Cracolândia: O dono da pistola de um nazista me deu o manual de eugenia
Em setembro do ano passado, os necrológios de Wilson Leite Passos informaram que o homem morto aos 89 anos tinha uma pistola que pertencera a um oficial alemão nazista. A confidência do antigo vereador e deputado havia sido feita a mim, no aniversário de vinte anos da morte de Nelson Rodrigues.
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Doria tem um senso de urgência que é equivocado, diz
ex-secretária dele
JOELMIR
TAVARES
DA COLUNA MÔNICA BERGAMO
01/06/2017
Patrícia
Bezerra, secretária da gestão João Doria (PSDB) que pediu para sair da pasta de Direitos Humanos três dias
após a intervenção na cracolândia, diz que sua situação no cargo "chegou
ao limite" por causa da ação.
Ela,
que é psicóloga e também filiada ao PSDB, participava das discussões para a
implementação do Redenção, programa da prefeitura para a região que acabou
tendo o início antecipado por causa da entrada da PM na área, no dia 21.
Patrícia
diz que no meio da fala que veio a público horas antes de seu pedido de
demissão, por meio de um vídeo em que chamava de "desastrosa" a
operação, sentiu que sua saída seria uma questão de tempo. "Foi um
desabafo."
Integrante
da igreja evangélica Comunidade da Graça, Patrícia é vereadora e está
reassumindo a cadeira na Câmara. Ela diz que continua na base de apoio do
governo, mas com liberdade para críticas.
Na carta de despedida, a sra. relatou dificuldades que
enfrentava havia algum tempo. Quais eram elas?
Falta
de interlocução direta com o prefeito, falta de compreensão do papel da
secretaria e do tema. Ele tem um senso de urgência que é equivocado. No caso do
Redenção, ao longo de quatro anos se faria um trabalho gradual. A pressa que
ele tem não respeita essa cronologia. Quanto tempo se levou para se instalar um
problema como a cracolândia? É sim num médio e longo prazo que vai se
mi-ni-mi-zar [dividindo as sílabas]. Redução de danos é fato, você tem que
lidar com isso.
Era um desgaste acumulado?
Você
vai perdendo a perspectiva. Fiz planos, levei pessoas gabaritadas, pensando em
deixar um legado. Se você vê que não existe o mesmo entusiasmo, sinergia,
compreensão, vai dando um sentimento de frustração. Houve o decreto de zeladoria [em janeiro, quando a prefeitura
publicou decreto retirando, sem consultar a secretária, o veto à remoção de
cobertores de moradores de rua]. Falei: tem que rever. Não aconteceu nada. Na questão da ponte [ela era contra dar o nome do
ex-senador Romeu Tuma à ponte das Bandeiras], falei que era uma aberração. Está
no relatório da Comissão da Verdade o nome do cara como quem chancelou torturas
no Dops.
Como era a relação com Doria?
Não
vou falar que foi ruim. Mas também não foi tão boa quanto poderia ter sido. Ele
aparenta ser uma pessoa muito aberta, pronta ao diálogo, mas ele não é tão
aberto assim. Aprendi a admirar muitas coisas no prefeito. Ele jamais vai
criticar alguém pessoalmente, faz questão de ser solícito, agradável,
demonstrar interesse.
Por
outro lado, ele está muito afoito. Entendo, porque ele está devedor da campanha
que fez e do número expressivo [de votos] que ele teve. Mas a cidade tem
prazos, inúmeros caminhos burocráticos, que são letárgicos, sim, mas são
processos que, se a gente atropela, passa por cima, dá margem para corrupção.
Acredito
que ele está num momento difícil porque está se deparando com esse freio. O
sentimento dele de querer fazer é verdadeiro, mas ele não consegue lidar com
essa impaciência de estar hoje num espaço sobre o qual ele não tem controle,
que é o dos ritos da administração pública.
A crise na cracolândia foi a gota d'água para sua saída?
Sim.
Chegou ao limite. Se eu continuasse no governo eu atrapalharia muito [os planos
de Doria]. E ele também me atrapalharia. Ele ia me frustrar cada vez mais,
porque eu ia querer fazer as coisas dentro das minhas crenças e, pela falta de
compreensão, ele não ia permitir que isso acontecesse.
Quando soube da operação?
Na
sexta-feira à noite [dois dias antes] o secretário Julio Semeghini me chamou
para uma reunião com outros secretários. Quando soube, eu devo ter ficado
pálida. Falei que minha preocupação maior era ser um Carandiru dois, um banho
de sangue. Falei que seria um fiasco porque ia espalhar todo mundo, como já havia
acontecido outras vezes. Lembrei que estávamos havia quase meses construindo um
projeto. Aí já comecei a pensar: bom, eu não vou ficar muito tempo.
A senhora fez algo para evitar que a ação acontecesse?
Eu
interpelei. Disse que era um absurdo, que poderia ser um banho de sangue. Eles
deixaram claro que já tinham conversado com o governo [do Estado] e que eles
não iriam abrir mão. Que eles estavam ali apenas comunicando. Tudo que
aconteceu eu previ. Avisei que ia se perder o vínculo, que é a coisa mais preciosa
para os agentes de saúde. Falei: vai dispersar todo mundo e não vai ter nenhum
resultado. Mas deixaram claro que não tinha volta, "não há nada que a
gente possa fazer para que isso não aconteça".
A sra. falou no vídeo anterior à sua saída que "a besteira
já foi feita". Qual é a besteira?
A
ação policial. Quando eu falei com o prefeito, disse: a ação de alguma forma
reverberou e ficou a conta para o município pagar. A ação foi malfeita e as
reverberações também foram ruins.
O
ponto nevrálgico foi derrubar um prédio com gente dentro ou fazer com que
parte dele caia em cima de alguém. Você olhar para aquilo e não falar que
aquilo foi profundamente errático. E não parar tudo momentaneamente,
estabelecer um gabinete de crise, ver o que fazer antes de retomar. Acho que
aquilo foi claro. Devia ter sido feito um mea culpa. Mas não foi feito porque
não se está parando para pensar no que está sendo feito.
Está
se fazendo, de forma automática, porque "tem que fazer". E não é
assim, tem que se fazer um planejamento. A entrada da PM e da Polícia Civil foi
um erro. Houve um espalhamento e se prejudicou o cadastro. Já fugiu do
controle, já não é mais o Redenção. Está sendo feito tudo de forma açodada.
De quem é a culpa?
Eu
credito muito da culpa disso ao governo do Estado. Seguramente. Eles não tinham
nada que ter entrado lá. Se o Estado ia entrar, o mínimo que tinham que oferecer
era a estrutura. Se eles iam entrar, tinham que ter chamado a prefeitura [e
discutido a assistência posterior à ação]. Mas isso tinha que ser uma coisa
orquestrada no detalhe, ou seja, não poderia nunca [enfática] ter sido agora.
Ou então tinham que ter segurado a onda sozinhos, com o Cratod, com o [programa
estadual] Recomeço.
No Redenção a polícia ia entrar em algum momento?
Não.
Em nenhum momento era um plano que incluía força policial repressora. Para o
tráfico, o secretário municipal de Segurança Urbana estava construindo um plano
de controlar as entradas, com revista e monitoramento. Tudo seria de forma
gradual, com integração das ações de saúde e de assistência. Mas acho que era
angustiante [para o governo] pensar que não é uma coisa instantânea.
Arrepende-se de algo?
Não.
Tudo que eu podia fazer eu fiz. Eu fui, me interpus. Quando soube da iniciativa
para tentar a internação compulsória, falei com o secretário de Justiça: não
faça isso, isso é trazer São Paulo para a Idade Média. Isso não tem justificativa,
não é necessário, dá para retomar. A internação compulsória seria mantida [no
Redenção] com o critério de risco iminente de morte. Em casos extremos. Só sou
a favor em casos de extremo risco, prestes a morrer.
Eu
estava reunindo um grupo acadêmico para pensar em formas de mitigar o erro a
partir daquele ponto. Propus reuniões com especialistas, ninguém [no governo]
aceitou, ninguém quis ouvir. Coloquei todas as ferramentas. Falei: foi
horrível, mas estou à disposição para minimizar o erro cometido. Não percebi
nenhuma disposição em permitir que a Secretaria de Direitos Humanos
participasse disso.
Quando
o juiz deu permissão para a internação compulsória e a abordagem às pessoas
[decisão depois revogada], vi que estava tomando um rumo com o
qual eu discordo diametralmente, e eu ficando lá ia ter colisão. Então não
fazia mais nenhum sentido eu permanecer.
Com a situação de hoje, o Redenção pode dar certo?
Acho
que vai ter que fazer uma força-tarefa muito grande. Esse problema não tem uma
solução pontual. Ele é minimizado através de algumas ações. Agora se tem mais
uma variável numa equação que já é extremamente complexa. Eu tentaria espalhar
[os dependentes] o menos possível daqui para a frente e ouvir os agentes,
porque eles são os que conhecem melhor os usuários. Acho que vai ser
complicado. E vai levar um tempo.
O prefeito acompanhava as ações da pasta? Como reagia?
A
gente não consegue reagir àquilo que a gente não entende, né? E eu acho que
existe uma falta de visão e de convicção a respeito daquilo que é o valor dos
direitos humanos. Não vou dizer que seja uma falha só desse governo. Mas existe
uma falta de compreensão, de conhecimento. Na verdade, a garantia de direitos
para o cidadão deveria ser a espinha dorsal de um governo.
Como seus eleitores receberam seu pedido para sair?
Muito
eleitor está pensando que "tem mesmo que haver repressão", "tem que
combater o tráfico", "traficante tem que apanhar". Desculpa, não
foi traficante que apanhou. Foi usuário. A cracolândia não é questão de
polícia, é questão de saúde, social, de péssima distribuição de renda. É de
tudo aquilo que a gente não quer falar.
Entrou-se
na cracolândia e se dispersou um trabalho de quase cinco meses planejando o
Redenção, que seria lindo se tivesse sido levado a cabo. A ação dispersou os
usuários e não houve o cadastramento previsto no programa, para se trabalhar
com as pessoas de forma individualizada, de acordo com a realidade, a doença, a
patologia.
Seria possível fazer esse cadastramento? Funcionaria?
No
médio e longo prazo. Quanto [tempo] for necessário. Problema de droga não vai
deixar de existir. Se alguém disser isso, é mentira. Se a gente quer diminuir a
cracolândia, tem que garantir direito na ponta, com escola decente, saúde de
qualidade, medicamento para doente crônico. Senão é sistematização da pobreza.
Criticam a Índia porque é uma sociedade discriminatória, que condena os dalits
a nascerem e morrerem na pobreza. E nós fazemos o que aqui nesta cidade? Quem
mora na periferia, nas comunidades pobres, vai crescer e morrer onde?
O
problema que explodiu na cracolândia no dia 21 é que a gente trata pobre
viciado de um jeito. Porque se for para tratar do mesmo jeito tem que ir na
Vila Madalena, em muitos lugares onde a droga também roda, e também fazer
internação compulsória. Só que os drogados cheirosos, os que estão sob
controle, eu lido com eles de um jeito. Os que não estão, eu lido de outro.
Quem é esse "eu"?
O
poder público como um todo, não só na nossa cidade. O que aconteceu é que de
uma forma míope estamos tentando tratar de um problema extremamente complexo,
trazer para uma questão policial, que não é. E aí tem outra coisa, que é a
especulação imobiliária. Aquele lugar interessa a muita gente. Por isso que
direitos humanos não têm a valorização que deveriam ter, porque interferem na
lógica do mercado e do capital.
Qual sua opinião sobre a descriminalização das drogas?
[Pausa]
É difícil falar. Mas vai precisar fazer uma discussão séria sobre isso também.
Que lições tira disso tudo?
Hoje
eu falo que tenho um carinho por ele [Doria], respeito por ele. Sei muito bem
que a gente diverge, e sempre coloquei isso para ele. Ele vem da iniciativa
privada, ele tem um pensamento político neoliberal e eu sou totalmente
contrária a isso. Mas eu divirjo dele com respeito. Ele tem muitas coisas
interessantes, brilhantes. De marketing, por exemplo, para divulgar as coisas
que ele faz.
Chegou
o momento de cada um seguir seu caminho. Eu quero que ele tenha sucesso. Não
quero o mal dele. E acredito que ele tenha boas intenções. Acho que falta para ele
a experiência real, de saber os tempos, os ritos, de se permitir aceitar que os
tempos não são os que ele imagina, lidar com essa frustração.
E
precisa acertar nas vozes que ele ouve. A voz que ele ouve não pode ser a da
rede social ou daquele que faz a rede social para ele. Mandei um vídeo para
ele, com muito respeito, do [filósofo] Mario Sergio Cortella dizendo que
"quem gosta de você discorda de você, e quem não gosta bajula você".
Acho que ele está bravo comigo, mas passa.
FONTE: Aqui
Leia "Doria se destruiu na cracolândia" de Chico D'Angelo clicando aqui
Leia "No pasaran" de Julio Lamas clicando aqui
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