Lattes, o físico brasileiro que disputou o Nobel e nomeou base de currículos
Lattes, o físico brasileiro que disputou o Nobel e nomeou
base de currículos
ANTONIO AUGUSTO PASSOS VIDEIRA
CÁSSIO LEITE VIEIRA
CÁSSIO LEITE VIEIRA
24/06/2017
RESUMO Há 70 anos, o brasileiro César Lattes
teve participação decisiva em uma das descobertas mais importantes da física no
século 20: a detecção da partícula méson pi, que mantém o núcleo atômico coeso.
Seus feitos lhe renderam várias homenagens, entre as quais a de nomear a plataforma
acadêmica de currículos.
Há 70
anos, a descoberta de uma nova partícula subatômica causou sensação na comunidade
internacional e esteve por trás do gesto contido do jovem na foto estampada na
lateral desta página. A imagem simboliza um período em que ciência, alavancada
por ideais desenvolvimentistas e ligados à segurança nacional, integrou um
projeto de nação para o Brasil.
Então
com 24 anos de idade, Cesare Mansueto Giulio Lattes (1924-2005) foi
recepcionado pela imprensa ao voltar ao país no auge de sua fama, alcançada por
feitos na Inglaterra e nos EUA.
Único
físico formado na turma de 1943 da USP, aquele curitibano com planos de ser
professor secundário havia ido muito mais longe do que previra. César Lattes se
tornava "nosso herói da era nuclear".
A
revista "Nature" de 24 de maio de 1947, em poucas páginas, detalhava
a detecção de um novo fragmento de matéria: a partícula méson pi (hoje, píon),
responsável por manter prótons e nêutrons "colados" no núcleo
atômico.
O
feito era do laboratório H. H. Wills, da Universidade de Bristol, onde Lattes
havia chegado no início de 1946 a convite de Giuseppe Occhialini (1907-1993),
que fora seu professor na USP, e Cecil Powell (1903-1969), chefe do grupo.
A
equipe de Bristol usava placas fotográficas especiais para capturar a
trajetória e a desintegração de partículas subatômicas. Quando Lattes se
instalou na universidade britânica, o material havia passado por melhorias
técnicas e estava em fase de calibração.
Lattes
pôde pôr em prática um plano que havia traçado ainda no Brasil. Ele queria usar as chapas para estudar
os raios cósmicos, núcleos atômicos que, a todo instante, penetram a Terra e,
chocando-se com moléculas da atmosfera, geram uma chuveirada de partículas.
A
esperança dos físicos era a de que um desses nacos de matéria fosse uma
partícula ainda desconhecida. Para melhorar as chances dessa
"captura", as chapas eram expostas em montanhas. No final de 1946,
Lattes pediu a Occhialini que deixasse algumas caixas delas no Pic du Midi, nos
Pirineus franceses (2.500 m de altitude).
Parte dessas placas
tinha algo novo. Lattes havia pedido ao fabricante que incluísse, na sua
composição, o elemento químico boro. Essa inovação tornou mais fácil visualizar
as trajetórias dos dois mésons pi que ilustraram o artigo da "Nature"
há 70 anos.
Entusiasmado,
Lattes apostou que, no monte Chacaltaya, na Bolívia, com o dobro da altura do
Pic du Midi, ele poderia capturar mais mésons pi. O laboratório H. H. Wills
pagou a passagem até o Rio de Janeiro e, de lá, o brasileiro se viraria para
chegar ao seu destino. Montanhas, neve, cavernas, fundos de lago etc. Física
experimental tinha algo de aventura à época.
Do
pico andino, Lattes trouxe centenas de mésons. Os resultados foram publicados
em outubro de 1947 na "Nature", revelando mais detalhes sobre as
partículas.
CALIFÓRNIA
Ao
final daquele ano, o H. H. Wills ganhava ares de meca da técnica fotográfica
aplicada à física. As notícias da detecção do méson pi espalharam-se. Do norte
da Europa, veio o convite para Lattes dar palestras.
Em
Copenhague, o jovem brasileiro encontrou-se com Niels Bohr (1885-1962),
Nobel de Física de 1922. O dinamarquês ficou surpreso ao saber que Lattes
pretendia deixar Bristol e seguir para os EUA. Sua missão seria detectar mésons
no então mais potente acelerador de partículas do mundo, o sincrociclótron de
184 polegadas, na Universidade da Califórnia (Berkeley).
Essa
máquina, que começara a funcionar havia mais de um ano, tinha o propósito de
produzir mésons. Mas, para constrangimento geral, as partículas ainda não
haviam sido detectadas.
Lattes
chegou no início de 1948 e, dez dias depois, com a ajuda do colega norte-americano
Eugene Gardner (1913-1950), visualizou os mésons nas chapas fotográficas
expostas ao feixe de partículas gerado por aquele equipamento.
Pela
primeira vez, partículas detectadas apenas na radiação cósmica haviam sido
produzidas artificialmente. Além disso, a visualização dos mésons pi por Lattes
e Gardner mostrava que um avanço técnico implementado naquele sincrociclótron
funcionava.
Estavam
lançadas, assim, as sementes para uma nova forma de fazer física: a era das
máquinas, que transformaria os EUA no centro mundial desse ramo pelo próximo
meio século.
A
produção artificial do méson pi foi capa da revista "Science News
Times", ocupou páginas de duas edições da revista "Time",
mereceu entrevista coletiva com cobertura da "Nucleonics" e rendeu reportagens
no jornal "The New York Times", cuja editoria de ciência elegeu
aquele o feito mais importante da física no ano, comparando-o à fissão do
núcleo atômico.
No
Brasil, os feitos de Lattes também tiveram ampla repercussão. Jornais, revistas
e suplementos começaram a moldar "nosso herói da era nuclear". O
curitibano era o representante brasileiro de uma nova ordem mundial, na qual
conhecimento tornava-se sinônimo de poder (político e econômico).
No
mundo, naquele momento, nascia a aliança entre ciência, tecnologia, capital e
Estado. Eram as raízes do complexo militar-tecnológico dos EUA.
DESENVOLVIMENTISMO
O
Brasil reagiu a esse novo cenário mundial. Cevada por uma mentalidade
desenvolvimentista, uma campanha reuniu formadores de opinião de vários setores.
Pleiteava-se
a criação de um instituto no qual se fizesse, em período integral, pesquisa em
física. Por sua parte, militares nacionalistas viram ali a chance de obter o
ciclo completo da energia nuclear –ainda hoje de extrema importância.
O
sucesso do movimento rendeu frutos em 1949, quando foi fundado o Centro
Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). Lattes era seu diretor científico.
Nos
anos seguintes, essa primeira aliança entre físicos e militares criou dois
projetos distintos.
O
primeiro, de um "Brasil grande", capitaneado pelo físico-químico e
almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976), tinha como frente
principal a construção de um acelerador mais
potente que o de Berkeley. No outro, o do "Brasil realista",
defendido por Lattes, propunha-se algo mais modesto: um acelerador de pequeno
porte, para treinamento de estudantes.
O
acelerador do almirante Álvaro Alberto naufragou fragorosamente. O país nem
tinha os equipamentos necessários para a usinagem dos ímãs gigantescos usados
nessas máquinas.
O
cenário "Brasil grande", contudo, evaporou mesmo por causa de um
escândalo. O diretor financeiro do CBPF gastou a verba do acelerador em
corridas de cavalo.
Embora
desaconselhado por colegas, Lattes foi à mídia, e o jornalista Carlos Lacerda
(1914-1977) usou a história para atacar o governo de Getúlio Vargas, seu rival.
Lacerda publicou na capa de seu jornal, "Tribuna da Imprensa", uma
carta de Lattes.
Aos
30 anos, devido às pressões, Lattes teve um surto psiquiátrico. Viajou para os
EUA em busca de tratamento. Regressou ao Brasil em 1957, talvez para tentar
finalizar o que havia construído.
Crise
no CBPF, salários baixos, inflação, família numerosa e quadro mental instável.
Esses fatores levaram o físico de volta à USP, em 1959, onde seguiu com
projetos experimentais envolvendo o uso das placas fotográficas e o estudo dos
raios cósmicos.
Em
1967, Lattes transferiu-se para a então recém-inaugurada Universidade Estadual
de Campinas (SP), na qual se aposentaria.
Para
o Brasil, o méson foi muito mais do que uma partícula, e Lattes, muito mais do
que ele mesmo. Seus feitos impulsionaram a construção da estrutura
político-administrativa de ciência no país.
O
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) são frutos
de um projeto que alçou um cientista a herói nacional, de um país que percebeu
que conhecimento era a ordem do dia para uma nova geopolítica.
Até a
década de 1920, praticamente tudo o que havia de física experimental no Brasil
era um laboratório didático na Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Lattes
elevou o campo de estudos a novos patamares. Na década de 1950, construiu, em
Chacaltaya, um laboratório para estudar radiação cósmica. Nesse mesmo período,
a Europa, recuperando-se da Segunda Guerra, erguia seu centro de pesquisas
nucleares. Aquele era um Brasil –ao menos em ciência– protagonista da história.
As
trajetórias de partículas na forma de risquinhos pontilhados que aparecem no
artigo de maio de 1947 mudaram a ciência brasileira. E essa, nas décadas
seguintes, mudaria a cara do país.
Lattes
poderia ter feito carreira no exterior, mas optou por seu país. "Prefiro
ajudar a construir a ciência no Brasil do que ganhar um Nobel", escreveu,
na década de 1940, ao colega físico José Leite Lopes (1918-2006).
Não
era bravata. Em 1949, o japonês Hideki Yukawa (1907-1981) ganhou o Prêmio Nobel
de Física pela previsão teórica dos mésons. Um ano depois, Cecil Powell foi
laureado pelo desenvolvimento do método fotográfico que permitiu as descobertas
sobre os mésons. Lattes recebeu sete indicações ao prêmio.
Passados
70 anos, o nome "Lattes" e o termo "méson pi" ainda
ressoam. O cientista recebeu várias homenagens (títulos, prêmios, nomes de
rua). A faceta mais famosa é a plataforma acadêmica de currículos. São ecos
benignos de um país que havia feito da ciência uma prioridade. Com um pouco de
esforço, será possível não só capturar aquela mensagem, mas amplificá-la e
recolocá-la em prática.
ANTONIO
AUGUSTO PASSOS VIDEIRA,
53, é professor do departamento de filosofia da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro, colaborador do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e pesquisador
do CNPq.
CÁSSIO
LEITE VIEIRA, 56,
trabalha na revista "Ciência Hoje" e no Núcleo de Comunicação Social
do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.
Fonte: Aqui
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