Ateísmo existe desde a Antiguidade, diz historiador britânico
Ateísmo existe desde a Antiguidade, diz historiador
britânico
REINALDO JOSÉ LOPES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
05/03/2016
Intelectuais com status de
celebridade e língua afiada, que dominam a ciência de ponta e não perdem a
oportunidade de ridicularizar a crença em Deus com tiradas que viram memes. A
descrição bate com a de figuras do século 21, como o físico Stephen Hawking ou
o biólogo Richard Dawkins, mas também vale para pensadores que já estavam na
ativa uns 2.500 anos antes de Cristo.
Pelo visto, quando o assunto é o
ateísmo militante, quanto mais as coisas mudam, mais elas continuam as mesmas.
Essa talvez seja a principal mensagem de "Battling the Gods: Atheism in
the Ancient World" (Lutando contra os Deuses: Ateísmo no Mundo Antigo),
novo livro do historiador britânico Tim Whitmarsh.
Professor de cultura grega da
Universidade de Cambridge, Whitmarsh resolveu recuperar a longa tradição de
ceticismo em relação à religião do antigo Mediterrâneo, que parece ter surgido
com os primeiros filósofos da Grécia, a partir de 600 a.C., e só desapareceu
quase mil anos mais tarde, quando o cristianismo virou a religião oficial do Império
Romano, em 380 d.C.
Para o especialista de Cambridge, a
análise da obra desses pensadores demonstra que a descrença não é um fenômeno
recente na história ocidental. Em vez de ter surgido apenas com o Iluminismo,
há "meros" 200 anos, o ateísmo seria uma opção possível em qualquer
ambiente onde houvesse alguma liberdade de pensamento.
BAGUNÇA ORGANIZADA
O historiador argumenta que a Grécia
antiga era um ambiente desse tipo justamente por causa de sua natureza algo
caótica e descentralizada.
Em vez de ser uma nação unificada,
como a Grécia de hoje, o território helênico estava dividido em centenas de
cidades-Estado modestas. Sem governo central, cada cidade era livre para ter
suas próprias formas de culto aos deuses, com inúmeras divindades e sacerdotes
sem grande poder político. Em resumo, seria impensável o surgimento de uma
"Inquisição" helênica.
Os gregos também não tinham um
equivalente da Bíblia hebraica. A analogia mais próxima eram os textos épicos
do poeta Homero, que eram admirados como literatura e manual de conduta
aristocrática, mas retratavam deuses muito parecidos com mortais: briguentos,
ciumentos e com poderes limitados, apesar de imortais.
Conforme várias das cidades gregas
foram crescendo economicamente e ficando culturalmente sofisticadas, por meio
do comércio com o Egito e o Oriente Médio, surgiram pensadores que estão entre
os primeiros do mundo a tentar explicar os fenômenos da natureza e a origem do
Universo de maneira racional, sem recorrer à ação divina.
Apesar de não serem muito afeitos a
fazer experimentos para testar suas hipóteses, tais filósofos podem ser
considerados precursores da ciência moderna - um de seus "chutes"
mais bem dados é a ideia de que a matéria do Cosmos é composta de átomos.
Alguns desses sujeitos (veja uma
galeria deles no infográfico) até falavam de forma vaga numa Inteligência
cósmica ou Deus único que teria ordenado o Universo de maneira racional, mas
Whitmarsh argumenta que, em muitos casos, essas vagas referências a divindades
parecem metáforas que, na verdade, descrevem um princípio cósmico impessoal. De
qualquer modo, eles não poupavam críticas à crença nos deuses gregos, como
Zeus, Atena e Afrodite, considerando que as histórias sobre seus casos de amor
e brigas eram ridículas.
Ideias ousadas contra a religião
tradicional teriam ganhado fôlego ainda maior com o surgimento da democracia em
Atenas, por volta de 500 a.C. A liberdade política e de expressão na cidade
mais famosa da Grécia - todo cidadão podia participar diretamente da votação de
leis e do julgamento de crimes, por exemplo - criou uma cultura essencialmente
laica, e o ateísmo passou a ser tema até de comédias, como as de Aristófanes.
Em sua obra "Os
Cavaleiros" (encenada em 424 a.C.), dois escravos conversam justamente
sobre a falta de fé. "Tu acreditas mesmo em deuses?", diz um deles.
"Claro", responde o outro, "a prova de que eles existem é que
fui amaldiçoado por eles".
Nas décadas que se seguiram, os
questionamentos contra a religião se tornaram elementos importantes no
surgimento de duas correntes filosóficas que acabaram virando meros adjetivos
na nossa linguagem de hoje, os céticos (que duvidavam da possibilidade de
comprovar qualquer afirmação, inclusive as feitas sobre supostos deuses) e os
cínicos (a palavra vem do termo grego para "cão", porque eles
defendiam uma vida totalmente "natural", sem as restrições impostas
pelos hábitos sociais - como a vida de um cachorro, portanto).
Embora vários dos ateus da
Antiguidade tenham sido criticados e até processados, Whitmarsh diz que
raramente eles sofriam consequências sérias porque a religião dos gregos e
romanos valorizava principalmente os rituais (sacrifícios de animais aos
deuses, por exemplo) e não se preocupava tanto com o que as crenças das
pessoas. Como a maioria dos ateus não defendia que se interrompessem os
sacrifícios, por exemplo, eram deixados em relativa paz.
A coisa teria mudado de figura com a
ascensão do cristianismo, diz o pesquisador - a ideia de que uma única crença
era a verdade absoluta pode ter aberto caminho para a perseguição aos
descrentes.
"BATTLING THE GODS"
AUTOR Tim Whitmarsh
EDITORA Faber & Faber
QUANTO 304 págs., R$ 50,93
AVALIAÇÃO bom
FONTE: Aqui
0 comentários:
Postar um comentário