Christian Coelho: A necessidade de dizer Não
A
necessidade de dizer Não
Quando a realidade se torna insustentável, a poesia nos
lembra da necessidade de dizer Não.
Na primeira metade do século XX, retratando a Guerra Civil
Espanhola, Manuel Bandeira escreveu o poema "No vosso e em meu
coração", bradando poeticamente contra o fascismo, com a negação da
Espanha de Franco e a afirmação de uma Espanha da criação e da liberdade:
"Espanha no coração:/ No coração de Neruda,/ No vosso e em meu coração./
Espanha da liberdade,/ Não a Espanha da opressão./ Espanha republicana:/ A
Espanha de Franco, não!"
O poeta retoma grandes nomes da história da arte espanhola
como João da Cruz, Teresa de Ávila, Lope, Góngora, Góia, Cervantes, Picasso,
Casals e "Lorca, irmão/ Assassinado em Granada!", contrapondo-os ao
autoritarismo do franquismo e de outros períodos da nação, afirmando a
"Espanha republicana,/ Noiva da Revolução!". É a poesia contra a
traição, a Inquisição, o fascismo, a morte. A Espanha de Neruda e Lorca, sim;
"A Espanha de Franco, não!".
Em 1978, ainda sob o
fascismo da ditadura brasileira, Belchior lançou o álbum "Todos os
sentidos". A primeira música é a clássica "Divina comédia
humana", céu e inferno dos amores, futebol, filosofia, Dante, Freud, Olavo
Bilac... O genial poeta da canção, Dante dos trópicos, encerra lembrando que
"Enquanto houver espaço, corpo e/ Tempo e algum modo de dizer não/ Eu
canto". Em tempos sombrios, caro Brecht, canto, poesia. Palavras são
navalhas, amar e mudar as coisas interessa mais e o novo sempre vem... Volta
Belchior!
Em julho de 1988, ainda sob o fascismo da ditadura do
general Pinochet, centenas de intelectuais e artistas participaram do
"Chile cria", encontro internacional de arte, ciência e cultura pela
democracia no país. O discurso de abertura foi pronunciado por Eduardo Galeano,
intitulado "Nós dizemos não". O mestre da prosa poética inicia
dizendo que "Viemos de diversos países, e estamos aqui, reunidos à sombra
generosa de Pablo Neruda: estamos aqui para acompanhar o povo do Chile, que diz
não. Nós também dizemos não."
"Dizemos não ao elogio do dinheiro e da
morte", ele diz, na sequência. Denuncia o sistema assassino que transforma
tudo em mercadoria, multiplicando a pobreza, a concentração da riqueza e também
a solidão: "nós dizemos não a um sistema que nega comida e nega
amor, que condena muitos à fome de comida e muitos mais à fome de
abraços". A cultura dominante, cultura da mentira, do desvínculo e do
desprezo, "especula com o amor humano para arrancar-lhe
mais-valia".
Por isso, é necessário dizer não ao medo, "Não
ao medo de dizer, ao medo de fazer, ao medo de ser". Dizer não à
"Neutralidade da palavra humana", indagando: "Seria bela a
beleza, se não fosse justa? Seria justa a justiça, se não fosse bela? Nós
dizemos não ao divórcio entre a beleza e a justiça, porque dizemos sim ao seu
abraço poderoso e fecundo."
Dizendo não, estaremos dizendo sim: "Dizendo
não às ditaduras, e não às ditaduras disfarçadas de democracias, nós estamos
dizendo sim à luta pela democracia verdadeira, que a ninguém negará o pão e a
palavra, e que será bela e perigosa como um poema de Neruda ou uma canção de
Violeta Parra."
É necessário dizer não à cobiça, à indignidade, à
liberdade do dinheiro; sim "a outra América possível",
rebelde, justa, livre, solidária. Não "ao triste encanto do
desencanto", sim à "esperança faminta e louca e amante
e amada, como o Chile", como o Brasil, como a América Latina.
(Sobre o não chileno, vale a pena o filme
"No", de Pablo Larraín, com Gael García Bernal, baseado na peça
"El Plebiscito", de António Skármeta).
No Brasil atual, é necessário dizer Não. Como esses e
muitos outros artistas, nós dizemos não.
Não ao
golpe político-econômico-jurídico-midiático. Não à ofensiva
conservadora, à retirada de direitos, aos retrocessos. Não à espoliação,
ao estado de exceção, à permanência da escravidão. Não à morte em larga
escala, não ao pessimismo e à impotência, não ao desencanto do
mundo.
A poesia, a canção, são "os anticorpos da nação",
como disse o Tom Zé. Uma defesa contra o fascismo, uma "tradição
penicilínica". "Um
grão de poesia basta para perfumar todo um século", nos lembra José Martí.
Em tempos temerosos,
"Havemos de amanhecer", caro Drummond. "Faz escuro mas eu canto/
porque a manhã vai chegar", das margens do Rio Amazonas do nosso Thiago de
Mello para o resto do país.
Dizendo não, estamos
dizendo sim.
Sim, na
afirmação das potencialidades do Brasil. Da poesia, da canção, dos ritmos, do
futebol poesia de Pasolini. Da síntese antropofágica. Da memória ancestral,
criação e resistência. Das artes, dos corpos, dos gestos e afetos. Das ações, de
saberes outros. Das sociabilidades nascidas do precário e das possibilidades de
beleza e justiça.
Manhã utópica grávida de
encontro, lembrança da vida.
Christian
Coelho, inverno de 2017
OBSERVAÇÃO - Um agradecimento especial ao Christian Coelho que tão gentilmente me cedeu seu texto para postá-lo no blog.
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