"A cota é um elemento forte de justiça", diz ex-ministro Renato Janine
Na avaliação do filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, "a cota é um elemento forte de justiça". Para o professor aposentado de Ética e Filosofia da USP, estabelecer cotas para camadas mais pobres da sociedade corrige um erro histórico do Brasil.
Para ler a entrevista de Renato Janine Ribeiro clique aqui
O desconforto com as cotas é patente e emerge um racismo de reação
Angela Alonso
30/07/2017
O Brasil agora gosta de se definir como multicultural. O nome
antigo era "democracia racial", mas o sentido permanece: não temos
conflitos étnicos. A harmonia na diversidade é um mito nacional e, como todos
os mitos, encobre e revela. Encobre a desigualdade entre os grupos étnicos e
revela a dificuldade coletiva em tratar do assunto.
O mito passou a ser denunciado. A Flip deste ano é exemplar. Não
por eleger escritor negro (Machado de Assis já foi homenageado), mas por ter
30% dos conferencistas de sua cor.
A ação tem impacto simbólico, mas as artes sempre patrocinaram a
ascensão dos negros. Habilidades ("talento") e esforço
("mérito") individuais lhes facultaram galgar o pódio –em música
(Gilberto Gil), dança (Ismael Ivo), artes plásticas (Emanoel Araújo). Mas
chegar ao topo é excepcional. Negros como protagonistas de novela são recentes.
E raros. Comuns são representações que os associem aos trabalhos subalternos, à
pobreza e à criminalidade.
Nos esportes, onde corpos e aptidões natas são fator de distinção,
as possibilidades se abrem, mas restritas a áreas de baixo investimento
inicial. Faltam negros nos esportes de elite: esgrima, equitação, iatismo,
automobilismo. Até o futebol, esporte coletivo mais democrático, vem
restringindo o ingresso. A profissionalização impôs adestramento precoce do
corpo, e aí o que se come, onde se treina limita a ascensão apenas pelo
"talento".
Se nessas carreiras periféricas a desigualdade se impõe, nas que
concentram o mando social, o abismo se alarga. Dos Poderes da República, o
Legislativo é o mais poroso aos negros, mas a Câmara dos Deputados nunca foi
presidida por um. Um país de maioria negra nunca teve presidente negro. No
Judiciário, a exceção Joaquim Barbosa confirma a regra.
A democracia racial faz mais água onde está o dinheiro. Além da
disparidade de renda, a supremacia branca é patente nas posições de comando de
recursos públicos e privados. E se reproduz. O direito de herança transmite um
patamar básico de superioridade econômica dos brancos de uma geração a outra.
Filhos de negros saem da maternidade em desvantagem.
Mas desigualdade não é apenas vício de origem. Repõe-se ao longo
da vida. A escolarização deveria anulá-la, mas a reforça. Filhos da elite
social se beneficiam de terapias corretivas, formação complementar e frequência
a instituições privadas de qualidade superior às públicas. Escolas –e as
famílias que as frequentam– se declaram contra discriminações, mas basta entrar
nelas para ver de que cor são seus alunos.
Estes herdeiros, bem preparados a vida toda, se tornam maioria nos
cursos superiores de maior prestígio: engenharia, medicina, direito. Assim, a
escolarização superior repõe o privilégio da elite social branca.
O debate sobre cotas nas universidades, que causou barulho recente
na USP, precisa ser entendido à luz desse padrão de reprodução da desigualdade
étnica.
Argumentos liberais, em favor de talento e mérito, ignoram que
negros sempre largam atrás e sofrem mais obstáculos no percurso. Os que chegam
ao vestibular são grandes maratonistas sociais. Mas por mais
"talentosos" e "esforçados" que sejam, poucos cruzarão por
si a linha de chegada dos cursos concorridíssimos, como a medicina.
As cotas não compensam a escravidão –é impossível. Tentam garantir
aos negros de hoje chances genuínas de ascender a posições de prestígio e poder
social.
Se as cotas vierem a ser mesmo efetivas, vão pôr em xeque os
mecanismos de hierarquização étnica ativos aqui e agora. E também a propalada
harmonia interétnica. Ou se crê que tudo seguirá como dantes quando o
cirurgião, o empresário, o governante forem negros?
O desconforto com as cotas é patente. Contestações se fazem em
nome do universalismo (há brancos pobres) e da livre competição (como se ela
existisse).
Junto emerge um racismo de reação. Os negros que acessam as
escolas públicas de elite vêm sendo expulsos por mecanismos de rebaixamento,
via humilhação. Outra alternativa extrema, já aplicada ao ensino básico, seria
o abandono da universidade pública pela elite social. A existência de cursos
privados de excelência em direito (FGV), engenharia (Insper) e medicina
(Einstein) aponta a exequibilidade desse caminho.
A mera existência de celeuma em torno das cotas desmente o mito da
democracia racial. A desestabilização desse regime sólido e longevo de
reprodução da desigualdade étnica não virá sem reações. O racismo explícito é
apenas uma delas.
FONTE: Aqui
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