A verdadeira liberdade
A
verdadeira liberdade
Alex Castro
14/10/2107
Se a liberdade é
simplesmente podermos realizar esses desejos que pipocam dentro de nós, vindos
sabe-se lá de onde, então, a pessoa dita livre não passa de um veleiro à
deriva, indo para lá e para lá ao sabor dos elementos. Mas a liberdade não está
nas velas ou nas marés: está em não ser refém dos meus apegos e das minhas
compulsões, dos ventos que me sopram ou das correntes que me puxam. A
verdadeira liberdade é poder decidir
para onde vou navegar esse barco. A verdadeira liberdade é o leme.
Liberdade não é eu ver uma foto impossivelmente deliciosa de carne prensada entre duas fatias de pão, e ter a renda e a disponibilidade de me deslocar até um restaurante, comprar esse produto e consumi-lo. A verdadeira liberdade é não permitir que essa foto, por mais apetitosa que me pareça, determine o que vou fazer a minha vida. Não é adicionar mais técnicas avançadas de autocontrole (“preciso controlar minha gula!”) em cima do controle que o anúncio já exerce sobre mim (“você merece esse sabor!”) mas simplesmente me livrar do controle do anúncio. Não mais autocontrole, menos autocontrole. A gula, a vaidade, a preguiça, se eu não ceder a elas, também desaparecem: posso sentar na estação e não preciso embarcar em nenhum dos trens que passam.
Para muitas de nós,
o maior inimigo da liberdade são os muros externos da prisão: queremos que
ninguém nos impeça de viajar livremente, de casar livremente, de escrever
livremente. Garantir essas importantíssimas liberdades é uma das lutas
políticas mais importantes de nosso tempo e de qualquer tempo. Infelizmente, a
maioria das pessoas jamais será limitada pelos muros externos pois já
introjetaram muros internos mais poderosos e mais eficazes. O que me impede de
viajar livremente, casar livremente, escrever livremente sou eu mesmo, meus
próprios preconceitos e minhas limitações.
Por exemplo, o que impede pessoas do mesmo sexo de se casarem livremente é o
fato de terem nascido e crescido, viverem e pensarem, em uma sociedade
homofóbica em sua raiz, homofóbica em cada um de seus aspectos mais
elementares, que representa negativamente pessoas homossexuais em todas as
esferas políticas, religiosas, culturais. (Todas crescemos “sabendo” que gostar
de pessoas do mesmo sexo é pecado. Então, um dia, sentimos os primeiros desejos
homossexuais e descobrimos, para nosso horror, que aquela pessoa tão ruim que
todo mundo usa como xingamento... somos nós!) Em um contexto sociopolítico como
esse, a proibição ao casamento homossexual pode ser vista somente como uma
redundância do sistema, um quase desnecessário mecanismo de segurança, um
distante muro externo para impedir a fuga das poucas radicais incorrigíveis que
conseguem vencer o muro interno.
Se não derrubarmos os invisíveis e socialmente aceitos muros internos, a luta
política para tentar derrubar o visível e imponente muro externo será
irrelevante, praticamente um capricho bem-alimentado para que a elite pensante
e criadora-de-caso se mantenha ocupada — “toma aí essa militância política pra
você brincar”. A luta contra o muro externo é, em larga medida, irrelevante
porque, na prática, o muro externo é irrelevante: ele só está lá como símbolo
concreto do nosso conformismo, um monumento à nossa mansidão. Contra um povo
que derrubou seus muros internos, não mais controlado pela publicidade, não
mais refém de suas compulsões, não mais apegado aos seus preconceitos, o muro
externo não duraria cinco minutos. Não era o Muro de Berlim que impedia ninguém
de nada: era o medo. Quando acabou o medo, o muro caiu na mesma noite.
Liberdade não é se livrar de controles externos: é se livrar dos
controles internos, das compulsões desse Eu tão cheio de vontades, e perceber
que sempre fomos livres. Se a liberdade não fosse nosso estado natural, não
seria necessário gastar tanto dinheiro para nos convencer que xarope de cola
com açúcar é gostoso. Infelizmente, muitas das pessoas mais livres e destemidas
da Alemanha Oriental foram fuziladas contra o Muro de Berlim. Ser livre pode
ser perigoso, mas é sempre melhor do que ser escrava – mesmo que apenas
escravas de nós mesmas, escravizadas pelos delírios e pelas compulsões desse Eu
que inventamos.
Fonte: Aqui
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