Uma discussão em torno da liberdade de expressão e do Código Deontológico
A propósito do artigo “Eu sou Gentil Martins” da autoria de Abel Matos Santos e que pode ser lido
clicando aqui, vale a pena ler o comentário da leitora Sandra M. Lopes
que transcrevemos abaixo:
Uma coisa é o
direito à liberdade de expressão, que inclui o direito a manifestar
publicamente uma opinião, e de a disseminar livremente, sem medo de censura;
este ponto nem sequer carece de discussão, pois é um direito
constitucionalmente garantido. Em particular, este direito garante que qualquer
pessoa em Portugal possa emitir qualquer tipo de opinião, por mais estúpida,
disparatada, e completamente errada que seja; o direito é universal,
inalienável, e não pode ser limitado sob qualquer forma de censura, explícita
ou implícita (como acontece através da «pressão social do politicamente
correcto», por exemplo).
Até aqui estamos todos de acordo, e até aqui devemos ser todos Gentil Martins,
e não termos receio de mostrar a nossa ignorância e preconceito publicamente,
só porque somos socialmente condicionados a mostrar o nosso melhor em público.
Temos o direito a sermos burros e a manifestar a nossa burrice publicamente!
Ninguém pode sequer ousar impedir-nos de fazer figuras tristes e lamentáveis, e
de dar o pior exemplo possível à sociedade mostrando publicamente os nossos
preconceitos!
Por outras palavras: em Portugal, não
é proibido ser-se homófobo. Nem sequer é proibido veicular a
nossa homofobia publicamente. O que é proibido, isso sim, é discriminar pessoas
devido à sua orientação sexual ou identidade de género; mas emitir uma opinião
parva não é «discriminação», é apenas uma opinião parva, manifestada livremente
e de acordo com os princípios constitucionalmente garantidos — os idiotas têm
exactamente o mesmo direito a manifestarem livremente as suas opiniões, sem
quaisquer constrangimentos ou censura, tal como qualquer outra pessoa. Até
porque estão em maioria!
No seu caso concreto, caro Dr. Abel Matos Santos, não há problema algum que
seja homófobo, ou que as suas convicções pessoais, morais, ou religiosas, o
impeçam de aceitar a verdade científica subjacente ao estudo
das questões LGBT. Pode, inclusivé, veicular livremente a sua opinião, enquanto
cidadão, nos meios da comunicação social.
Mas a questão já é muito diferente quando os seus preconceitos e as suas
convicções religiosas ou ideológicas condicionam a forma como trata os seus
pacientes. Certamente não preciso de lhe citar o Código Deontológico que aceitou
respeitar quando se tornou membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses, cujas
partes saberá de certeza de cor, e que cito apenas para conveniência dos
leitores do Observador que não o conhecem tão bem como o Sr. Dr.:
Os/as
psicólogos/as têm como obrigação exercer a sua actividade de acordo com
os pressupostos técnicos e científicos da profissão, a partir de uma
formação pessoal adequada e de uma constante actualização profissional, de
forma a atingir os objectivos da intervenção psicológica. [...] A
competência será o reconhecimento de que os/as psicólogos/as devem estar
conscientes que têm como obrigação fundamental funcionar de acordo com
as boas práticas baseadas em conhecimentos científicos actualizados, por
existir um risco acrescido de prejudicar seriamente alguém se prestarem um
serviço para o qual não estão convenientemente qualificados. [...] Os/as
psicólogos/as deverão ter em atenção que quando desempenham a sua
actividade de uma forma menos competente contribuem para o descrédito da
Psicologia. [...] Paralelamente, será fácil compreender que a única
forma que o profissional tem de responder pelas suas acções e de ter uma noção
o mais objectiva possível sobre a sua intervenção, é desenvolver uma
actuação baseada em conhecimentos científicos actualizados. [...] A
dificuldade reside no facto de, por vezes, o interesse individual poder
entrar em conflito com o interesse social. Nestas circunstâncias, o
profissional deve procurar um meio de suprimir, na medida do possível, as
potenciais consequências negativas a estes dois níveis. [...] Outra
dimensão da responsabilidade reside na importância do desenvolvimento
do conhecimento científico. [...] Deste modo, a integridade, tal como
foi expressa, poderá ficar comprometida sempre que o profissional se deixar
influenciar pelas suas próprias motivações ou crenças, preconceitos e juízos
morais [...]
O negrito é da minha responsabilidade; poderia continuar, mas quem quiser pode
consultar o código deontológico da OPP, está online e não é segredo
nenhum.
Por outras palavras: o código
deontológico da OPP não impede o psicólogo de ter opiniões e convicções
contrárias aos princípios estabelecidos cientificamente. Impede, isso sim, que
essas opiniões, que se convertem em juízos morais e preconceitos, interfiram na
sua actividade enquanto psicólogo. Na relação com os seus pacientes, o Sr. Dr.
encontra-se obrigado a restringir-se exclusivamente aos
conhecimentos científicos existentes sobre os problemas dos seus
pacientes, abstendo-se de utilizar as suas convicções pessoais
ou julgamentos morais, independentemente de serem válidos ou não (o que é
indiferente neste caso). Encontra-se igualmente obrigado a actualizar os
seus próprios conhecimentos científicos, e a não pronunciar-se, enquanto
psicólogo, sobre áreas do conhecimento das quais nada percebe (sim, está lá
escrito no código deontológico também...).
Ou seja, não está em causa que o Dr.
Gentil Martins, ou o Dr. Abel Santos, tenha as opiniões que muito bem tenha, e
que as formule publicamente, sem medo de censura ou represálias. Isso não está
em questão. O que é problemático é que faça essas afirmações não como
cidadão, mas como profissional da área da saúde, contrariamente ao que é
afirmado nos respectivos códigos deontológicos. Repare que se o Dr. Abel Santos
não tivesse terminado o seu artigo com «Especialista em Psicologia Clínica»,
provavelmente nem faria este comentário. Mas ao assinar o artigo desta forma,
está a passar a imagem de que emite a sua opinião como psicólogo, e
não «meramente como cidadão». É isso que é não só lamentável, mas que vai
expressamente contra o código deontológico que aceitou seguir enquanto membro
da Ordem dos Psicólogos Portugueses.
E é isso que não pode ser. Não podemos
ter pessoas que se intitulam de médicos ou especialistas, em áreas científicas,
e que abusam da sua autoridade enquanto peritos no assunto, para afirmarem as
suas convicções pessoais, religiosas e ideológicas, contrárias aos
conhecimentos científicos dos assuntos que discutem, e assim influenciarem a
população em geral que tem acesso a esses comentários. Estão a fazer passar por
conhecimento científico, apenas pela profissão que desempenham, aquilo que é
meramente uma convicção pessoal, religiosa ou ideológica. E isso é proibido —
por isso é que existem códigos deontológicos! — enquanto se quiser manter
membro da Ordem a que pertence e enquanto quiser continuar a desempenhar a sua
profissão de «especialista em psicologia clínica».
Repare que não existe aqui qualquer
«censura» às suas opiniões enquanto cidadão. Se o Dr. Abel Santos
tivesse assinado o seu artigo dizendo A opinião acima transmitida é da
exclusiva responsabilidade do seu autor, e não compromete nem vincula a Ordem a
que este pertence, nem pretende estabelecer um princípio científico, mas é
meramente a livre expressão da opinião individual do autor ou algo do
género, então tudo estaria bem, não haveria problema algum. Como disse, todos
temos direito às nossas opiniões idiotas, independentemente da profissão que
desempenhamos. Mas não foi isso que o Dr. Abel Santos fez: indicou claramente e sem
ambiguidade que transmite a sua opinião porque é especialista
em psicologia clínica. Ora o código deontológico da sua Ordem não lhe
permite isto! Não pode passar «opiniões» baseadas em convicções pessoais,
religiosas e/ou ideológicas como se fossem ciência!
De notar que ninguém o obrigou a
ser psicólogo; ninguém o obrigou a entrar para a Ordem dos Psicólogos
Portugueses; ninguém o obrigou, quando se fez membro, a aceitar o seu código
deontológico; fê-lo de livre vontade, sem constrangimentos ou obrigações
(porque a Constituição defende não só o livre direito a associar-se o que
quiser, mas também o direito a não ser obrigado a associar-se
ao que não quiser!). Mas se o fez, não tem outro remédio senão
cumprir as regras que lhe impõem — e que, faço notar, têm como único objectivo
garantir a respeitabilidade da profissão, a competência dos profissionais, e,
acima de tudo, a dignidade dos pacientes que exigem o melhor tratamento
possível que a ciência médica lhes permite.
O Dr. Abel Santos escolheu ser
psicólogo. Ninguém o obrigou a isso. Se queria ajudar as pessoas com os seus
problemas mentais, e veicular as suas convicções pessoais e religiosas, podia
ter ido para sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR). Bem sabemos
como a Igreja tem falta de pessoas com vocação que estejam disponíveis para
consagrar a sua vida a ajudar os outros de acordo com os princípios
religiosos estabelecidos pela Igreja. A profissão de padre é uma profissão
tão digna como a do psicólogo, e há quem afirme que é tão importante,
socialmente, como a profissão de médico ou psicólogo (posso não partilhar dessa
opinião, mas isso é irrelevante).
Claro que ser-se padre também obriga
a cumprir outro código deontológico, porventura mais difícil
de seguir que o do psicólogo, mas não é isso que está em questão: o que é
fundamental é que, de uma vez por todas, os psicólogos deixem de fingir que são
padres; em ciência não há espaço para juízos religiosos. É por isso que os
médicos e psicólogos (e, aliás, todas as profissões liberais representadas por
ordens, sindicatos, associações, etc.) têm códigos deontológicos: é porque
quando existe conflito entre a ciência e a religião, ideologia, ou as
convicções pessoais, os médicos e os psicólogos estão obrigados a
seguirem apenas a ciência quando emitem opiniões enquanto
profissionais.
Lamento, mas Gentil Martins — e Abel
Santos — não têm razão em nada. Não enquanto continuarem a
persistir na falácia da autoridade e na liberdade de opinião para fazerem
passar por «verdades absolutas» aquilo que são meras convicções pessoais,
religiosas, ou ideológicas. Isso está-lhes vedado pelo código deontológico a
que voluntariamente se submeteram. E esse código existe precisamente para
evitar que psicólogos e médicos emitam opiniões disparatadas sem qualquer
fundamento científico, fazendo com que as respectivas profissões percam
respeitabilidade e credibilidade!
Nós, portugueses, merecemos ter
profissionais da saúde respeitáveis, credíveis, nos quais possamos confiar
plenamente, que estejam actualizados relativamente à ciência, e que não deixem
os seus preconceitos morais, religiosos, ou ideológicos interferir na
respectiva profissão. E quem salvaguarda que isso seja assim mesmo são as
respectivas Ordens profissionais. Por isso, lamento, mas o Dr. Abel
Santos não tem qualquer razão nem fundamento para o que escreve enquanto
especialista em psicologia clínica. O cidadão Abel Santos
pode escrever as baboseiras que quiser; o Dr. Abel Santos não,
está condicionado pelo código deontológico a que livremente e de plena
consciência subscreveu e aceita, para poder exercer a sua profissão. Profissão
essa que ninguém o obrigou a escolher. Mas uma vez tendo-a escolhido, está
sujeito às obrigações, constrangimentos e limitações que essa profissão lhe
sujeita.
Note-se que ainda por cima esses
«constrangimentos» nem são muito fortes. Basta apenas veicular opiniões
profissionais que estejam de acordo com a ciência, e actualizar-se para que
tenha conhecimento do que a ciência diz a respeito dos vários assuntos. Digamos
que não é uma exigência muito grande, nem é um atentado à sua liberdade
enquanto indivíduo. Digamos, a título de contra-exemplo, que as exigências a
título de liberdade pessoal que são exigidas a um padre são muito maiores!
Sandra M. Lopes
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