superfície da Lua. É incrível
como o Deus da Bíblia preocupou-se em repassar informações sobre as regras e
legitimidade de escravização (e.g. Êxodo 21:2-7), o uso da pena de morte para
crianças mal criadas, feiticeiros, prostitutas, ateus e homossexuais (e.g.
Deuteronômio 21:18-21, Levítico 20:27, Levítico 29:1), quais vilas o exército
de Israel deve invadir e destruir (Números 31:14-18), etc., todas afirmações
perfeitamente passíveis de terem sido escritas por seres humanos comuns (uma
análise crítica apontaria que o Velho Testamento foi mais provavelmente escrito
por líderes políticos e generais de exército do que uma consciência
sobre-humana), mas foi incapaz de fornecer uma única frase que seria impossível
de ser entendida ou concebida por humanos na época em que as escrituras foram
preparadas. Ora, Abraão e Moisés tiveram o privilégio de ver Deus eles
próprios, então nada mais razoável que Deus tivesse dado a eles alguma
informação que seria compreendida apenas no século 21 e que serviria da prova
de sua existência. Por exemplo, ele poderia ter repassado entre os dez
mandamentos: "Não ultrapassarás a velocidade da luz". Tal mandamento
passaria como um enigma legítimo até o início do século 20. Com a descoberta da
relatividade ficaria claro que este mandamento fora realmente comunicado a
Moisés por uma consciência muito melhor informada sobre o universo do que
qualquer humano daquela época poderia ser. Desta forma haveria evidências da
existência de tal consciência não apenas para Moisés como para todo homem do
século 21. No entanto, não há uma única mensagem matemática ou código sobre o
universo escrito na Bíblia, e as poucas passagens literais sobre a planura da
Terra e a origem da vida se provaram equívocas. Por que Deus não deixou prova
clara de sua existência dessa forma ou por que ele cometeu erros tão grosseiros
sobre a organização do cosmos?
Eu gostaria de enfatizar que o argumento precedente se aplica não apenas
ao Deus das escrituras sagradas, mas igualmente a alegações sobre a existência
de espíritos e outras formas sobrenaturais. Há uma ampla gama de ideias que
parecem apelar para nós como evidências das religiões mas que são construídas
de forma a serem deliberadamente impossíveis de serem experimentadas por todos
os humanos. Portanto é legítimo e bastante honesto perguntar: se esses entes
tem os poderes alegados, a importância alegada para a organização da vida
humana, por que se provam escusos para quase todos nós? Por que não deixam
claro a sua existência?
FONTE: Aqui
Leia “A sequência de Cosmos que
estava nos planos de Carl Sagan” de Élisson
Amboni clicando aqui
Com sua diplomacia intelectual característica, Sagan fala sobre as razões para acreditar em um Deus ou outros entes sobrenaturais que poderiam intervir no rumo do universo em especial no quotidiano humano. Sem palavras ásperas ou ataques, Sagan tenta construir um momento de reflexão para todos que tem interesse em avaliar sua fé. É um livrinho muito salutar para qualquer pessoa, e é um dos poucos com alguma chance de abalar a fé dos religiosos liberais, contrastando bastante com os mais vendidos de Richard Dawkins e Sam Harris. Infelizmente, como Sagan mantém um discurso sereno e cheio de conteúdo ao invés de inflamar corações, é bem provável que ele não figurará entre os mais lidos.
É mais provável que a Natureza sairá do seu rumo ou que um homem contará uma mentira?
Nós nunca vimos no nosso tempo a Natureza sair do seu curso. Todavia há evidências de que milhões de mentiras já foram contadas no mesmo tempo. É portanto pelo menos um milhão para um que um relator de milagres está mentido.
Ou na versão de David Hume, com um pouco mais de significado para o cristianismo:
O ápice do livro talvez seja o capítulo 6, intitulado A hipótese de Deus. Sagan começa com um debate sobre as tentativas de justificar a existência de Deus, incluindo ideias hindus, porém se concentrando na tradição judaico-cristã-islâmica. Ele desnuda cada uma das justificativas. Depois segue-se uma breve avaliação dos problemas inerentes a existência de Deus, como o clássico problema da antiguidade grega que evidencia que Deus não pode ser ao mesmo tempo omnipotente, omnisciente e bondoso:
Então ele não é omnipotente.
Ele é capaz, mas não deseja?
Então ele é malevolente.
Ele é capaz e também deseja?
Então ele pratica o mal?
Ele não é capaz nem deseja?
Então porque chamá-lo de Deus?
— Epicuro
Para encerrar o capítulo 6, Sagan faz uma pergunta legítima e simples que merece uma resposta honesta. A tradição judaico-cristã-islâmica é baseada na ideia de que algumas pessoas (entre elas, supostamente: Abraão, Moisés, Jesus e Maomé) receberam comunicação direta de Deus, sabedoria então registrada nos livros ditos sagrados. É também um fato universal que todas religiões precisam se validar de alguma forma apresentando ideias sobre como ocorrem intervenções sobrenaturais que "provam" as alegações dessas religiões (e.g. a psicografia no espiritismo ou a encarnação da pomba-gira na umbanda). Dito isto, a pergunta de Sagan é: por que Deus (ou outros deuses) não deixaram claro e evidente para todos os seres humanos sinais de Sua existência? Por exemplo, o Deus cristão bem que podia ter colocado um crucifixo maior que Júpiter em órbita ao redor do Sol. Ou ao invés de ter secretamente fornecido a Moisés os dez mandamentos no alto de uma montanha, quando ninguém estava por perto para ter certeza, poderia tê-los escrito em hebraico na superfície da Lua. É incrível como o Deus da Bíblia preocupou-se em repassar informações sobre as regras e legitimidade de escravização (e.g. Êxodo 21:2-7), o uso da pena de morte para crianças mal criadas, feiticeiros, prostitutas, ateus e homossexuais (e.g. Deuteronômio 21:18-21, Levítico 20:27, Levítico 29:1), quais vilas o exército de Israel deve invadir e destruir (Números 31:14-18), etc., todas afirmações perfeitamente passíveis de terem sido escritas por seres humanos comuns (uma análise crítica apontaria que o Velho Testamento foi mais provavelmente escrito por líderes políticos e generais de exército do que uma consciência sobre-humana), mas foi incapaz de fornecer uma única frase que seria impossível de ser entendida ou concebida por humanos na época em que as escrituras foram preparadas. Ora, Abraão e Moisés tiveram o privilégio de ver Deus eles próprios, então nada mais razoável que Deus tivesse dado a eles alguma informação que seria compreendida apenas no século 21 e que serviria da prova de sua existência. Por exemplo, ele poderia ter repassado entre os dez mandamentos: "Não ultrapassarás a velocidade da luz". Tal mandamento passaria como um enigma legítimo até o início do século 20. Com a descoberta da relatividade ficaria claro que este mandamento fora realmente comunicado a Moisés por uma consciência muito melhor informada sobre o universo do que qualquer humano daquela época poderia ser. Desta forma haveria evidências da existência de tal consciência não apenas para Moisés como para todo homem do século 21. No entanto, não há uma única mensagem matemática ou código sobre o universo escrito na Bíblia, e as poucas passagens literais sobre a planura da Terra e a origem da vida se provaram equívocas. Por que Deus não deixou prova clara de sua existência dessa forma ou por que ele cometeu erros tão grosseiros sobre a organização do cosmos?
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