sábado, 26 de março de 2016

Rui Knopfli fala das raízes



Rui Knopfli fala das raízes

Nasci moçambicano, em Inhambane, e morri em Lisboa – mas não lisboeta. Fui a vida inteira português, pois nunca tive outro passaporte, e no entanto pouco me interessei por Portugal. Raízes? O que são raízes para um escritor? As raízes de um escritor afundam-se em terrenos que ele, eventualmente, nunca pisou. Versos lidos há muito tempo, de um velho poeta javanês (é só um exemplo), podem ressurgir décadas depois, delidos, ténues, e alimentar outros poemas. Um dos meus detractores sistemáticos há-de acusar-me, lendo-os, de não ter sido eu suficientemente afri­cano, ou de não ter sido suficientemente português – e estará certo. Nunca fui suficientemente nem uma coisa nem outra, ou outra ainda, porque aos poetas, aos romancistas, calha bem ser todos os homens e de todas as nações, às ­vezes simultaneamente. Um escritor exercita-se a vida inteira para conseguir tornar-se fluente em múltiplas nacionalidades, personalidades, etc. Uns poucos conseguem-no.
Sei, não obstante, que me senti sempre mais africano do que europeu e deixei disso testemunho num poema, um tanto ingénuo, mas de maior circulação do que os restantes, talvez por haver muitos leitores que nele se reconhecem. Também para isso servem os poetas – para aju­darem os outros a expressarem-se: «Europeu, me dizem. / Eivam-me de literatura e doutrina / europeias / e europeu me chamam. // Não sei se o que escrevo tem a raiz de algum // pensamento europeu. / É provável... Não, é certo, / mas africano sou. / Pulsa-me o coração ao ritmo dolente / / desta luz e deste quebranto. / Trago no sangue uma amplidão / de coordenadas geográficas e mar Índico. / Rosas não me dizem nada, / caso-me mais à agrura das micaias / ao silêncio longo e roxo das tardes / com gritos de aves estranhas. // Chamais-me europeu? Pronto, calo-me. / Mas dentro de mim há savanas de aridez / e planuras sem fim / com rios langues e sinuosos, / uma fita de fumo ver­tical, / um negro e uma viola esta­lando.»
Os sul-africanos zangaram-se com J.M. Coetzee por este ter abandonado o país, radicando-se na Austrália. Pior: Coetzee deixou a África do Sul após o fim do apartheid e a transição para um regime democrático e não racial, requerendo e obtendo a nacionalidade australiana. Tivesse feito o mesmo, mas cinco anos antes de Mandela irromper, como um deus magnânimo, de Robben Island, e ninguém teria reparado. Assim foi um escândalo, quase uma declaração de guerra contra o país do arco-íris. Também Mario Vargas Llosa – que os peruanos não quiseram como Presidente, preferindo ­votar em Fujimori – abandonou o país, após a vitória do adversário, requerendo a nacionalidade espanhola. Todavia, Coetzee, cidadão australiano, continuou a escrever como Coetzee, escritor sul-africano, embora acrescentando à galeria dos seus austeros personagens uma escritora australiana, Elizabeth Costello, que se assemelha ao próprio Coetzee na fúria (elegante) com que defende o vegetarianismo, e em mais umas poucas opiniões menos convencionais. Mario Vargas Llosa, cidadão espanhol, não deixou nunca de ser Mario Vargas Llosa, escritor peruano (aliás, quase tudo é Peru em Vargas Llosa).
São raros os escritores que ao mudar de passaporte transitaram também para uma nova nacionalidade literária. Talvez Nabokov, ou nem ele, pois o autor de Lolita recebeu desde o berço uma educação cosmopolita, e além disso qualquer um consegue ser americano (já o somos todos). Ser um escritor australiano também não me parece difícil. Canadiano parece-me ser ainda mais fácil. Neste último caso exige-se apenas uma absoluta indiferença, ou desprezo, como quiserem, em relação a raízes, países, narizes, e todas as armadilhas semelhantes; basta ser de toda a parte, e de nenhuma, como muito bem tem vindo a fazer Michael Ondaatje.
Pagaria, isso sim, e pagaria bem, para ver Nabokov, ou Coetzee, ou Ondaajte a transformarem-se em escritores japoneses.

Crónica publicada na edição nº 80 (01.05.09) da LER.

2 comentários:

Márcia Siqueira 27 de março de 2016 às 07:23  

Excelente! Já havia pensado nisso em como se sentiriam as pessoas que deixam seus países "raízes"? Uma percepção bem interessante.

Maria 27 de março de 2016 às 18:03  



UM TEXTO PERTUBADOR .

TAL COMO O AUTOR DESTE TEXTO NASCI EM INHAMBANE -NASCI ÁFRICA ,VIVI ÁFRICA,PARI AFRICA ,SEREI SEMPRE AFRICA .
MUDEI DE PASSAPORTE ,NÃO SOU ESCRITORA ,SOU AFROLUSAMAHAMBANA.
ESCORRRAÇARAM ME POR SER BRANCA DE SEGUNA CLASSE ,MAS NINGUÉM ME TIRA
A AFRICA QUE SOU ATÉ MORRER.

MARIA DE SÁ PIRES

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