Não começou? Agora vamos até o fim
Não começou? Agora vamos até o fim
Bernardo Carvalho
11/06/2017
Não
é preciso ter estudado direito para saber que não se condena uma pessoa por
convicção. Mas tampouco era preciso esperar pelos áudios de Michel Temer e
Aécio Neves para entender onde estamos.
De
todas as surpresas das últimas semanas, a que mais me surpreendeu foi o espanto
de quem desde o impeachment capitaneado por Eduardo Cunha, com o Congresso a
reboque, ainda confiava na lisura do governo formado no dia seguinte para
"estancar a sangria", segundo áudios anteriores. É difícil acreditar
nesse espanto sem ofender quem caiu na esparrela.
É
tortura suplementar lembrar à vítima do engodo descarado cada uma das
evidências que a levaram à situação em que se encontra. A menos que não seja
vítima de engodo nenhum. Nesse caso, talvez fosse interessante tentarmos pelo
menos chegar a um acordo sobre nosso futuro comum, desta vez sem a
interferência de oportunismos, interesses escusos e má-fé. Não começou? Agora
vamos até o fim.
Só
existe pacto social onde e quando todos, a começar por quem o propõe, estão
dispostos a fazer esforços e concessões pelo bem comum.
É
simples e cristalino: não tem autoridade moral para propor e aprovar leis
(necessárias, segundo economistas) que vão sufocar direitos fundamentais dos
cidadãos quem manipula e emperra o andamento de reformas capazes de quebrar o
ciclo vicioso de práticas ilícitas das quais se beneficia, fazendo uso privado
de capital e interesses públicos.
Muito
menos quem se aferra ao poder para salvar a própria pele, em detrimento do país
ao qual supostamente deveria prestar contas, mas cuja salvação econômica
insiste em associar a si, como se a um chefe de Estado restasse apenas conceber
a melhor estratégia para escapar à Justiça.
Aos
que, passando de uma estratégia ruim a outra pior, apostaram na farsa do
impeachment para depois hesitar até o último segundo entre abandonar ou
defender um governo notoriamente corrupto e terminal, não custa lembrar que
estamos no mesmo barco e que, mais do que nunca, a desfaçatez e o oportunismo
homicida têm tudo para se converter em suicídio a longo prazo.
Demorei
a assistir a "Joaquim", filme de Marcelo Gomes sobre Tiradentes. O
protagonista sonha com um país melhor, inspirado nos princípios da Revolução
Americana. Sonha com um lugar mais justo. É um homem tosco nas mãos de um grupo
cujos interesses a sua ingenuidade de alferes não lhe permite entender
completamente.
É
emblemática a última cena, quando Joaquim vai comer na fazenda de um desses
inconfidentes, proprietário de terras. A certa altura, enquanto todos o
observam devorando um pernil com a voracidade de um bruto, a mulher ou a filha
do dono da casa dá uma gargalhada.
Essa
mulher também deve sonhar com um ideal de mundo civilizado, também deve achar
incrível o que a civilização é capaz de fazer longe daqui, já que vive numa
terra onde impera a sordidez escravocrata e a lei dos brutos. Deve achar que
essa sordidez e essa lei não lhe dizem respeito. Só não está disposta a pagar o
preço (ou o pato) para tornar seu sonho realidade.
A
imagem de Michel Temer agarrado ao cargo de presidente do país, ao qual foi
alçado por um esquema que já não deixa dúvidas, tem muito a ver com a
gargalhada da mulher do proprietário de terras, embora Temer seja um homem de
aparência soturna, que preza modos recatados para a mulher e caricaturalmente
polidos para si, como entendemos ao longo dos meses que passou no poder.
A
questão é saber se entendemos (se queremos entender) o lugar onde estamos. Mais
gente do que eu gostaria de conhecer não precisa de um improvável mas possível
segundo turno entre Lula e Bolsonaro para não ver suicídio algum em votar neste
último.
Logo
após a revelação dos áudios de Temer e Aécio, um sujeito no vestiário da
academia de ginástica me perguntou o que eu estava achando daquilo tudo. Ele
estava injuriado: "Logo agora, quando tudo parecia estar voltando ao
normal, essa brigalhada toda".
"Pelo
menos agora está tudo escancarado e você pode decidir no que quer acreditar,
porque é um direito seu, mas já não pode impor o seu autoengano aos
outros", eu disse. "Quem faz o país é a gente", completei. Nessa
hora, ele se irritou: "Nunca fiz mal a ninguém". "Ninguém nunca
faz", respondi. "Mas precisa mais que isso, se quiser um país
melhor."
De
lá para cá, o riso da mulher em "Joaquim" passou a ressoar de outra
forma nos meus ouvidos. Ela não está rindo de nós, como pensei num primeiro
momento. Está rindo de si mesma. Dos seus filhos e dos seus netos. Só que não
sabe.
FONTE: Aqui
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