O historiador como juiz
Leandro Karnal
11
Setembro 2016
A história me absolverá, falou Fidel Castro ao
final do seu julgamento pelo ataque ao quartel de Moncada, em Cuba. Trata-se de
um argumento tradicional, empregado em momentos de derrota. Também serve para
diminuir a culpa dos pais ao punirem seus filhos: “Um dia, quando você tiver
filhos, irá me entender”. Atribuímos ao tempo um valor pedagógico, uma
revelação gradual do justo e do correto.
A ideia do julgamento póstumo apareceu na fala do
advogado José Eduardo Cardozo ao defender a ex-presidente Dilma, assim como no
longo discurso dela no Senado. A história seria implacável com aqueles que
votassem a favor do impeachment. Cardozo foi mais longe. Entre lágrimas,
almejou que algum ministro da justiça teria de pedir desculpas à presidente que
caía. Era o apelo ao Supremo Tribunal do Tempo (STT) revestido de profecia.
Pessoas de fora da área da história costumam
repetir o que chamamos de “sentido ciceroniano” da memória. Cícero chamou à
História “mestra da vida”. Haveria uma reserva moral perceptível no desenrolar
dos fatos. O tempo garantiria a retirada das paixões. Só a tinta seca
permitiria avaliar o quadro. A serenidade conferida pela distância dos fatos e
a verificação cirúrgica das intenções, possibilitaria ao historiador assumir a
toga isenta de juiz do mundo pretérito. Tal como um magistrado sério, quem
escrevesse sobre o passado não se afogaria nos desequilíbrios partidários do
torvelinho atual. Fleuma, a virtude exaltada pelos ingleses; fleuma como
sinônimo de tranquilidade e equilíbrio, seria o traço dominante e desejável ao
prolatar sentenças.
Objetividade e discernimento são, de fato,
atributos de um bom texto histórico. Mas a história não é um tribunal, muito
menos um juiz a indicar certo e errado em meio a opiniões. O grande Marc Bloch
já insistia, numa obra escrita num campo de concentração nazista (um lugar bom
para se dizer o contrário), que a história não deveria julgar. História não tem
sentido moral. Pior: nada garante que o estudo do passado evite erros do
presente, até porque os fatos não se repetem, são sempre únicos.
Direi de forma direta: a ex-presidente Dilma pode,
em 50 anos, ter um avaliação oposta à atual (ainda que não exista uma
unanimidade hoje). Isto não será fruto de uma maior justiça ou equilíbrio, mas
do que estiver ocorrendo em 50 anos e quais fatos desejaremos esquecer, lembrar
ou até criar. A justiça é dada também pelo futuro e por suas necessidades. A
lógica do passado não é autônoma.
Quando calarem as personagens envolvidas, quando os
polos exaltados tiverem submergido no silêncio, quando Janaína, Dilma, os netos
de Dilma citados por ambas, Cardozo, Lula, Lewandowski, bem como você e eu,
caro leitor; estivermos todos reintegrados ao ciclo do solo, não emergirá a
justiça e a isenção, mas novas personagens com novas paixões e interesses.
São os fatos e posições do presente que dizem se
Che Guevara foi um herói (o “maior homem da história” para Sartre) ou um
canalha assassino (para outros). Cada tribunal da História terá sempre o juiz
do seu tempo, o júri e os advogados da sua historicidade específica. Nunca
existirá isenção. Sempre vicejará a subjetividade. Neutralidade é um desejo e
uma meta, jamais uma realidade integral.
Não se trata de relativismo extremado, mas de
reconhecer que o certo e o errado são determinados historicamente. A presença
do STF no imbróglio, por exemplo, foi dada como garantia para a legalidade do
processo. Isto é correto para muitos, mas não significa que o julgamento seja,
em si justo, apenas que atingiu seus objetivos através do STF. A legalidade não
é sinônimo de justiça. Todo tribunal é formado por homens e suas
subjetividades. Coisas exclusiva do Direito? Não! Havia médicos assistindo a
algumas sessões de tortura durante a ditadura. A presença de um médico não
significou a defesa da vida e da saúde, as funções que o juramento de
Hipócrates obriga a todo esculápio. Da mesma forma e para não parecer
corporativista, a presença do professor não garante a educação. Por vezes,
infelizmente, é um obstáculo ao aprendizado.
Nem tragédia e nem farsa, como pensou Marx: a
história é apenas uma sucessão caótica de acontecimentos destituída de lógica
ou moral. Somos náufragos no gigantesco oceano dos fatos, dando ao passado
direções póstumas a partir de morais presentes. Talvez a história absolva
Dilma. Talvez a condene com veemência maior. Talvez ela seja esquecida. Talvez
vire nome de praças que, depois, serão renomeadas em outro regime. Nem ela e
nem nós estaremos aqui para saber. Voltamos à primeira frase. A história
absolveu Fidel? O assalto ao quartel de Moncada falhou em 1953, mas o advogado
cubano acabou tomando o poder. Assumindo o controle do cabo do chicote que
antes o fustigara, ele executou adversários, mudou o judiciário e impôs novas
leis. Assim, a história revolucionária da ilha o promoveu a herói, pois foi
reinventado por novos donos da memória. Um bom domingo a todos vocês!
0 comentários:
Postar um comentário