Todos os livros de Judith Butler, gratuitos, para download
Pasta pública na rede disponibiliza a obra completa da filósofa
norte-americana que veio ao Brasil recentemente e que foi alvo de ataques de
fascistas que nunca leram um livro seu. Referência nos estudos da teoria queer
e da questão de gênero, a filósofa norte-americana Judith Butler foi alvo de
ataques de fascistas em sua visita ao Brasil na semana passada. Entre os
agressores, direitistas do MBL, o ator pornô Alexandre Frota e mais dezenas de
pessoas que nunca sequer leram um livro seu – o que explica em grande parte o
tom quase medieval dos ataques. A “caça às bruxas” moderna pode até
protagonizar atos bárbaros de tentar proibir sua vinda ao Brasil ou mesmo
queimar uma imagem sua em praça pública, mas isso não impedirá que mais e mais
pessoas entrem em contato com suas ideias – principalmente agora que toda a
obra de Judith Butler foi reunida em uma pasta público para download gratuito.
Para acessar toda a obra clique aqui
Judith Butler escreve sobre sua teoria de gênero e o ataque
sofrido no Brasil
JUDITH BUTLER
19/11/2017
RESUMO A filósofa norte-americana Judith Butler escreve sobre sua recente passagem
pelo Brasil. Ela comenta os ataques que sofreu, explica sua teoria de
gênero e procura entender o ódio dirigido a um pensamento que defende a
dignidade e os direitos sexuais e que condena a violência contra mulheres e
pessoas trans.
Desde o começo, a oposição à minha presença no Brasil esteve
envolta em uma fantasia. Um abaixo-assinado pedia ao Sesc Pompeia que
cancelasse uma palestra que eu nunca iria ministrar. A palestra imaginária, ao
que parece, seria sobre "gênero", embora o seminário planejado fosse
dedicado ao tema "Os fins da democracia" ("The ends of
democracy").
Ou seja, havia desde o início uma palestra imaginada ao invés de
um seminário real, e a ideia de que eu faria uma apresentação, embora eu
estivesse na realidade organizando um evento internacional sobre populismo,
autoritarismo e a atual preocupação de que a democracia esteja sob ataque.
Não sei ao certo que poder foi conferido à palestra sobre gênero
que se imaginou que eu daria. Deve ter sido uma palestra muito poderosa, já
que, aparentemente, ela ameaçou a família, a moral e até mesmo a
nação.
Para aqueles que se opuseram à minha presença no Brasil,
"Judith Butler" significava apenas a proponente de uma ideologia de gênero, a suposta fundadora desse
ponto de vista absurdo e nefasto, alguém —aparentemente— que não acredita em
restrições sexuais, cuja teoria destrói ensinamentos bíblicos e contesta fatos
científicos.
Como tudo isso aconteceu e o que isso significa?
A TEORIA
Consideremos o que eu de fato escrevi e no que de fato acredito e
comparemos isso com a ficção interessante e nociva que deixou tanta gente
alarmada.
No final de 1989, quase 30 anos atrás, publiquei um livro
intitulado "Gender Trouble" (lançado em português em 2003 como
"Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão da Identidade",
Civilização Brasileira), no qual propus uma descrição do caráter performativo
do gênero. O que isso significa?
A cada um de nós é atribuído um gênero no nascimento, o que
significa que somos nomeados por nossos pais ou pelas instituições sociais de
certas maneiras.
Às vezes, com a atribuição do gênero, um conjunto de expectativas
é transmitido: esta é uma menina, então ela vai, quando crescer, assumir o
papel tradicional da mulher na família e no trabalho; este é um menino, então
ele assumirá uma posição previsível na sociedade como homem.
No entanto, muitas pessoas sofrem dificuldades com sua atribuição
—são pessoas que não querem atender aquelas expectativas, e a percepção que têm
de si próprias difere da atribuição social que lhes foi dada.
A dúvida que surge com essa situação é a seguinte: em que medida
jovens e adultos são livres para construir o significado de sua atribuição de
gênero?
Eles nascem na sociedade, mas também são atores sociais e podem
trabalhar dentro das normas sociais para moldar suas vidas de maneira que sejam
mais vivíveis.
E instituições sociais, incluindo instituições religiosas, escolas
e serviços sociais e psicológicos, também deveriam ter capacidade de apoiar
essas pessoas em seu processo de descobrir como viver melhor com seu corpo,
buscar realizar seus desejos e criar relações que lhes sejam proveitosas.
Algumas pessoas vivem em paz com o gênero que lhes foi atribuído,
mas outras sofrem quando são obrigadas a se conformar com normas sociais que
anulam o senso mais profundo de quem são e quem desejam ser. Para essas pessoas
é uma necessidade urgente criar as condições para uma vida possível de viver.
LIBERDADE E NATUREZA
Assim, em primeiro lugar e acima de tudo, "Problemas de
Gênero" buscou afirmar a complexidade de nossos desejos e identificações
de gênero e se juntar àqueles integrantes do movimento LGBTQ moderno que
acreditavam que uma das liberdades fundamentais que precisam ser respeitadas é
a liberdade de expressão de gênero.
O livro negou a existência de uma diferença natural entre os
sexos? De maneira nenhuma, embora destaque a existência de paradigmas
científicos divergentes para determinar as diferenças entre os sexos e observe
que alguns corpos possuem atributos mistos que dificultam sua classificação.
Também afirmei que a sexualidade humana assume formas diferentes e
que não devemos presumir que o fato de sabermos o gênero de uma pessoa nos dá
qualquer pista sobre sua orientação sexual. Um homem masculino pode ser
heterossexual ou gay, e o mesmo raciocínio se aplica a uma mulher masculina.
Nossas ideias de masculino e feminino variam de acordo com a
cultura, e esses termos não possuem significados fixos. Eles são dimensões
culturais de nossas vidas que assumem formas diferentes e renovadas no decorrer
da história e, como atores históricos, nós temos alguma liberdade para
determinar esses significados.
Mas o objetivo dessa teoria era gerar mais liberdade e aceitação
para a gama ampla de identificações de gênero e desejos que constitui nossa
complexidade como seres humanos.
Esse trabalho, e muito do que desenvolvi depois, também foi
dedicado à crítica e à condenação da violação e da violência corporais.
Além disso, a liberdade de buscar uma expressão de gênero ou de
viver como lésbica, gay, bissexual, trans ou queer (essa lista não é exaustiva)
só pode ser garantida em uma sociedade que se recusa a aceitar a violência
contra mulheres e pessoas trans, que se recusa a aceitar a discriminação com
base no gênero e que se recusa a transformar em doentes e aviltar as pessoas
que abraçaram essas categorias no intuito de viverem uma vida mais vivível, com
mais dignidade, alegria e liberdade.
Meu compromisso é me opor às ofensas que diminuam as chances de
alguém viver com alegria e dignidade. Assim, sou inequivocamente contra o
estupro, o assédio e a violência sexual e contra todas as formas de exploração
de crianças.
Liberdade não
é —nunca é— a liberdade de fazer o mal. Se uma ação faz mal a outra pessoa ou a
priva de liberdade, essa ação não pode ser qualificada como livre —ela se torna
uma ação lesiva.
VIOLÊNCIA DE GÊNERO
De fato, algo que me preocupa é a frequência com que pessoas que
não se enquadram nas normas de gênero e nas expectativas heterossexuais são
assediadas, agredidas e assassinadas.
As estatísticas sobre feminicídio ilustram o ponto. Mulheres que
não são suficientemente subservientes são obrigadas a pagar por isso com a
vida.
Pessoas trans e travestis que desejam apenas a liberdade de
movimentar-se no mundo público como são e desejam ser sofrem frequentemente ataques físicos são mortas.
Mães correm o risco de perder seus filhos se eles saírem do
armário; muitas pessoas ainda perdem seus empregos e a relação com seus
familiares quando saem do armário. O sofrimento social e psicológico decorrente
do ostracismo e condenação social é enorme.
A injustiça radical do feminicídio deveria ser universalmente
condenada, e as transformações sociais profundas que possam tornar esse crime
impensável precisam ser fomentadas e levadas adiante por movimentos sociais e
instituições que se recusam a permitir que pessoas sejam mortas devido a seu
gênero e sua sexualidade.
No Brasil, uma mulher é assassinada a cada duas horas. A tortura e
o assassinato recente de Dandara dos Santos, em Fortaleza, foi apenas um
exemplo explícito da matança generalizada de pessoas trans no Brasil, uma
matança que valeu ao Brasil a fama de ser o país mais conhecido pelo
assassinato de pessoas LGBT.
São esses os males sociais inequívocos e atrocidades aos quais me
oponho, e meu livro —bem como o movimento queer no qual ele se insere— procura
promover um mundo sem sofrimento e violência desse tipo.
IDEOLOGIA
A teoria da performatividade de gênero busca entender a formação
de gênero e subsidiar a ideia de que a expressão de gênero é um direito e uma
liberdade fundamentais. Não é uma "ideologia".
Em geral, uma ideologia é entendida como um ponto de vista que é
tanto ilusório quanto dogmático, algo que "tomou conta" do pensamento
das pessoas de uma maneira acrítica.
Meu ponto de vista, entretanto, é crítico, pois questiona o tipo
de premissa que as pessoas adotam como certas em seu cotidiano, e as premissas
que os serviços médicos e sociais adotam em relação ao que deve ser visto como
uma família ou considerado uma vida patológica ou anormal.
Quantos de nós ainda acreditamos que o sexo biológico determina os
papéis sociais que devemos desempenhar? Quantos de nós ainda sustentamos que os
significados de masculino e feminino são determinados pelas instituições da
família heterossexual e da ideia de nação que impõe uma noção conjugal do
casamento e da família?
Famílias queers e travestis adotam outras formas de convívio
íntimo, afinidade e apoio. Mães solteiras têm laços de afinidade diferentes. A
mesma coisa se dá com famílias mistas, nas quais as pessoas se casam novamente ou
se juntam com famílias, criando amálgamas muito diferentes daqueles vistos em
estruturas familiares tradicionais.
Encontramos apoio e afeto através de muitas formas sociais,
incluindo a família, mas a família é também uma formação histórica: sua estrutura
e seu significado mudam ao longo do tempo e do espaço. Se deixamos de afirmar
isso, deixamos de afirmar a complexidade e a riqueza da existência humana.
IGREJA
A ideia de gênero como ideologia foi introduzida por Joseph
Ratzinger em 1997, antes de ele se tornar o papa Bento 16. O trabalho acadêmico
de Richard Miskolci e Maximiliano Campana1 acompanha a recepção desse conceito em
diversos documentos do Vaticano.
Em 2010, o argentino Jorge Scala lançou um livro intitulado
"La Ideologia de Género", que foi traduzido ao português por uma
editora católica [Katechesis]. Esse pode ter sido um ponto de virada para as
recepções de "gênero" no Brasil e na América Latina.
De acordo com a caricatura feita por Scala, aqueles que trabalham
com gênero negam as diferenças naturais entre os sexos e pensam que a
sexualidade deve ser livre de qualquer restrição. Aqueles que se desviam da
norma do casamento heterossexual são considerados indivíduos que rejeitam todas
as normas.
Vista por essa lente, a teoria de gênero não só nega as diferenças
biológicas como gera um perigo moral.
No aeroporto de Congonhas, em São Paulo, uma das mulheres que
me confrontaram começou a gritar coisas sobre pedofilia. Por que isso? É
possível que ela pense que homens gays são pedófilos e que o movimento em favor
dos direitos LGBTQI nada mais é do que propaganda pró-pedofilia.
Então fiquei pensando: por que um movimento a favor da dignidade e
dos direitos sexuais e contra a violência e a exploração sexual é acusado de
defender pedofilia se, nos últimos anos, é a Igreja Católica que vem sendo
exposta como abrigo de pedófilos, protegendo-os contra processos e sanções, ao
mesmo tempo em que não protege suas centenas de vítimas?
Será possível que a chamada ideologia de gênero tenha virado um
espectro simbólico de caos e predação sexual precisamente para desviar as
atenções da exploração sexual e corrupção moral no interior da Igreja Católica,
uma situação que abalou profundamente sua autoridade moral?
Será que precisamos compreender como funciona "projeção"
para compreendermos como uma teoria de gênero pôde ser transformada em
"ideologia diabólica"?
BRUXAS
Talvez aqueles que queimaram uma efígie minha como bruxa e
defensora dos trans não sabiam que aquelas que eram chamadas de bruxas e
queimadas vivas eram mulheres cujas crenças não se enquadravam nos dogmas
aceitos pela Igreja Católica.
Ao longo da história, atribuíram-se às bruxas poderes que elas
jamais poderiam, de fato, ter; elas viraram bodes expiatórios cuja morte
deveria, supostamente, purificar a comunidade da corrupção moral e sexual.
Considerava-se que essas mulheres tinham cometido heresia, que
adoravam o diabo e tinham trazido o mal à comunidade em lugares como Salem
(EUA), em Baden-Baden (Alemanha), nos Alpes Ocidentais (Áustria) e na
Inglaterra. Com muita frequência esse "mal" era representado pela
libertinagem.
O fantasma dessas mulheres como o demônio ou seus representantes
encontra, hoje, eco na "diabólica" ideologia de gênero. E, no
entanto, a tortura e o assassinato dessas mulheres por séculos como bruxas
representaram um esforço para reprimir vozes dissidentes, aquelas que
questionavam certos dogmas da religião.
Quem pôs fim a esse tipo de perseguição, crueldade e assassinato
foram pessoas sensatas de dentro da Igreja Católica, que insistiram que a queima
de bruxas não representava os verdadeiros valores cristãos. Afinal, queimar
bruxas era uma forma de feminicídio executado em nome de uma moralidade e
ortodoxia.
Embora eu não seja estudiosa do cristianismo, entendo que uma de
suas grandes contribuições tenha sido a doutrina do amor e do apreço pela
preciosidade da vida —muito longe do veneno da caça às bruxas.
DEMOCRACIA
Embora apenas minha efígie tenha sido queimada, e eu mesma tenha
saído ilesa, fiquei horrorizada com a ação.
Nem tanto por interesse próprio, mas em solidariedade às corajosas
feministas e pessoas queer no Brasil que estão batalhando por maior liberdade e
igualdade, que buscam defender e realizar uma democracia na qual os direitos
sexuais sejam afirmados e a violência contra minorias sexuais e de gênero seja
abominada.
Aquele gesto simbólico de queimar minha imagem transmitiu uma
mensagem aterrorizante e ameaçadora para todos que acreditam na igualdade das
mulheres e no direito de mulheres, gays e lésbicas, pessoas trans e travestis
serem protegidos contra violência e assassinato.
Pessoas que acreditam no direito dos jovens exercerem a liberdade
de encontrar seu desejo e viverem num mundo que se recusa a ameaçar,
criminalizar, patologizar ou matar aqueles cuja identidade de gênero ou forma
de amar não fere ninguém.
Essa é a visão do arcebispo Justin Welby, da Inglaterra, que destacou
recentemente o direito dos jovens explorarem sua identidade de gênero, apoiando
uma atitude mais aberta e acolhedora em relação a papéis de gênero na
sociedade.
Essa abertura ética é importante para uma democracia que inclua a
liberdade de expressão de gênero como uma das liberdades democráticas
fundamentais, que enxergue a igualdade das mulheres como peça essencial de um
compromisso democrático com a igualdade e que considere a discriminação, o
assédio e o assassinato como fatores que enfraquecem qualquer política que tenha
aspirações democráticas.
Talvez o foco em "gênero" não tenha sido, no final, um
desvio da pergunta de nosso seminário: quais são os fins da democracia?
Quando violência e ódio se tornam instrumentos da política e da
moral religiosa, então a democracia é ameaçada por aqueles que pretendem rasgar
o tecido social, punir as diferenças e sabotar os vínculos sociais necessários
para sustentar nossa convivência aqui na Terra.
Eu vou me lembrar do Brasil por todas as pessoas generosas e
atenciosas, religiosas ou não, que agiram para bloquear os ataques e barrar o
ódio.
São elas que parecem saber que o "fim" da democracia é
manter acesa a esperança por uma vida comum não violenta e o compromisso com a
igualdade e a liberdade, um sistema no qual a intolerância não se transforma em
simples tolerância, mas é superada pela afirmação corajosa de nossas
diferenças.
Então todos começaremos a viver, a respirar e a nos mover com mais
facilidade e alegria —é esse o objetivo maior da corajosa luta democrática que
tenho orgulho de integrar: nos tornarmos livres, sermos tratados como iguais e
vivermos juntos sem violência.
1. MISKOLCI, Richard;
CAMPANA, Maximiliano. "Direito às diferenças: notas sobre formação
jurídica e as demandas de reconhecimento na sociedade brasileira
contemporânea". "Hendu "" Revista Latino-Americana de
Direitos Humanos", abril de 2017.
JUDITH BUTLER, 61, referência nos
estudos de gênero e teoria queer, é codiretora do programa de teoria crítica da
Universidade da Califórnia em Berkeley. Lança o livro "Caminhos
Divergentes: Judaicidade e Crítica do Sionismo" pela Boitempo.
CAMILE SPROESSER, 32, é artista plástica.
CLARA ALLAIN é tradutora.
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