sexta-feira, 21 de julho de 2017

Uma discussão em torno da liberdade de expressão e do Código Deontológico

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A propósito do artigo “Eu sou Gentil Martins” da autoria de Abel Matos Santos e que pode ser lido clicando aqui, vale a pena ler o comentário da leitora Sandra M. Lopes que transcrevemos abaixo:

Uma coisa é o direito à liberdade de expressão, que inclui o direito a manifestar publicamente uma opinião, e de a disseminar livremente, sem medo de censura; este ponto nem sequer carece de discussão, pois é um direito constitucionalmente garantido. Em particular, este direito garante que qualquer pessoa em Portugal possa emitir qualquer tipo de opinião, por mais estúpida, disparatada, e completamente errada que seja; o direito é universal, inalienável, e não pode ser limitado sob qualquer forma de censura, explícita ou implícita (como acontece através da «pressão social do politicamente correcto», por exemplo).
Até aqui estamos todos de acordo, e até aqui devemos ser todos Gentil Martins, e não termos receio de mostrar a nossa ignorância e preconceito publicamente, só porque somos socialmente condicionados a mostrar o nosso melhor em público. Temos o direito a sermos burros e a manifestar a nossa burrice publicamente! Ninguém pode sequer ousar impedir-nos de fazer figuras tristes e lamentáveis, e de dar o pior exemplo possível à sociedade mostrando publicamente os nossos preconceitos!

Por outras palavras: em Portugal, não é proibido ser-se homófobo. Nem sequer é proibido veicular a nossa homofobia publicamente. O que é proibido, isso sim, é discriminar pessoas devido à sua orientação sexual ou identidade de género; mas emitir uma opinião parva não é «discriminação», é apenas uma opinião parva, manifestada livremente e de acordo com os princípios constitucionalmente garantidos — os idiotas têm exactamente o mesmo direito a manifestarem livremente as suas opiniões, sem quaisquer constrangimentos ou censura, tal como qualquer outra pessoa. Até porque estão em maioria!
No seu caso concreto, caro Dr. Abel Matos Santos, não há problema algum que seja homófobo, ou que as suas convicções pessoais, morais, ou religiosas, o impeçam de aceitar a verdade científica subjacente ao estudo das questões LGBT. Pode, inclusivé, veicular livremente a sua opinião, enquanto cidadão, nos meios da comunicação social.
Mas a questão já é muito diferente quando os seus preconceitos e as suas convicções religiosas ou ideológicas condicionam a forma como trata os seus pacientes. Certamente não preciso de lhe citar o Código Deontológico que aceitou respeitar quando se tornou membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses, cujas partes saberá de certeza de cor, e que cito apenas para conveniência dos leitores do Observador que não o conhecem tão bem como o Sr. Dr.:


Os/as psicólogos/as têm como obrigação exercer a sua actividade de acordo com os pressupostos técnicos e científicos da profissão, a partir de uma formação pessoal adequada e de uma constante actualização profissional, de forma a atingir os objectivos da intervenção psicológica. [...] A competência será o reconhecimento de que os/as psicólogos/as devem estar conscientes que têm como obrigação fundamental funcionar de acordo com as boas práticas baseadas em conhecimentos científicos actualizados, por existir um risco acrescido de prejudicar seriamente alguém se prestarem um serviço para o qual não estão convenientemente qualificados. [...] Os/as psicólogos/as deverão ter em atenção que quando desempenham a sua actividade de uma forma menos competente contribuem para o descrédito da Psicologia. [...] Paralelamente, será fácil compreender que a única forma que o profissional tem de responder pelas suas acções e de ter uma noção o mais objectiva possível sobre a sua intervenção, é desenvolver uma actuação baseada em conhecimentos científicos actualizados. [...] A dificuldade reside no facto de, por vezes, o interesse individual poder entrar em conflito com o interesse social. Nestas circunstâncias, o profissional deve procurar um meio de suprimir, na medida do possível, as potenciais consequências negativas a estes dois níveis. [...] Outra dimensão da responsabilidade reside na importância do desenvolvimento do conhecimento científico. [...] Deste modo, a integridade, tal como foi expressa, poderá ficar comprometida sempre que o profissional se deixar influenciar pelas suas próprias motivações ou crenças, preconceitos e juízos morais [...]

O negrito é da minha responsabilidade; poderia continuar, mas quem quiser pode consultar o código deontológico da OPP,  está online e não é segredo nenhum.

Por outras palavras: o código deontológico da OPP não impede o psicólogo de ter opiniões e convicções contrárias aos princípios estabelecidos cientificamente. Impede, isso sim, que essas opiniões, que se convertem em juízos morais e preconceitos, interfiram na sua actividade enquanto psicólogo. Na relação com os seus pacientes, o Sr. Dr. encontra-se obrigado a restringir-se exclusivamente aos conhecimentos científicos existentes sobre os problemas dos seus pacientes, abstendo-se de utilizar as suas convicções pessoais ou julgamentos morais, independentemente de serem válidos ou não (o que é indiferente neste caso). Encontra-se igualmente obrigado a actualizar os seus próprios conhecimentos científicos, e a não pronunciar-se, enquanto psicólogo, sobre áreas do conhecimento das quais nada percebe (sim, está lá escrito no código deontológico também...).
Ou seja, não está em causa que o Dr. Gentil Martins, ou o Dr. Abel Santos, tenha as opiniões que muito bem tenha, e que as formule publicamente, sem medo de censura ou represálias. Isso não está em questão. O que é problemático é que faça essas afirmações não como cidadão, mas como profissional da área da saúde, contrariamente ao que é afirmado nos respectivos códigos deontológicos. Repare que se o Dr. Abel Santos não tivesse terminado o seu artigo com «Especialista em Psicologia Clínica», provavelmente nem faria este comentário. Mas ao assinar o artigo desta forma, está a passar a imagem de que emite a sua opinião como psicólogo, e não «meramente como cidadão». É isso que é não só lamentável, mas que vai expressamente contra o código deontológico que aceitou seguir enquanto membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
E é isso que não pode ser. Não podemos ter pessoas que se intitulam de médicos ou especialistas, em áreas científicas, e que abusam da sua autoridade enquanto peritos no assunto, para afirmarem as suas convicções pessoais, religiosas e ideológicas, contrárias aos conhecimentos científicos dos assuntos que discutem, e assim influenciarem a população em geral que tem acesso a esses comentários. Estão a fazer passar por conhecimento científico, apenas pela profissão que desempenham, aquilo que é meramente uma convicção pessoal, religiosa ou ideológica. E isso é proibido — por isso é que existem códigos deontológicos! — enquanto se quiser manter membro da Ordem a que pertence e enquanto quiser continuar a desempenhar a sua profissão de «especialista em psicologia clínica».
Repare que não existe aqui qualquer «censura» às suas opiniões enquanto cidadão. Se o Dr. Abel Santos tivesse assinado o seu artigo dizendo A opinião acima transmitida é da exclusiva responsabilidade do seu autor, e não compromete nem vincula a Ordem a que este pertence, nem pretende estabelecer um princípio científico, mas é meramente a livre expressão da opinião individual do autor ou algo do género, então tudo estaria bem, não haveria problema algum. Como disse, todos temos direito às nossas opiniões idiotas, independentemente da profissão que desempenhamos. Mas não foi isso que o Dr. Abel Santos fez: indicou claramente e sem ambiguidade que transmite a sua opinião porque é especialista em psicologia clínica. Ora o código deontológico da sua Ordem não lhe permite isto! Não pode passar «opiniões» baseadas em convicções pessoais, religiosas e/ou ideológicas como se fossem ciência!
De notar que ninguém o obrigou a ser psicólogo; ninguém o obrigou a entrar para a Ordem dos Psicólogos Portugueses; ninguém o obrigou, quando se fez membro, a aceitar o seu código deontológico; fê-lo de livre vontade, sem constrangimentos ou obrigações (porque a Constituição defende não só o livre direito a associar-se o que quiser, mas também o direito a não ser obrigado a associar-se ao que não quiser!). Mas se o fez, não tem outro remédio senão cumprir as regras que lhe impõem — e que, faço notar, têm como único objectivo garantir a respeitabilidade da profissão, a competência dos profissionais, e, acima de tudo, a dignidade dos pacientes que exigem o melhor tratamento possível que a ciência médica lhes permite.
O Dr. Abel Santos escolheu ser psicólogo. Ninguém o obrigou a isso. Se queria ajudar as pessoas com os seus problemas mentais, e veicular as suas convicções pessoais e religiosas, podia ter ido para sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). Bem sabemos como a Igreja tem falta de pessoas com vocação que estejam disponíveis para consagrar a sua vida a ajudar os outros de acordo com os princípios religiosos estabelecidos pela Igreja. A profissão de padre é uma profissão tão digna como a do psicólogo, e há quem afirme que é tão importante, socialmente, como a profissão de médico ou psicólogo (posso não partilhar dessa opinião, mas isso é irrelevante).
Claro que ser-se padre também obriga a cumprir outro código deontológico, porventura mais difícil de seguir que o do psicólogo, mas não é isso que está em questão: o que é fundamental é que, de uma vez por todas, os psicólogos deixem de fingir que são padres; em ciência não há espaço para juízos religiosos. É por isso que os médicos e psicólogos (e, aliás, todas as profissões liberais representadas por ordens, sindicatos, associações, etc.) têm códigos deontológicos: é porque quando existe conflito entre a ciência e a religião, ideologia, ou as convicções pessoais, os médicos e os psicólogos estão obrigados a seguirem apenas a ciência quando emitem opiniões enquanto profissionais.
Lamento, mas Gentil Martins — e Abel Santos — não têm razão em nada. Não enquanto continuarem a persistir na falácia da autoridade e na liberdade de opinião para fazerem passar por «verdades absolutas» aquilo que são meras convicções pessoais, religiosas, ou ideológicas. Isso está-lhes vedado pelo código deontológico a que voluntariamente se submeteram. E esse código existe precisamente para evitar que psicólogos e médicos emitam opiniões disparatadas sem qualquer fundamento científico, fazendo com que as respectivas profissões percam respeitabilidade e credibilidade!
Nós, portugueses, merecemos ter profissionais da saúde respeitáveis, credíveis, nos quais possamos confiar plenamente, que estejam actualizados relativamente à ciência, e que não deixem os seus preconceitos morais, religiosos, ou ideológicos interferir na respectiva profissão. E quem salvaguarda que isso seja assim mesmo são as respectivas Ordens profissionais. Por isso, lamento, mas o Dr. Abel Santos não tem qualquer razão nem fundamento para o que escreve enquanto especialista em psicologia clínica. O cidadão Abel Santos pode escrever as baboseiras que quiser; o Dr. Abel Santos não, está condicionado pelo código deontológico a que livremente e de plena consciência subscreveu e aceita, para poder exercer a sua profissão. Profissão essa que ninguém o obrigou a escolher. Mas uma vez tendo-a escolhido, está sujeito às obrigações, constrangimentos e limitações que essa profissão lhe sujeita.
Note-se que ainda por cima esses «constrangimentos» nem são muito fortes. Basta apenas veicular opiniões profissionais que estejam de acordo com a ciência, e actualizar-se para que tenha conhecimento do que a ciência diz a respeito dos vários assuntos. Digamos que não é uma exigência muito grande, nem é um atentado à sua liberdade enquanto indivíduo. Digamos, a título de contra-exemplo, que as exigências a título de liberdade pessoal que são exigidas a um padre são muito maiores!


Sandra M. Lopes

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