Preocupa o teu próximo como a ti mesmo Notas críticas a modernidade e holocausto, de Zygmunt Bauman
De:
Gérard Rabinovitch
Filósofo e sociólogo; trabalha no Centre National de Recherche Scientifique; é membro do Espace Analytique de Paris
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982003000200008
Gérard Rabinovitch apresenta neste artigo uma leitura crítica do livro Modernidade e Holocausto de Zygmunt Bauman. Através desta leitura, Rabinovitch aborda a tese central do livro — que considera o Holocausto o efeito não de uma barbárie pré-moderna, mas da própria modernidade —, mostrando, por um lado, os aspectos que ficam excluídos da análise de Bauman, tal como o aspecto criminal do nazismo, e destacando, por outro, a presença, essencial, de um valor de pessimismo, que marca a originalidade deste texto.
Palavras-chave: Bauman, sociologia, nazismo, modernidade. continua...
Não há História, o humano não cresce no homem.1
Vassili Grossman
A terra plenamente iluminada irradia um desastre triunfante.
Max Horkheimer e Theodor Adorno
Um espectro assombra a modernidade. Ele produziu nela, por suas horríveis conseqüências e seus danos duráveis na Cultura, sob a forma de variadas disseminações, sideração. Nem Tocqueville, nem Quinet, nem nenhum dos analisadores mundiais da democracia moderna nascente, nem mesmo o mais clínico dentre eles, Ostrogorski,3 haviam, do fundo de seu ceticismo ou no extremo de seu desencantamento — em seus prognósticos, avisos e advertências —, antecipado a hipótese de tal cilada armada pelo homem para o Homem.
Esse Gespenst, ainda essencialmente não decifrado, apesar da abundante literatura histórica produzida agora sobre tal acontecimento, apesar do formigamento das tentativas interpretativas para apreendê-lo, tem um nome: nazismo. E um objeto cultural: as câmaras de gás.
O efeito de estupefação e de medo que produziu a descoberta da magnitude dos crimes nazistas — "É a primeira vez que o homem dá lições ao inferno", disse André Malraux — desencadeou no imediato a posteriori uma espécie de desatenção voluntária ao alerta geral dos relatos dos deportados sobreviventes.4 Carregadores extenuados de uma "experiência" sem precedentes.
Mas, ao mesmo tempo, ele fez com que esta experiência entrasse diretamente no espaço público como referência insuperável da abjeção na retórica insana dos slogans e nas desmesuras da invectiva política. Ele saturou com tais barulhos, acariciando a propensão do espaço público a se satisfazer, com simplificações abusivas, o silêncio do "tempo sem frase", segundo a expressão de Patrice Loraux,5 necessário ao trabalho metabólico do pensamento e da Cultura.
Dele, a asserção de Hannah Arendt, em Sistema totalitário, segundo a qual "o nazismo como ideologia havia sido 'realizado' de modo tão completo que o seu conteúdo havia cessado de existir como um conjunto de doutrinas autônomas", parece pecar desta vez por otimismo. Seria preferível, à guisa de advertência, reter — como indicador de caminho — o comentário de Pierre Legendre: "o nazismo constituiu para o Ocidente um prazo histórico e um episódio de desestruturação dos quais as sociedades contemporâneas permanecem tributárias".6 Ele reencontra aqui esta observação feita por Karl Jaspers, ao sair da guerra após a derrota militar e o desmoronamento do regime nazista: "Foi na Alemanha que se produziu a explosão de tudo o que estava se desenvolvendo no mundo ocidental sob a forma de uma crise do espírito, da fé."
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Desde então, as proposições de interpretação do nazismo, intuitivas ou precipitadas, ideológicas ou analíticas, se multiplicaram.7 Elas precederam, acompanharam, ou seguiram, os trabalhos dos historiadores que fizeram do nazismo seu campo de trabalho. Muitas delas não escaparam à captura de um face-a-face político, imobilizado entre teorias de obediência marxista e interpretações marxistas. Ecos segregativos da "ideologia dos blocos", avatares do "pensamento em etiquetas", segundo a expressão de Max Horkheimer e Theodor Adorno. Às suas radicalidades débeis e caricaturais, encontramos de um lado o relatório de Dimitrov no VII Congresso do Komitern (1935), que dilui o nazismo no fascismo e faz deste último "a ditadura terrorista declarada dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro". E, do outro, o "nó causal" de Ernst Nolte, que constrói o nazismo como uma espécie de dano colateral do bolchevismo, do qual ele seria o simples reagente. E nesse elã, faz da exterminação dos judeus apenas um erro de perspectiva de Hitler. Réplica aqui, reacionária, tardia e não menos vulgar às prescrições das "formulações estereotipadas" kominternianas. Note-se, de passagem, que Ernst Nolte8 se desvela num lapso pouco notado por seus comentadores e comensais, ao datar do dia 8 de maio de 1945, e não de janeiro de 1933, a "catástrofe nacional" da Alemanha...
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Mas o que deve reter principalmente a atenção é o que há em comum em todas as tentativas de interpretação do nazismo. Por mais contrastantes, divergentes e pouco sintetizáveis que pareçam. Elas compartilham em essência o fato de serem mortificadas, quanto ao seu fundo, pela dilaceração do sonho acordado do Progresso; do qual o horror nazista dos campos de exterminação constitui o "acidente revelador".9 E se cada uma delas tem, por objetivo explícito, fornecer uma explicação que se sustente, elas têm, como desígnio implícito, reduzir, à maneira do idealismo pregnante do Iluminismo, o estrondo da aporia bárbara na modernidade.
Pois é aqui que se encontra o objeto da sideração. Intensificada à proporção dos crimes cometidos. A Barbárie se assinala doravante como uma possibilidade da modernidade. Na décima primeira badalada do Ocidente, se estendeu uma noite sem fim.
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Durante muito tempo o mundo do progresso dormiu cedo. Todo o século XIX viu construir-se um conjunto de aparelhagens de conceitos políticos, de utopias higiênicas, de metodologias científicas, de aberturas de campos de conhecimentos, se justificando de modo sui generis por contribuir para a "felicidade" da Humanidade. Eles fizeram do Saber e da Técnica os vetores do progresso social e os aliados da emancipação cidadã e democrática. A efetividade do nazismo veio desmentir, percutindo-a, esta ilusão. Nada do apetite predador e das pulsões destruidoras que trabalham a humanidade havia sido debelado. Ao contrário, convém constatar com Max Horkheimer que "se os homens não se tornaram melhores com o desenvolvimento das faculdades trazidas pelo Saber, significa então que eles se tornam piores".
Em 1938, ao modo de indicação testamental, Sigmund Freud já apontava, em Moisés e o monoteísmo, esta decepção: "vivemos um tempo particularmente curioso. Descobrimos com surpresa que o progresso concluiu um pacto com a Barbárie."
Levar em conta o incontornável acontecimento do nazismo não deixa outras alternativas senão um dilema: fazer ou não o luto das canduras etiológicas, ossaturas de vento, sobre as quais se construiu a modernidade ocidental.
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"Tomei consciência do fato de que o holocausto era não apenas um acontecimento sinistro e terrível, mas também difícil de apreender em termos habituais, 'ordinários'. Este acontecimento havia sido redigido num código próprio e era preciso em primeiro lugar quebrar esse código antes de torná-lo compreensível" (p.10), testemunha Zygmunt Bauman, no prefácio de Modernidade e Holocausto. O ensaio não tem por objetivo elucidar a obscuridade nazista, mas buscar resolver o que foi a sua característica criminal emblemática: a "industrialização" do assassinato em massa. Diferenciando-se das diversas contorções sedativas que visam apenas recobrir a abertura do sentido e o desmoronamento das tranqüilidades que se haviam produzido aqui, no Ocidente, Bauman não se esquiva da questão da intercessão da modernidade com a efetividade do "holocausto".10
Para isso, ele não passa por uma das interpretações patrimoniais das ciências sociais mas programa "quebrar o seu código". É que Bauman, sociólogo, deve constatar, em seu incisivo capítulo de abertura sobre "a sociologia depois do holocausto", que este último teria "mais a dizer sobre o estado da sociologia, que a sociologia, em seu estado atual, seria capaz de enriquecer o nosso conhecimento do holocausto" (p.24).11 Esse deslocamento é uma ruptura cognitiva assumida, que não escamoteia e registra a fratura que tal acontecimento inscreveu no entendimento comum estupefato pela magnitude de Auschwitz. Este reviramento de perspectiva impôs-se a ele como um imperativo obrigatório. Teria se afirmado como a condição indispensável, como o detonador fundador para empreender a decifração que ele nos propõe.
Observemos, de passagem, que se trata aqui de um imperativo geral. Pois o que vale para as ciências sociais vale também para as diversas tentativas de interpretações teológicas da exterminação. Elas não discernem melhor, mesmo com toda a sua recuperação de um sentido anterior, que não há mais lugar para uma interpretação metafísica do holocausto. Pois é este que doravante interpreta em negativo o estado da civilização no Ocidente,12 e as promessas escatológicas que alimentavam o seu Ideal.
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"O holocausto foi o encontro único entre as velhas tensões que a modernidade sempre ignorou, desdenhou ou fracassou em resolver, e os poderosos instrumentos da ação racional e eficaz aos quais a evolução moderna deu origem" (p.20), tal é a tese exposta e sustentada por Zygmunt Bauman.
No capítulo das "velhas tensões", em seu nó, o autor coloca o anti-semitismo. E no da "ação racional": o esquema cultural, enquistado em conseqüências mentais, do "espírito da racionalidade instrumental".
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Sobre o anti-semitismo Bauman não nos ensina nada de novo. Fora a formulação do conceito de "categoria prismática", mais adequada segundo ele para ilustrar a situação dos judeus como grupo, em substituição ao conceito marxista de "classe móvel".13 "Para os vivos, o judeu é um morto; para os autóctones um estrangeiro; para os pobres um milionário; para os patriotas um apátrida", retoma Bauman de Jäckel.14 Lista dotada de um mecanismo aberto, e que não parou de crescer. Descoberta sociopolítica interessante, mas tardia e limitada. À sua leitura, excesso de corte sociológico, falta o que a teoria literária (Steiner), a filosofia (de Heschel a Lévinas) e a psicanálise (de Freud a Lacan) puderam aprofundar e instruir sobre esse tema. Ao menos, ele não passa ao largo das polimorfias do anti-semitismo ao mesmo tempo inumeráveis e invariáveis. E também leva em conta esta longa Psyché antijudaica, bem sintetizada por ele, que se perpetua através dos ressentimentos das projeções sociais, os kits de estereótipos e as perpetuações de fantasias acusadoras, que permanecem encravadas e fossilizadas tal como um "quarto secreto" nos esquemas culturais do Ocidente.
Mas não é tanto, para Bauman, a fim de revelar no anti-semitismo, e de interrogar nele, o fogo de um ódio iterativo que encontra no Judeu o vulnerável objeto da sua crueldade,15 quanto para decifrar nele as "fobias antimodernistas" que "iam poder se descarregar por vias e sob formas que apenas a modernidade era capaz de engendrar" (p.88). Não é tanto para interrogar as condições teleológicas do desejo do Ocidente e o lugar de "mau objeto" concedido à parte de origem hebraica no seu dispositivo,16 quanto para estabelecer o racismo como modalidade da mentalidade moderna. "Confundir a heterofobia e o crime organizado do tipo holocausto, escreve Bauman, é ao mesmo tempo fonte de horror e potencialmente perigoso pois isto acaba por desviar a atenção das verdadeiras causas do desastre, as quais são fundadas em certos aspectos da mentalidade moderna e na organização moderna" (p.142). Pois o tema de Bauman é a modernidade da qual o holocausto é o "teste": "A civilização moderna não foi a condição suficiente do holocausto, mas ela foi sua condição necessária. Sem ela o holocausto seria inimaginável" (p.40).
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Portanto, o que Bauman se propõe a estabelecer é a ideografia moderna que contribuiu com a realização criminosa do holocausto: "O composto mortífero era feito de uma mistura de ambição tipicamente moderna visando redesenhar e reconstruir a sociedade, e de uma concentração tipicamente moderna de poder, de recursos e de competências administrativas" (p.135).
Em seu primeiro círculo, ele designa o arcabouço do "crime de bureau". A rede administrativa da gestão do holocausto pelos dispositivos burocráticos. "Tratava-se apenas de planificar cuidadosamente, de conceber uma tecnologia e um equipamento técnico apropriado, de estabelecer um orçamento, de calcular e de mobilizar os recursos necessários, em suma uma mera e banal rotina burocrática." No conforto do "crime de bureau", ele posiciona a "mediação da ação". Um dos traços mais salientes e mais originais da sociedade moderna segundo John Lachs. É que a intermediação tem por efeito esconder do olhar do ator as conseqüências da ação. E se este não está em contato com os seus atos, "mesmo o melhor dos homens se move em um vazio moral" (p.58). Esta colocação à distância, este modo de "matar o mandarim" permitia com vantagem, na empresa exterminadora, "superar" o que Hannah Arendt concebia como o problema mais árduo de seus instigadores: "a pena animal que sentem os indivíduos normais diante do espetáculo do sofrimento físico".17 Ela reduz já de modo considerável o número de seus atores de "proximidade". Quanto à mediação da ação, ela é um efeito da divisão hierárquica e funcional do trabalho. A decomposição em tarefas funcionais com finalidades múltiplas permitindo a execução de operações por agentes indiferentes,18 não tendo nenhum conhecimento da natureza real da tarefa em questão. Qualquer possibilidade de avaliação moral se encontrando assim em curto-circuito nessa separação funcional das operações, o resultado desta, sublinha Bauman, é uma substituição da responsabilidade moral pela responsabilidade técnica. "O que importa é saber se a tarefa foi executada segundo o melhor método tecnológico disponível, e se ela é rentável (p.167) quanto aos seus objetivos.
Em seu segundo círculo, Bauman identifica uma predominância tendencial da "engenharia social". Usando uma imagem incerta: o "Estado jardineiro moderno", "que considera a sociedade que ele governa como um objeto a se cultivar e a livrar de suas ervas daninhas" (p.39). O racismo e o "higienismo político" constituem os principais operadores instrumentais e instauradores desta "engenharia social".
Eles encontram seu fundamento nas reorganizações ideais da modernidade e na substituição dos precedentes recursos de reflexões normativas que constituíam a religião e a ética pelo discurso da ciência. "Pelo fato de a religião e a ética serem impotentes para legitimar racionalmente suas exigências em relação à conduta humana, elas se encontraram irremediavelmente condenadas à sua autoridade ultrajada. Como os valores e as normas haviam sido proclamados definitiva e irremediavelmente subjetivos, a instrumentalização permanecia o único setor no qual a busca da excelência era possível. A ciência pretendia-se desprovida de valores e se orgulhava de sê-lo. E serviu-se das pressões institucionais e da ironia para fazer com que aqueles que pregavam a moralidade se calassem" (p.182). Aliás, Bauman não deixa de sublinhar como o racismo e o "higienismo político" se autorizavam a partir do aumento das forças referenciais das "ciências da natureza e da vida", biologia e medicina, ao longo do século XIX. Seja com função de metáforas organicistas,19 seja como serviço de reservatórios lexicais.20
É assim, por um lado, que o racismo se constrói, segundo Bauman, como substituto "racional" das segregações jurídicas pré-modernas, com base nos modelos dos atributos hereditários. "Na época pré-moderna, os Judeus eram uma casta entre outras, uma categoria entre outras, um estado entre outros. A sua especificidade não era uma questão espinhosa e as práticas segregacionistas habituais e quase espontâneas impediam que ela assim se tornasse. Com a chegada da modernidade, a sua separação passou a ser efetivamente uma questão espinhosa. Como todos os outros componentes da sociedade, este devia doravante ser fabricado, elaborado, argumentado de modo racional, concebido, administrado e controlado segundo um modo tecnológico" (p.105).
Mas o racismo vem acrescentar uma virada suplementar às estratégias de distanciamento das segregações anteriores. O seu "biologismo" organiza o acento de irreversibilidade e de incurabilidade da alteridade do "outro". O racismo se distingue por uma prática da qual ele faz parte e que ele racionaliza: uma prática que combina as estratégias de arquitetura e de jardinagem com as da medicina para servir à elaboração de uma ordem social artificial, e isto eliminando os elementos da realidade presente que não coincidem com a realidade perfeita imaginária e não podem ser modificados para alcançá-la" (p.117).
É assim, por outro lado, que o "higienismo político", como não deixa de sublinhar Bauman, se abastece das semânticas de Pasteur. "A linguagem e a retórica de Hitler transbordavam de imagens de doença, de infecção, de contágio, de putrefação e de pestilência. Ele comparava o cristianismo e o bolchevismo à sífilis ou à peste, ele falava dos judeus como se estes fossem bacilos, germes de decomposição ou vermes" (p.125). "Os executantes da vontade de Hitler falavam da execução dos judeus como "cura" da Europa, "autolimpeza" e "limpeza da mancha judaica" (p.126). Com pertinência, Bauman sublinha o laço, raramente levado em conta, entre os projetos eugenistas e eutanásicos do poder nazista, "programa T4" de "eliminação" dos deficientes mentais, entrevados, etc., tentativas montadas de eugenismo "positivo" do Lebensborn, e a política de extermínio. Unidos sob uma mesma rede semântica mortífera, reunidos pela transferência, para o extermínio, procedimentos (morte pelo gás) e competências (médicos SS) adquiridos na ocasião do "programa T4".
É portanto na confluência afim da "engenharia social", como princípio político subjacente da modernidade, e na instituição da malha rotineira da burocracia, como prática gestionária moderna do societal, que Bauman estabelece a possibilidade realizada do holocausto. Mas é ainda porque ambas são filhas do "espírito da racionalidade instrumental". "As regras da racionalidade instrumental são singularmente incapazes de impedir tais fenômenos" (p.46). "Não há nada nas regras da racionalidade instrumental que desqualifique os métodos de engenharia social do tipo holocausto como sendo impróprias e irracionais" (p.47). A razão instrumental comporta de modo sui generis os mecanismos de liquidação das empatias e a desresponsabilização moral de cada sujeito. "Na verdade, a história da organização do holocausto poderia tornar-se um manual de gestão científica" (p.244). É assim que Bauman pode afirmar que "o holocausto não foi o transbordamento irracional dos resíduos persistentes de uma barbárie pré-moderna. Ele era o residente legítimo da casa modernidade e não estaria realmente 'em casa' em nenhum outro lugar" (p.46).21 "Disso não decorre que a modernidade constitui um holocausto. O holocausto é um subproduto da tendência moderna para um mundo totalmente planificado e totalmente controlado, quando esta tendência escapa a qualquer controle e torna-se louca" (p.159).
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Muitos outros traços do nazismo, não ligados à realização da política de extermínio, que Bauman não evoca, poderiam ainda ser articulados à transversal de sua tese e vir apoiá-la. Tudo o que o historiador norte-americano Jeffrey Herf chamou, por sua vez, de "modernismo reacionário".22 E que constitui o tema do livro de Peter Reichel La fascination du nazisme.23 A organização dos lazeres operários pela "comunidade nacional socialista 'A Força pela alegria'". A domesticação das massas pela indústria mediática dos prazeres narcotizantes (rádio, cinema, etc.) orquestrada por Goebbels. As reformas sanitárias da luta nazista contra o câncer.24 Até o próprio anti-semitismo, coração teológico-político do nazismo, mas também instrumento de desestruturação dos valores normativos do Ocidente cristianizado. "Os povos que entregam seus judeus abandonam com eles seu modo de viver determinado pelo falso ideal, penetrado pela influência judaica, de liberdade que tinham antes", declarava o doutor Bost, chefe SS, no dia 27 de julho de 1942. E instrumentalizado como meio que assegurava as complacências e as cumplicidades além das fronteiras do Reich, utensílio do seu empreendimento. É o que observava Hannah Arendt quando notava que o anti-semitismo nazista jamais havia sido uma questão de nacionalismo extremo, mas sim que havia funcionado desde o início como uma Internacional.
Contudo, ao fazer da "revolução nazista" "apenas um exercício de engenharia social numa escala grandiosa, cuja "cepa" racial "era a rede fundamental da cadeia das manipulações" (p.119), ele reconduz a confusão político-histórica do pós-guerra entre a figura do Leviatã e a do Beemot. Entre a figura do "Estado total coercitivo" e a do "Caos integral", da desordem moral da ausência de Lei. Uma distinção de herança hobbesiana. Confusão da qual o pensamento contemporâneo do político permanece tributário e estorvado. E que ele prolonga ao continuar construindo o poder nazista como Leviatã.
É que ele negligencia, para a comodidade do estabelecimento da sua tese meritoriamente incômoda, numerosos aspectos do nazismo em atos. Começando pela técnica nazista do poder e seus hábitos políticos. A intimidação, a corrupção, a chantagem, o logro, a extorsão, o comprometimento, a falsificação, o assassinato são modelos combinados destes. Assim, ele negligencia, por exemplo, a corrupção abertamente encorajada, ligada à "arianização" dos bens dos judeus e às espoliações. Ela fazia dos beneficiários comprometidos (desde o chefe de empresa ou o financeiro até a soldadesca e o conjunto dos corpos intermediários, funcionários, cobradores de impostos, que recebiam parte da receita redistribuída) um aglomerado de cúmplices. "A corrupção sem limites dos funcionários do regime, particularmente em relação com a expropriação dos judeus, observa Hans Mommsen, "contribuiu para diminuir a crítica à deportação e ao extermínio".25 Assim, ele omite também que "o Estado nacional-socialista era na realidade pluralista, num sentido funesto do termo. A vontade política formava-se nele através da concorrência selvagem dos lobbies sociais mais poderosos" (Theodor Adorno). O que Franz Neumann havia analisado minuciosa e magistralmente no seu Behemont, structure et pratique du national-socialisme.26 Assim, ele parece ignorar também como a autodestrutiva "perseguição infinita do poder político" conduziu à destruição da economia alemã notavelmente estudada por T.W. Mason.27 Esses aspectos por si sós indicam a necessidade de atenuar o integralismo da construção de Bauman. Há no nazismo uma destrutividade fundamental em ação, que deve ser escutada, e que, sem desqualificar o que ele traz, pede, no mínimo, para ser articulada a ele.
O projeto de Bauman, de "quebrar o código" do holocausto, é um abalo frutífero. Há outros não menos indispensáveis. Desfazer o equívoco entre Leviatã e Beemot.28 Equívoco engodado na noção excessivamente genérica agora de "totalitarismo". Libertar a noção de barbárie da sua conotação, até Bauman, de pré-moderna, de arcaica. Para reconfigurá-la: "não involutiva", "trans-histórica".29
Mas sobretudo esses aspectos, não menos fundamentais do nazismo, sugerem, com mais gravidade, que uma abordagem inversa à de Bauman não é menos pertinente. Que talvez não seja pelo holocausto que deciframos o nazismo. Que seria antes pela decifração da marca criminal do nazismo que acederíamos ao holocausto.
Para desenhar o panorama ideográfico do holocausto, Bauman deixa escapar o seu ator crucial: o nazismo como constelação de paixões criminais. A primeira conseqüência dessa falha consiste em erigir Eichman na figura emblemática do espírito nazista.30
Abrir a "caixa preta" do nazismo passa pela consideração da sua realidade humana. Por mais que ela fosse tão abominável quanto esta. Ora, a realidade humana não é apenas o fato da organização social, mas também uma relação subjetiva e a expressão de esquemas culturais conservados em esquemas mentais.
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"A psicanálise está habituada a adivinhar coisas secretas e escondidas a partir de traços subestimados ou dos quais não nos damos conta a partir do resíduo — do "recusado" da observação" disse Freud um dia.
No passo desta démarche, identificar o Traço bárbaro que assombra a modernidade nos convida também a fixar a nossa atenção nas figuras da agressividade nazista. Discernimos nela então uma marca criminal, que não lhe é exclusiva mas que o nazismo levou ao paroxismo. Instalando-a na política e colocando a seu serviço o aparelho do Estado, e o conjunto dos dispositivos de regulação técnico-moderno e administrativo dos quais ela se apropriou, para transformá-los nesses instrumentos do homicídio de fluxo constante. Tais como Bauman nos convida a reconhecê-los.
Ao menos alguém decifrou de saída essa marca criminal, de modo não metafórico mas literal: trata-se de Bertold Brecht em A irresistível ascensão de Arturo Ui, obra freqüentemente aclamada pela sua performance de agitprop mas insuficientemente por seu efeito de verdade. Ao menos alguém confirmou tal marca, além do possível e isso antes da guerra, por ter freqüentado durante algum tempo os nazistas, sem ter sido escutado a tempo: trata-se de Hermann Rauchning, cujo testemunho Hitler m'a dit e o ensaio La révolution du nihilisme são fontes de primeira importância, aliás escamoteadas com constância na proporção desta importância.
Mas, de fato, recebemos a indicação desta marca em vários autores e testemunhas de referências: Robert Antelme, Primo Levi, Hermann Langbein, Eugen Kogon, Golo Mann, Franz Neumann, Joseph Kessel, Siegfried Kracauer, Douglas Sirk, Klauss Mann, Ernst Bloch, Léo Strauss, etc. Cada um deles não tendo deixado de comparar, formal ou indiretamente, os nazistas a gângsteres.31 Não é insensato dar-lhes crédito. Não desprezar uma intuição jamais desenvolvida — mas repetida — e oriunda da experiência vivida, enquadrando tais indicações como analogias formais ou polêmicas.
Pelo contrário, convém levá-los a sério, passar de suas intuições ao trabalho científico de identificação das eventuais homologias estruturais entre modus operandi, "condutas de vida", e savoirs-faire específicos dos bandos de criminosos e dos nazistas.
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Não é pela História das idéias ou por uma sociologia da cultura que atingimos essa marca criminal do nazismo, mas por uma antropologia clínica dos hábitos no sentido que lhes dão W.G. Sumner e V. Hartman.32 Ela nos leva à subcultura mafiosa.
Os sociólogos e os antropólogos, levados a trabalhar a subcultura da Máfia tradicional (Pino Arlacchi, Herman Hess, Anton Block, Francis Ianni, para citar apenas estes) identificaram nela traços, motivos para interrogações. A se reter apenas o que nos ensinam os trabalhos de Pino Arlacchi33 sobre a subcultura mafiosa — as regras de coragem, de astúcia, de ferocidades, de práticas do roubo e da fraude, a concepção real da "honra", fundada na aptidão à violência homicida, a prática sistemática do discurso duplo, do engano, o imperativo da subordinação, o estatuto das mulheres, a guerra de "todos contra todos", a livre disposição sádica sobre os fracos e os sem defesa, a audácia, a hierarquia fundada na predominância do mais forte, do mais agressivo, do mais astucioso — encontramos seus homólogos na Schwarze Korps e na Schutz Saffel. "Nos castelos da minha ordem, crescerá uma juventude que aterrorizará o mundo. Eu quero uma juventude violenta, despótica, sem medo, cruel..." confiava Hitler a Hermann Raschning (cf. Hitler m'a dit).
Ou ainda, da sessão werewolf (lobisomem), da SS, especializada no terrorismo e no assassinato individual, ele exigia: "Vocês devem ser indiferentes à dor. Não devem conhecer nem ternura nem piedade. Quero ver nos olhos de um jovem impiedoso o clarão de orgulho e de independência que leio no olhar de um animal de caça".34
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Ser membro da "Honrosa sociedade" significa ser um homem valoroso e orgulhoso, que menospreza o risco, decidido a tudo, sem nenhum escrúpulo. O uso da violência homicida é indispensável ao "homem honrado". Ela é até mesmo o seu critério de iniciação. Uma acusação por agressão física significa que um jovem honrado distinguiu-se por sua arrogância e sua audácia. E quanto mais grave for o delito, mais alta será a consideração do grupo. A agressividade e a violência são sempre sancionadas positivamente. Apenas a vitória obtida por todos os meios na luta pela supremacia decide o poder mafioso. Os critérios de seleção da elite mafiosa baseiam-se nos princípios da rivalidade impiedosa. Um nível elevado de agressividade, de solidez dos nervos, de inteligência, de ferocidade, de capacidade para tomar rapidamente decisões são condições necessárias para dirigir um grupo mafioso. Donde o fato de o princípio absoluto de subordinação ser a sua única garantia temporária.
Disso decorre, evidentemente, que todas as vidas não têm o mesmo valor. A vida de alguns vale menos que a vida de outros. Certos homens podem, portanto, ser mortos sem que isso seja um ato condenável. O corolário é: "que a falsa bondade, a condescendência, a gentileza, como armadilhas insuspeitáveis e mortais para os 'recalcitrantes', os 'infames', os 'indignos' são próprios da relação com os homens comuns e os inimigos". Constatação similar feita por Varlam Chalamov, escritor do gulag, a propósito dos bandos de criminosos, em seus Ensaios sobre o mundo do crime: "A mentira, a falsidade, a provocação dirigida à pessoa que não faz parte deste bando — mesmo que se deva a vida a ela — tudo isso está não apenas na ordem das coisas, mas é até mesmo um título de glória, uma lei do bando."
Essa descarga heroicisada da agressividade, da crueldade, da mentira, da perfídia como "ser no mundo" é idêntica quase que termo a termo à descarga da heroização do "super-homem", tal como o nazismo o apresenta. Esta heroização está no centro dos propósitos de Hitler, de Himmler, etc. É a heroização da SS como guarda pretoriana, na qualidade de corpo de elite e na função de "nó" da "nova Ordem". A SS não é um apêndice periférico do poder nazista, encarregado dos trabalhos sujos, tal como o poder político clássico pode às vezes usar malfeitores, nas zonas cinzas do seu exercício. A SS encontra-se no centro do sistema nazista da dominação. O que é coerente com os princípios de seleção e de promoção das elites e dos dirigentes do nazismo e do seu próprio "ser no mundo".
Esta maneira de "ser no mundo", este estado de conjuração permanente, como compreende Rauchning, não é antinômico com os princípios de repressão de comportamentos não conformes. Assim, a Máfia tradicional combaterá os ladrões, os bandidos, os vagabundos, os homossexuais, do mesmo modo que os nazistas os deportarão. Ao mesmo tempo fazendo deles auxiliares, se necessário, nas cercanias da cidade, para a Máfia, e nos campos de concentração, para os nazistas. Não são então, evidentemente, o roubo, o assassinato ou a associalidade que são condenadas, mas a sua insubordinação ao poder das confrarias mafiosas ou dos "senhorios nazistas".
Não seria mais uma vez uma manifestação desta heroização da violência como "ser no mundo" a violência tão particular da linguagem nazista: termos pejorativos, calúnias, insultos, invectivas, ameaças? Assim como a sua ironia cruel como postura jubilatória: os campos de concentração dos quais Eugène Kogon35 nos relata uma alcunha nazista "Konzerlager" para designá-los, a inscrição "Arbeit macht Frei" no frontão de Auschwitz, a orquestra que acompanhava a chegada dos deportados, os deportados designados pelos vocábulos coisificantes "stuck" (peças), "figuren" (bonecas), "Schmattès" (trapos), o cão Barry em Sobibor treinado para mutilar os detentos e denominado "homem": "homem, rasgue esse cão". Até mesmo talvez as eufemizações da sua linguagem codificada: "solução final", "passagem pela eclusa", "desinsetização", "evacuação", "tratamento especial", pelas quais não se compreendeu até aqui senão uma operação de dissimulação. E seguramente soam também como um escárnio a vala em direção às câmaras de gás, batizada de "caminho do céu", e estas últimas chamadas de "sala de ducha".
"O riso de Hitler", relatou Hermann Rachning, "não é outra coisa senão uma forma de insulto e desprezo." O que está de acordo com esta declaração de princípio hitleriano: "a consciência é uma invenção judaica, é, como a circuncisão, uma mutilação do homem"...
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No caminho da identificação da marca criminal, na sua permanência nas práticas mafiosas e nazistas, seria preciso arriscar-se a se perguntar se a vontade de sumir com os cadáveres dos assassinados nos campos de concentração, de apagá-los, concerne apenas à "industrialização da morte", ou se ela refletiria em sua própria possibilidade a significação que os mafiosos e os bandos de criminosos dão a esta vontade quando procedem da mesma maneira: um último sinal de injúrias e de desprezo. E ainda, se os dispositivos de neutralização, de sideração, empregados pelos nazistas para deportar os judeus e levá-los até as câmaras de gás não são os equivalentes em grande escala dos dispositivos utilizados correntemente pelos mafiosos de alívio e tranqüilização da vítima já condenada com o intuito de executá-la com mais segurança, sem despertar suspeitas nela, nem na opinião pública,. Relatório de um Einsatzgruppen (datado de 3 de novembro de 1941): "trinta mil judeus se reuniram (após uma chamada) e graças a uma organização extremamente bem concebida, eles não deixaram de acreditar que seriam reinstalados de novo até o momento da execução".
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Se Bauman depreende da mixórdia ideológica nazista — que faz uso da sugestão e do irracional —, da sua "visão do mundo"— mistura de ocultismo, de mitos pagãos, de milenarismo político, de semânticas camponesas e de léxicos de Pasteur —, operadores semânticos da "engenharia social", ele não faz dela unicamente uma doutrina de conseqüências criminosas, mas a roupagem semântica e narrativa de uma intenção criminal primeira. A doutrina nazista reúne e justapõe um agregado de enunciados extraídos das produções do século XIX e dos esquemas mentais constitutivos do camponês-burguês36 que dá as suas marcas ideológicas a uma conjuração e ao oportunismo niilista que a acompanha. Essas semânticas constituíram tantos veículos de propagação societal quanto as "roupas de empréstimo" necessárias para que os "gozos" não saiam nus.
A técnica nazista do poder, seus hábitos políticos são esclarecedores. Eles constituíram o modus operandi com o qual os nazistas ao mesmo tempo asseguraram a sua dominação, estupefizeram as massas, confundiram seus adversários, sideraram suas vítimas. O gangsterismo dos nazistas, várias vezes evocado pelos testemunhos, não é uma metáfora grandiloqüente e excessiva, mas a sua maca mental. E não está menos no cerne da realização efetiva do holocausto.
Podemos entrever a vacuidade do debate de escola opondo os historiadores "funcionalistas" aos historiadores "intencionalistas": saber se os nazistas tinham a intenção "por princípio" de exterminar os judeus ou se o objetivo do extermínio apareceu "ao longo do caminho", como uma direção única nascida das condições da guerra. A interrogação emergiu do que pareceu ser uma racionalização técnica progressiva dos métodos e dos meios colocados em ação para a realização da Endlösung (a "solução final").
Aqui, Bauman é levado a juntar-se rápido demais ao campo dos "funcionalistas": "A lição mais transtornante que se extrai da análise do 'caminho tortuoso para Auschwitz' é que, finalmente, a escolha do extermínio como o melhor meio para chegar à Entfernung era o produto de procedimentos burocráticos ordinários: cálculo da relação meio-fim, equilíbrio do orçamento, aplicação de regras de valor universal" (p.45).
A lógica criminal do gangsterismo psicocultural nazista podia conter como estrutura o extermínio. Os tateamentos observáveis não são o seu desmentido, mas a sua própria cinética. Eles não são senão a manifestação do traço de gozo que anima o nazismo: a heroização da violência. Com ele, será sempre a decisão mais violenta, a pior das "invenções" que suplantará a cada vez as outras. O caos mortífero e mórbido dos campos de concentração é ainda o seu testemunho.
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Durante o primeiro quarto do século XX espreitava-se, com esperança ou pavor, a plebe. O século esperava o proletariado. Foi a escória política que chegou. Modos de vagabundos, uma estética de larápios, com modos de malfeitores, prazeres de crápula. O nazismo foi essa reunião. Não o nome genérico de uma política com conseqüências criminais, mas a emergência no campo de ação do político do modus operandi e da épistème dos gângsteres. Não mais os larápios evoluindo às margens do político, na zona cinza das baixas manobras, trocas de serviços ocultos e repartição de influências, mas uma associação criminosa instalada no seu centro, unificada em partido e enfim proprietária do Estado moderno.37
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Pela justaposição da subcultura mafiosa e da fúria nazista se descobre a Marca criminal: uma paixão pela depredação, um deleite com a duplicidade, um júbilo com o esmagamento dos vulneráveis. O trilhamento de um gozo sem freio que vem se estabelecer, ordenar e prosperar como forma mortífera do laço social. O gozo da "onipotência", que bem poderia ser o traço bárbaro. Hannah Arendt, em Da mentira à violência, observava o quanto a natureza era por natureza instrumentalizante. A "heroização da violência", como modo de ser no mundo, é, por dinâmica própria, produtora de comportamentos instrumentalizantes e de enunciações coisificantes.
A crítica que Bauman faz do Estado moderno, da racionalidade instrumental, e da administração burocrática das coisas e dos humanos reduzidos a estas últimas, é pertinente. Mas esta crítica, no fim das contas, nos diz menos a respeito do "arco de gozo mortífero" determinante do nazismo do que da sua recepção em uma configuração moderna. "A violência tornou-se uma técnica", analisa Bauman (p.166). Mas ela nunca deixou de sê-lo ao longo da história humana. Como nunca deixou de ser tetanizante e subjugadora. Inquietante e sedutora. E para terminar: sempre capturante. O que está em questão é a permeabilidade da racionalidade instrumental à violência extrema. Posto que a racionalidade instrumental traz nela, desde já, pelas suas lógicas coisificantes, sem o saber, uma violência. Mas além disso essa porosidade é um fator de amplificação. A instrumentalização coisificante inerente à racionalidade instrumental torna-se por sua vez um instrumento nas mãos da "heroização da violência" infiltrada. O que pertence à dimensão do Leviatã é absorvido pelo Beemot. O que Bauman deixa escapar é a agregação, ou ainda a afinidade eletiva, realizada entre o tropismo criminal da "heroização da violência", em função do "Ideal do eu" no nazismo, e a racionalidade instrumental e seus subentendidos coisificantes. O que Bauman perde é a representação — modelo da representação da Quimera.
O nazismo é uma quimera. Feita de gangsterismo da ação, de gesto camponês, de biologismo médico, de racionalidade instrumental.38 É esta quimera que teceu a tela do extermínio.
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Seria uma injustiça com esse livro sério, e com seu autor, suspeitar de sua tese, não obstante estar excessivamente impregnado dos vestígios de um esquema hegeliano-marxista e de sua busca de totalidade explicativa, esquema do qual Baumann não se livra tanto quanto desejaria? Seria correr o risco de invalidá-lo sublinhar, com pesar, o quanto a sua crítica interna da sociologia não alcança a crítica da unilateralidade da abordagem sociológica, como produtora pertinente de análises exigíveis? Seria talvez necessário reconhecer, no que sublinha Z. Bauman e na unidimensionalidade significante que ele ali constrói da modernidade, em torno da "engenharia social" realizada, um desprendimento insuficiente das armadilhas que ele denuncia, cedendo rápido demais às tentações de um trabalho com sentido excessivamente sintético, por demais unificador, dos quais se subtraem os entrelaçamentos do acontecimento nazista.
Mas com a notável diferença dos padrões triviais e falsamente consoladores das premissas do hegeliano-marxismo, assim como do exclusivismo sociológico, ele os articula, por experiência, a um "valor" de pessimismo. Aqui reside, então, o segundo detonador da originalidade mobilizadora do seu trabalho. Ao qual convém dar crédito, e no qual convém, além disso, meditar.
Quanto às conseqüências dessa escorregadela, elas são importantes. Ao menos, segundo o que afirma — já aqui — Z. Bauman, "o futuro" tão cedo não corre o risco de ser "feliz".39
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Quando consignou a sua missiva antes citada, no recôndito de sua última obra, Sigmund Freud perseguia, ali, o que havia constituído o alicerce político do conjunto das suas incursões "socioantropológicas". Ele mantinha a barra do que havia constituído a sua trama "ética". Excelentemente resumida por Paul-Laurent Assoun em seu ensaio O entendimento freudiano: "O pessimismo é o destino ético da teoria das pulsões." O que sugeria a "surpresa freudiana" sobre o "pacto concluído" pelo Progresso com a Barbárie é que não há involução bárbara.
Do mesmo modo que a barbárie não poderia ser pensada como um acidente regressivo, apreendido no vetor linear temporal de uma maturação cultural segundo o modo pelo qual a apreende Karl Manheim,40 tampouco ela é um outro nome para "primitivo". As sociedades ditas "primitivas" observadas pelos antropólogos não são, por serem primitivas, "bárbaras". A barbárie jaz, oculta, eterna, nas profundezas da Psyché humana. De modo previsível, a barbárie é co-presente, ou mesmo co-extensiva ao Progresso. Ela força nele as suas brechas. A asserção, parcialmente consoladora, de Hölderlin — "Ali onde cresce o mal, cresce também o remédio" — vale da mesma forma ao ser invertida: ali onde cresce o Progresso crescem também na mesma proporção as possibilidades destruidoras do Mal.
A Lição poderá ser escrita assim: toda autêntica ciência política nova — como a que invocava outrora imperativamente Tocqueville, e que ele convocava como uma necessidade alarmada — não surgirá doravante senão de uma ética da Desilusão, portal das obras de lucidez. Provavelmente, não haverá mais outra Ética pertinente hoje senão a que se esboça na orientação deste "eixo". Que estabelece nele as suas bases. Que não diz o Bem, mas que escruta antes o Mal.
É apenas a partir desta Ética, incitando a construir a inteligência de vigília sobre as forças mortíferas que vagueiam, que é possível esperar se destacar um pouco — quem sabe!? — das exultações da "onipotência"; que seria possível aproximar — enfim! — o outro como o seu "próximo", embarcado na mesma canoa furada.
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Nada está resolvido. "A civilização inclui hoje campos da morte e muselmänner entre os seus produtos materiais e espirituais", consignava Richard Rubinstein e John Roth,41 citados por Bauman. Mas além disso, a racionalidade instrumental estendeu de modo considerável o campo das suas manufaturas coisificantes. Contaminando as diferentes seções da Cultura contemporânea, ela continua a consolidar nesta o seu domínio.
Enquanto que a "heroização da violência" dos "criminosos do eu"42 recorta novas silhuetas das multidões intercambiáveis das democracias de massa.43 E enquanto que o compromisso lento, a servidão voluntária, a falta de vigor gregária, e o gozo por procuração das violências delegadas continuarão a instalar seus cantões na Espécie humana. Todas eternas fornecedoras de agentes de serviço para eficazes oficinas do assassinato.
Por esta razão, não podemos senão compartilhar a ansiedade diagnóstica de Bauman "diante do fato de que nenhuma das condições sociais que tornaram Auschwitz possível verdadeiramente desapareceu e que nenhuma medida eficaz foi tomada para impedir essas possibilidades e esses princípios de produzir outras catástrofes da mesma natureza" (p.37).
O Holocausto "testemunha o progresso da civilização", dizia ainda Richard Rubinstein. Temamos de modo salubre o que nos designa este aforisma, em amargo oximoro. Será possível que a marcha da humanidade moderna não seja mais do que um caótico périplo para a realização do seu próprio desejo de morte? Laboriosamente retido em sua marcha por um Eros cambaleante.
Uma nova reunião proporcional ao que foi a quimera nazista não está, com efeito, de modo algum excluída. As suas possibilidades permanecem, ou até mesmo se reforçam. Qualquer que seja a vestimenta semântica e postural sob as quais elas poderiam se realizar.
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Na fronteira das terras tenebrosas do "Mal radical", Bauman não falhou. Ele mantém bem o seu acampamento de posto avançado. Mesmo se não podemos considerar a sua valiosa contribuição como um avanço decisivo na resolução do enigma do nazismo e da destrutividade moderna. É que a identificação do "pacto passado entre o progresso e a barbárie, e a "vigília" dos pactos que potencialmente virão, deverá mobilizar mais do que apenas a sociologia. Mesmo que ela viesse a reconhecer certos ataques "de ferro" a ela dirigidos pela crítica de Z. Bauman. Mesmo se o deslocamento incontornável que opera a épistêmê freudiana e o seu método de escuta clínica nos pareçam excessivamente ausentes neste autor. Adequadas para rasgar de modo mais provável alguns véus suplementares de falsas aparências, sem que se trate por isso de levar a interpretação psicanalítica para fora do campo do tratamento. Mesmo se ele nos parece se privar das chaves da construção do campo antropológico de observação e da fenomenologia do vivido, das abordagens semânticas e filológicas sofisticadas ao modo de Klemperer,44 ou até mesmo da história cultural segundo a maneira como Erwin Panofsky a explora. Ao menos ele caminha indubitavelmente na trilha da desilusão. E é isso que importa, aqui.
Pelo simples fato de pegar essa trilha, ele permite ocupar, no seio do mundo do qual não podemos cair, uma posição de extraterritorialidade. Posição, em todo caso, na qual se corre o risco — como ele faz — de produzir livros fortes. Ou seja: "assinaladores de incêndios".
Tradução de Simone Perelson
1 Máxima de Gunther Anders, proposta como reformulação necessária, após o nazismo, do bíblico "Ama a teu próximo como a ti mesmo".
2 Publicado em 1989, traduzido nas edições La Fabrique, Paris, em 2002. N. da T.: É possível encontrar este título na Jorge Zahar, edição de 1998, traduzido por Marcus Penchel.
3 Cf. La Démocratie et les partis politiques, Paris, edição Fayard, 1993. [ Links ]
4 Robert Antelme, Charlotte Delbo, Primo Levi e Hermann Langbein — que fez a seguinte observação: "Nós pensávamos, confusamente, que depois de Auschwitz tudo deveria mudar, melhorar, que a humanidade tiraria uma lição das nossas experiências. Ora, constatamos que ela não se interessava de modo algum pelo assunto. No lugar disso, testemunhou uma piedade a priori, inoportuna, freqüentemente fingida. (Hommes et femmes à Auschwitz, Paris, edições Fayard, 1975). [ Links ]
5 Cf. Le Temps de la pensée, Paris, Seuil, 1993. [ Links ]
6 Cf. La 901ème conclusion, Paris, Fayard, 1998. [ Links ]
7 Cf. Ian Kershaw, Qu'est-ce que le nazisme?, Paris, Gallimard, 1997. [ Links ]
8 Cf. La Guerre civile européenne 1917-1945, Paris, éditions des Syrtes, 2000. [ Links ]
9 Retomamos aqui uma noção central aos trabalhos de Paul Virilio.
10 Bauman emprega o termo Holocausto segundo a expressão comum anglo-saxônica. Nós preferimos, por motivos apresentados em nossa obra Questions sur la Shoa, o uso do termo Shoah. Mas aqui admitiremos, por comodidade ocasional, o termo utilizado por Bauman.
11 Bauman se dedica, sem razão em nossa opinião, a uma tarefa antiweberiana a propósito da idealização, que ele atribui a Weber, da "racionalidade legal" da burocracia. De fato, Weber não deixou de notar o horizonte do risco niilista da impersonalidade burocrática. Quanto ao resto, a marginalidade da sociologia quanto ao estudo do holocausto, a ausência de crítica ao modelo de sociedade moderna que serviu de contexto teórico e de legitimação pragmática à prática sociológica não deixam de ser verdade. A interpelação, se não a mais certa, ao menos saudavelmente incisiva, de Bauman, reside no comentário de que "expressões tais como 'o caráter sagrado da vida humana' ou o 'dever moral' parecem tão bizarras em um seminário de sociologia quanto nos escritórios assépticos e não-fumantes de uma administração".
12 Cf. o capítulo "Une métaphysique de la Shoah?", em Questions sur la Shoah.
13 Cf. Anna Zuk, "A mobile class. The subjective element in the social perception of Jews", Polin v.2, Oxford, Polity Press, 1987. [ Links ]
14 Cf. Eberhard Jäckel, Hitler in History, Boston, 1964. [ Links ]
15 Como escreve Alice Miller em C'est pour ton bien: "Odeia-se o judeu porque se carrega um ódio interditado e se experimenta a necessidade de legitimá-lo."
16 Cf. com o que já dizia Renan a esse respeito em Du judaïsme et du christianisme, ed. DDB, Paris, 1995; ou ainda Léo Strauss, "Athènes et Jerusalém", in études de philosophie politique platonicienne, Belin, 1992. [ Links ]Alusão à dupla origem da cultura ocidental, geralmente evocada sob os topônimos Atenas e Jerusalém. A noção de "mau objeto" é aqui emprestada de Melanie Klein.
17 Deveríamos um dia parar e nos interrogarmos sobre a qualificação por Hannah Arendt da piedade como "animal". Há aqui sob a sua pluma um sinal sobretudo perturbador.
18 "A estrada de Auschwitz construída pelo ódio foi pavimentada de indiferença", observa por sua vez Ian Kerschaw em L'opinin allemande sous le nazisme, ed. Paris, CNRS, 1995. [ Links ]
19 Para um estudo aprofundado dos usos heurísticos, polêmicos e políticos dos "valores do organismo", assinalemos o estudo admirável de Judith Schlanger: Les métaphores de l'organisme, Paris, ed. Vrin, 1971.
20 Sobre este aspecto atual, a nossa contribuição "Von der Allmacht der Verdinglichung und vom wissenschaftlichen Denken" in Ethik und Wissenschaft in Europa, Freiburg, ed. Alber, 2000. [ Links ]
21 Distinguimos bem em Bauman a influência da leitura radical que fazem Horkheimer e Adorno da Razão kantiana em La Dialectique de la raison (especialmente nas páginas 94-99). Mas ele não se aventura no que faz deste texto um golpe de mestre: a ligação induzida pelos dois teóricos de "Frankfurt" entre Kant e Sade.
22 Cf. Reactionary Modernism: Technology, Culture and Politics in Weimar and the Third Reich, Cambridge University Press, 1984. [ Links ]
23 Ed. Odile Jacob, Paris, 1993. [ Links ]
24 Cf. Robert N. Proctor, La guerre des nazis contre le cancer, ed. Paris, Les Belles Lettres, 2001. [ Links ]
25 Cf. Le national-socialisme et la société allemande, Maison des Sciences de l'homme, Paris, 1998. [ Links ]Ver também R. Hilberg La destruction des Juifs d'Europe, "A corrupção era inerente ao processo de destruição. Apenas a corrupção oficiosa era proibida." Bauman comete a esse respeito um erro: "os ganhos e os motivos pessoais eram em geral reprovados e punidos" (p.50). Não apenas os fatos tal como começam a interessar hoje aos historiadores o desmentem, mas Herman Rauschning, já em seu Hitler m'a dit, dava esta chave. Cf. o capítulo 16 do seu testemunho: "Enriqueçam!"
26 Ed. Payot, Paris, 1987. Franz Neuman se interroga sobre a possibilidade de chamar a Alemanha nazista de um Estado. "É muito mais uma gangue onde os chefes são obrigados a se colocar de acordo após as desavenças".
27 Cf. "Primat de la politique et rapport de la politique à l'économie dans l'Allemagne national-socialiste", apêndice à La Révolution brune, de David Schoenbaum, Paris, Gallimard, 1966. [ Links ]
28 Cf. o nosso artigo "Carnets du Jusant", in Barca n. 13, nov. 1999. [ Links ]
29 Cf. a nossa comunicação "Figuras da Barbárie" no Fórum "Antijudaismo e barbárie", Colégio dos Estudos Judaicos, Paris, 2003. Ver também Joel Birman, "Aux frontières de la barbarie", in Civilisation et barbarie, réflexions sur le terrorisme contemporain, Paris, PUF, 2002. [ Links ]
30 Esta tendência encontra evidentemente no comentário de Hannah Arendt sobre a "banalidade do Mal", na ocasião do seu acompanhamento do processo de Eichman em Jerusalém, um suporte de peso. Não temos o direito de supor que a Lição de Hannah Arendt teria sido absolutamente outra, diante do que teria sido esclarecido sobre um processo, caso se tratasse do processo de outros criminosos não menos emblemáticos do nazismo: Goebbels, Goëring, Himmler, Mengele, por exemplo? Mas além disso, o efeito de lupa do processo de Eichman oculta Martin Bormann enquanto encarnação do espírito da regulamentação burocrática.
31 E evidentemente, Hannah Arendt, cuja intuição da fascinação do mundo do crime sobre as elites merece uma atenção frutífera (cf. O sistema totalitário, capítulo 1).
32 "Os modos servem de meio de regulação dos comportamentos políticos, sociais e religiosos do indivíduo que, de certa maneira, não se serve da razão" (V. Hartman); "Os modos contêm noções, doutrinas e máximas, mas são antes de tudo fatos" (W. Summer).
33 Cf. Mafia et compagnies, l'éthique mafieuse et l'esprit du capitalisme, Grenoble, ed. PUG, 1986. [ Links ]Les Hommes du déshonneur, Paris, ed. Albin Michel, 1992. [ Links ]
34 Citado por Brian Frost, Book of the WereWolf , Londres, ed. London Spher Books, 1973. [ Links ]
35 Cf L'État S.S., Paris, Du Seuil, 1970. [ Links ]
36 Cf. La Révolution brune, de David Schoembaum, já citado.
37 O Münchner Post foi o primeiro e com constância não abandonou esta abordagem. Cf. Ron Rosenbaum, Pourquoi Hitler?, Paris, JC Lattès, 1998. [ Links ]
38 O que havia de fato entrevisto Ernst Bloch em Héritage de ce temps, Paris, ed. Payot, 1978. [ Links ]
39 O autor está se referindo aqui ao slogan comunista de G. Péri "des lendemains qui chantent", que pode ser traduzido por "um futuro feliz". (N. da T.)
40 Cf. o seu artigo de 1940 "Rational and irrational elements in contemporary society" e o seu comentário por Judith Schlanger, antes citado.
41 Cf. Auschwitz, tentatives d'explication.
42 Cf. Jacques Lacan, "Prémisses à tout developpement possible de la criminologie", in Autres écrits, Paris, éd du Seuil, 2001. [ Links ]
43 Cf. o nosso artigo "Le trafiquant et ses caves", in Travailler n.7.
44 Cf LTI, la langue du IIIème Reich, Paris, ed. Albin Michel, 1996. [ Links ]44 Cf LTI, la langue du IIIème Reich, Paris, ed. Albin Michel, 1996. [ Links ]
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