Mia Couto busca reparar 'crime do rapto da história' em livro de trilogia
Mia Couto busca reparar 'crime do rapto da história' em
livro de trilogia
RODOLFO VIANA
DE SÃO PAULO
30/09/2016
O primeiro passo para uma guerra não
é montar um exército, mas, sim, "desumanizar os que vão ser
agredidos". Nesse momento de vida em suspensão, diz Mia Couto à Folha, "o amor é uma
resposta de sobrevivência, uma força desconhecida que faz com que não
desesperemos de atingir uma outra margem".
Aos 61 anos, o escritor moçambicano
foi testemunha da guerra da independência de seu país (1964-1975) –então uma
província de Portugal– e de uma guerra civil (1977-1992) entre nacionalistas
marxistas e guerrilheiros de direita. Conhece bem as particularidades da
afeição capaz de brotar em zonas de conflito.
"Assisti a barbaridades que não
quero nunca mais recordar. Mas no meio dessa crueldade erguida em sistema
também testemunhei manifestações de solidariedade e de afeito que dificilmente
poderiam ser reveladas em condições de normalidade social."
O amor em tempos de guerra poderia
ser o ponto central da trilogia "As Areias do Imperador", cujo
segundo livro, "Sombras da Água", acaba de chegar às livrarias.
A série tem como palco o sul de
Moçambique do fim do século 19, quando a região era governada por Ngungunyane,
o último grande líder do Estado de Gaza. Neste cenário, o sargento português
Germano de Melo encontra Imani, uma garota de 15 anos da tribo dos Vatxopi que
aprendeu a língua e os costumes dos europeus.
Este volume –que, como o anterior,
entrelaça a narrativa de Imani e cartas enviadas e recebidas por Gemano de
Melo– começa com o sargento ferido, sendo transportado ao único hospital de
Gaza. Está na companhia de sua amada –quem desferiu o tiro que lhe esfacelou as
mãos–, além do pai e do irmão da africana e uma amiga italiana.
Para Mia Couto, contudo, é mais que
um texto sobre paixão e guerra quaisquer: é sobre "um amor no meio de um
crime que é o rapto de uma história". Seu desejo é contar a história que a
História não conta. "Este livro fala de como uma narrativa de intervenção
colonizadora foi partilhada por europeus e africanos", diz.
Ele explica que, no século 19, o sul
de Moçambique foi ocupado de uma forma disputada por portugueses e pelo
exército dos Vangunis, que criaram um império que durou mais de meio século.
"Na verdade havia dois
colonizadores: um europeu e outro africano. A ideia é sugerir que a história de
Moçambique –como a de qualquer outra nação– foi simplificada por uma única
versão: a dos vencedores. Essa narrativa gloriosa anulou as outras versões do
passado que é preciso resgatar e dignificar."
Sem essas versões do passado, o
vínculo do descendentes dos atores do conflito se perde. "Naquela região,
esse deslocamento foi e continua a ser imposto -as pessoas são empurradas para
fora da sua religião, da sua língua, da sua cultura e da ligação sagrada que
possuem com a terra e os antepassados", diz. "As próprias elites
africanas reproduzem essa sistemática anulação do que é estranho a um modelo
globalizado de comportamento."
SOMBRAS DA ÁGUA
AUTOR Mia Couto
EDITORA Companhia das
Letras
QUANTO R$ 44,90 (392
págs.)
FONTE: Aqui
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