Século 21 tem crescimento de guerras civis, e internet está por trás disso
Século 21 tem crescimento de guerras civis, e internet está
por trás disso
RICARDO BONALUME NETO
29/07/2017
RESUMO Após declínio na década de 1990, número
de guerras civis dispara. Conflitos atuais têm características novas, com
objetivos transnacionais e predomínio de ideologia extremista. Estudiosos
começam a analisar impacto da internet nas insurgências, tema abordado pelo
manual de contraguerrilha das Forças Armadas dos EUA.
Especialistas
acreditam que a democracia na Polônia ainda corre risco , mas, ao menos por ora, o pior
passou. Contrariando seu partido –o nacionalista e conservador Direito e
Justiça (PiS)–, o presidente Andrzej Duda vetou duas das três leis que
reduziriam os poderes do Judiciário.
Há
pouca dúvida de que as manifestações tiveram papel decisivo nessa decisão
surpreendente. Dezenas de milhares de poloneses vinham protestando pelo país, e
os atos se intensificaram no final de semana passado. O Parlamento, controlado
pelo PiS, aprovou as três leis no dia 21, sexta-feira.
Também
há pouca dúvida de que a internet contribuiu para a formação das multidões. A
hashtag #3xNie se multiplicou nas redes sociais, e seu significado ("três
vezes não") indicava com clareza o que parcela expressiva da população
esperava de seu presidente.
Nem
sempre, porém, as redes sociais estão do lado democrático da história. No
artigo "The New New Civil Wars" (as novas novas guerras civis,
publicado em maio na "Annual Review of Political Science"), a
cientista política Barbara F. Walter, professora da Universidade da Califórnia
em San Diego, afirma: "Estamos em uma nova fase da guerra civil, em que religião e ideologia parecem ter papel predominante, e uma
nova tecnologia –a internet– parece influenciar o comportamento de formas
inéditas e ainda inexploradas".
Hoje,
de acordo com Walter, as guerras civis são disputadas majoritariamente em
países muçulmanos (cerca de 65% delas, contra 40% de 1989 a 2003), a maioria
dos grupos rebeldes defende leituras radicais do islamismo (antes, facções se
organizavam em torno de etnias ou razões socioeconômicas) e quase todos
perseguem objetivos transnacionais, e não locais.
Embora
a tecnologia ofereça oportunidades a todos os atores políticos –cidadãos,
grupos rebeldes, milícias radicais, organizações civis, governos, países
estrangeiros–, é no contexto de turbulência social que seus efeitos se mostram
mais imprevisíveis. Como diz Walter, ainda não há muitos estudos sobre a
revolução que as novas ferramentas de comunicação podem provocar nas guerras
civis.
MANUAL
Isso
não significa que o tema tenha sido sumariamente ignorado. Na mais recente
versão do manual de contraguerrilha do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais
dos EUA (obra conjunta), de 2006, o general do Exército David Petraeus incluiu
uma análise sobre as redes sociais e sua importância para os grupos
insurgentes.
A
versão anterior de um manual do tipo havia sido publicada 20 anos antes pelo
Exército e 25 pelos Marines. Um atraso curioso, pois os fuzileiros navais foram
pioneiros no combate das chamadas "small wars" (do espanhol
"guerilla", ou pequenas guerras).
Os
marines, até a Segunda Guerra (1939-45), passavam boa parte do tempo lutando
contra nativos em vários continentes, com ênfase na América Central e no
Caribe.
Um
livro divertido –e politicamente incorreto hoje– é o clássico "Small Wars
"" Their Principles and Practice" (guerrilhas, princípios e prática),
do coronel britânico Charles Edward Callwell, publicado em 1899, mas com a
melhor edição, revista e ampliada, datando de 1906.
"Pequenas
guerras incluem a guerra de 'partisans', que geralmente surge quando soldados
treinados são empregados para lidar com a sedição e insurreições em países
civilizados; elas incluem campanhas de conquista, quando uma grande potência
adiciona o território de tribos bárbaras às suas possessões; e incluem
expedições punitivas contra tribos na fronteira de colônias distantes",
escreveu o coronel, que depois do livro chegaria a general.
Petraeus
teve bons professores. No prefácio do novo manual ("The U.S. Army and
Marine Corps Counterinsurgency Field Manual", o manual de contraguerrilha
do Exército e do Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA), em parceria com James
Amos, general fuzileiro naval, escreveu:
"Este
manual toma um enfoque geral para as operações contra insurgências. O Exército
e Corpo de Fuzileiros Navais reconhecem que cada insurgência é contextual e
apresenta seu próprio conjunto de desafios. Você não pode lutar contra
ex-partidários de Saddam [Hussein] e extremistas islâmicos do mesmo modo que
teria lutado contra o Viet Cong, os Moros ou os Tupamaros [guerrilhas do
Vietnã, das Filipinas e do Uruguai, respectivamente]."
O
livro tem instruções sensatas e que podem parecer óbvias, mas não para
instituições conservadoras, que mudam lentamente, como as Forças Armadas.
Vide
a distinção entre práticas de sucesso e outras malsucedidas. É bom
"enfatizar a inteligência", "colocar o foco na população, nas
suas necessidades e na segurança" ou "ampliar a área segura".
Não é bom "enfatizar [...] a morte e a captura do inimigo, em vez de
prestar segurança e lidar com a população".
Isso
traz um eco de Vietnã, de "contagem de corpos" (ruim) ou de ganhar
"corações e mentes" (bom)? Exato. Mas a segunda estratégia foi
implantada tarde demais. O país e sua população tinham sido devastados por
bombardeiros e pela artilharia –as duas armas mais letais e as menos indicadas
na contrainsurgência. Bombas e granadas não ganham nem corações nem mentes;
elas os explodem.
INTERNET
Se
essa distinção remetia ao passado, o trecho sobre redes sociais olhava para o
futuro, hoje presente. "Para uma insurgência, uma rede social não é apenas
uma descrição de quem é quem na organização. É um retrato da população, de como
ela é composta e de como seus membros interagem uns com os outros", diz o
manual.
O
melhor título de um livro sobre o tema é "Learning to Eat Soup with a
Knife: Counterinsurgency Lessons from Malaya, Vietnam, and Iraq"
(aprendendo a tomar sopa com faca: lições de contrainsurgência da Malásia, do
Vietnã e do Iraque), escrito pelo tenente-coronel americano John Nagl.
Ele
mostra como a capacidade de aprender algo novo e improvisar fez os britânicos
terem sucesso na Malásia, enquanto a incapacidade correspondente levou os
americanos a fracassar no Vietnã. Na era das redes sociais, o aprendizado pelas
Forças Armadas, pela polícia e pelas autoridades que lidam com insurreições e
atentados terroristas tem que ser cada vez mais rápido; as organizações do
Estado devem aprender depressa como tomar sopa com faca.
As
orientações poderiam soar fora de moda no quadro da década de 1990. O número de
guerras civis e guerrilhas tinha diminuído com o término da Guerra Fria e o fim
dos seus conflitos "quentes" entre União Soviética e EUA –as guerras
por procuração, ou seja, por intermediários, sem envolvimento direto das
grandes potências.
No
século 21, porém, a praga voltou a se alastrar. Em países como o antigo Zaire
(hoje República Democrática do Congo), a Líbia, o Iêmen, Ruanda, Somália,
Sudão, Mali, Sri Lanka e até mesmo na Ucrânia, proliferaram os combates, em
geral alimentados pelas verdadeiras "armas de destruição de massa":
fuzis da antiga União Soviética (AK-47, AKM e AK-74) e as armas portáteis
antitanque RPG ("granadas propulsadas por foguete").
Ou os
mais de 50 mil tanques produzidos no leste europeu outrora comunista. Em muitos
países, essas armas são mais disseminadas que a Coca-Cola.
Mas
não são apenas as armas. Essas guerras se tornam mais intensas por causa da
internet e da disseminação em massa de celulares e computadores baratos. Nas
democracias, redes sociais facilitam a organização de protestos. É só convidar
e se conectar aos demais manifestantes.
Ocorre
que a tendência também vale para o agrupamento numa guerra civil e para
arregimentação por parte de grupos terroristas .
Pesquisa
publicada na revista científica americana "Science" mostrou algo
surpreendente. O Estado Islâmico pode ter uma visão medieval sobre o lugar das
mulheres na sociedade, mas a presença do grupo em redes sociais mostra que o
papel das mulheres é crucial no recrutamento e na máquina de propaganda.
Existem mais homens envolvidos nos ataques terroristas, mas são as mulheres que
constituem a cola operacional.
As
redes sociais também facilitam o financiamento dos insurgentes. Não falta gente
disposta a apoiar um grupo rebelde do Sudão ou da Libéria –pelo charme da
coisa, por convicção ou só para gastar o dinheiro do papai rico.
E,
como a internet é global, o terror, a guerrilha ou a insurgência também podem
agir globalmente; o 11 de Setembro de 2001 só iniciou a moda.
Guerrilha
e redes sociais viraram tema de pesquisa acadêmica. Além da já citada Barbara
F. Walter, é o que estuda Elisabeth Jean Wood, professora de ciência política
de Yale. Ela conduziu levantamentos em El Salvador, Peru, Sri Lanka e Serra
Leoa. "Esses processos reconfiguram redes sociais de diversas maneiras,
criando redes, dissolvendo algumas e mudando a estrutura de outras",
concluiu.
Até
em um país pobre –e o mais novo do planeta–, como o Sudão do Sul, as mídias
sociais incitam conflitos e são facilmente acessíveis: três em cada quatro
jovens têm acesso a Facebook, Twitter e WhatsApp, e cerca de 60% deles usaram
as redes para incitar ódio contra supostos "inimigos" –isto é, gente
de outras etnias.
Mesmo
na supostamente mais civilizada Europa, as redes disseminaram ódio. Foi o que
se viu na Ucrânia, onde conflitos iniciados em 2014 deixaram dezenas de mortos.
A carnificina também apareceu ao vivo e a cores nas telas de celulares e
computadores.
Como
sabe todo brasileiro que acompanha a crise política atual, não faltam boatos e
mentiras, desinformação e ódio ideológico, especialmente nas redes sociais. O
mundo está repleto de "coxinhas" e "mortadelas".
RICARDO BONALUME NETO, 56, jornalista, é
autor de "A Nossa Segunda Guerra - Os Brasileiros em Combate,
1942-1945" (Expressão e Cultura) e de "Brazilian Expeditionary Force
in World War II" (Osprey), com Cesar Campiani Maximiano.
Fonte: Aqui
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