sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Mia Couto busca reparar 'crime do rapto da história' em livro de trilogia

Sombras Da Água

Mia Couto busca reparar 'crime do rapto da história' em livro de trilogia

RODOLFO VIANA

DE SÃO PAULO


30/09/2016  

O primeiro passo para uma guerra não é montar um exército, mas, sim, "desumanizar os que vão ser agredidos". Nesse momento de vida em suspensão, diz Mia Couto à Folha, "o amor é uma resposta de sobrevivência, uma força desconhecida que faz com que não desesperemos de atingir uma outra margem".
Aos 61 anos, o escritor moçambicano foi testemunha da guerra da independência de seu país (1964-1975) –então uma província de Portugal– e de uma guerra civil (1977-1992) entre nacionalistas marxistas e guerrilheiros de direita. Conhece bem as particularidades da afeição capaz de brotar em zonas de conflito.
"Assisti a barbaridades que não quero nunca mais recordar. Mas no meio dessa crueldade erguida em sistema também testemunhei manifestações de solidariedade e de afeito que dificilmente poderiam ser reveladas em condições de normalidade social."
O amor em tempos de guerra poderia ser o ponto central da trilogia "As Areias do Imperador", cujo segundo livro, "Sombras da Água", acaba de chegar às livrarias.
A série tem como palco o sul de Moçambique do fim do século 19, quando a região era governada por Ngungunyane, o último grande líder do Estado de Gaza. Neste cenário, o sargento português Germano de Melo encontra Imani, uma garota de 15 anos da tribo dos Vatxopi que aprendeu a língua e os costumes dos europeus.
Este volume –que, como o anterior, entrelaça a narrativa de Imani e cartas enviadas e recebidas por Gemano de Melo– começa com o sargento ferido, sendo transportado ao único hospital de Gaza. Está na companhia de sua amada –quem desferiu o tiro que lhe esfacelou as mãos–, além do pai e do irmão da africana e uma amiga italiana.
Para Mia Couto, contudo, é mais que um texto sobre paixão e guerra quaisquer: é sobre "um amor no meio de um crime que é o rapto de uma história". Seu desejo é contar a história que a História não conta. "Este livro fala de como uma narrativa de intervenção colonizadora foi partilhada por europeus e africanos", diz.
Ele explica que, no século 19, o sul de Moçambique foi ocupado de uma forma disputada por portugueses e pelo exército dos Vangunis, que criaram um império que durou mais de meio século.
"Na verdade havia dois colonizadores: um europeu e outro africano. A ideia é sugerir que a história de Moçambique –como a de qualquer outra nação– foi simplificada por uma única versão: a dos vencedores. Essa narrativa gloriosa anulou as outras versões do passado que é preciso resgatar e dignificar."
Sem essas versões do passado, o vínculo do descendentes dos atores do conflito se perde. "Naquela região, esse deslocamento foi e continua a ser imposto -as pessoas são empurradas para fora da sua religião, da sua língua, da sua cultura e da ligação sagrada que possuem com a terra e os antepassados", diz. "As próprias elites africanas reproduzem essa sistemática anulação do que é estranho a um modelo globalizado de comportamento."

SOMBRAS DA ÁGUA
AUTOR Mia Couto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 44,90 (392 págs.)


FONTE: Aqui

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