A escola na literatura
* Jornalista.
Nas palavras de Raul Pompéia, o Ateneu era um colégio-presídio, onde reinava “o risco perpétuo do flagrante”. Para o poeta Drummond, ir para o colégio interno era o mesmo que “morrer vivo o ano inteiro”. “Colégio amansa menino!” foi o que Carlos, o menino do engenho, ouviu quando decretaram que só mesmo os padres e os mestres podiam curar sua alma da luxúria. Já Tistu, personagem criado por Maurice Druon, vivia se perguntando como era possível dormir tão bem na aula e tão mal na cama. Leia, a seguir, as sinopses de dez belos textos da literatura que falam da escola.continua...
O Ateneu, Raul Pompéia. Editoras Ática, Moderna, Scipione, FTD, Ed. Ouro.
O Ateneu, Raul Pompéia. Editoras Ática, Moderna, Scipione, FTD, Ed. Ouro.
O Ateneu, de Raul Pompéia, leva o leitor ao quotidiano de um colégio interno frequentado pela fina flor da mocidade brasileira. Mistura de ficção e realidade, o livro mostra a educação oferecida a crianças e jovens no final do século XIX.
Tomando emprestadas as palavras de Chico Buarque, O Ateneu é “transbordante como uma hemorragia”. O livro é um relato amargo e irado de Sérgio, um menino que, aos 11 anos de idade, chegou ao colégio. “Vais encontrar o mundo”, disse-lhe o pai. Logo nos primeiros dias, seus cabelos cacheados, que eram “um capricho amoroso da mãe”, foram cortados para cumprir o regulamento.
Autoritário, o diretor Aristaco Argolo de Ramos era mestre em dizer frases ferinas com voz calma e macia. Considerava sua missão “amordaçar excessivos ardores, retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos, adivinhar temperamentos, desiludir as aparências sedutoras do mal aproveitar os alvoroços do sangue para nobres ensinamentos”.
Foram-se os cachos do cabelo e um mundo novo se descortinou para Sérgio. Reinava no Ateneu uma atmosfera de vigilância constante, “o risco perpétuo do flagrante”. Discípulos, professores, bedéis viviam em sobressalto sob a tirania de Aristarco. Reprimendas coletivas, humilhações e punições morais faziam parte do dia a dia. As arguições na classe e a leitura das notas em voz alta semeavam o terror acadêmico.
O sistema do colégio se reproduzia entre os alunos. Assim os mais fortes subordinavam os mais fracos e a espionagem era uma prática comum. Muitos pulavam o muro do colégio, descobriam o sexo e experimentavam o cigarro. Apesar da fama de centro de excelência de ensino, o Ateneu era, na verdade, um colégio presídio. a sentença final foi assinada por Américo, um aluno rebelde, que decide incendiar o colégio.
Menino Antigo (Boitempo II), Carlos Drummond de Andrade. Editora José Olympio.
Nascido em Itabira, cidade cercada pelo mar de montanhas de Minas Gerais, Drummond se revela em Menino Antigo. Os poemas do livro são a memória poética da infância e da adolescência vivida entre a cidade e o campo. Filho de fazendeiro de bota e espora, Drummond era um menino franzino que gostava de ler debaixo das árvores.
O livro fala de sua iniciação literária e relembra a chegada na fazenda dos 24 volumes da Coleção de Obras Célebres encomendada do Rio de Janeiro especialmente para ele. A mãe se queixava: “Não dorme esse menino”. O irmão reclamava: “Apaga a luz, cretino.” Drummond se orgulhava de ser assinante de Tico-Tico, uma das revistas em quadrinhos mais antigas do Brasil.
Ler para ele era “sair pelo mundo voando na capa vermelha de Júlio Verne”. Por que, então, o livro escolar era tão sem graça? Inconformado, o menino queria ser rei, só para criar um decreto condenando o autor a ler a sua obra, que era dirigida aos alunos. Como num mosaico, os poemas reconstituem cenas perdidas no tempo: os tabuleiros de quitandas, a folha de malva no livro de reza e a professora com sua cabeleira morena, seu busto, seu buço. No poema Ombro, o poeta fala de sua ida para o colégio distante. Era o mesmo que “morrer vivo o ano inteiro”.
O menino do dedo verde, Maurice Druon. Editora José Olympio, tradução de D. Marcos Barbosa.
As aventuras de uma criança de nome esquisito – Tistu –, filho do Sr. Papai e Dona Mamãe, fazem de O menino do dedo verde um livro cheio de graça. O autor, Maurice Druon, conhecido na França por seus romances históricos, e o tradutor, o monge beneditino D. Marcos Barbosa, levam os leitores num vôo da imaginação para delícia de crianças e adultos.
Tistu aprendeu a ler, escrever e contar com Dona Mamãe. Tudo ia bem até o dia em que ele foi para a escola. Quando o professor começava a encher o quadro de letras e contas, seu olho esquerdo começava a coçar e ele caía num sono profundo. Ninguém esperava que um meniuno tão bem vestido e bonito fosse se comportar assim. Tistu se preocupava e perdia noites de sono: como era possível dormir tão bem nas aulas e tão mal na cama?
Como o Sr. Papai era um homem enérgico, resolveu experimentar um novo sistema de educação longe da escola. Levou o filho para ter lições de jardim com o jardineiro da família. É aí que tudo começa a acontecer. Bigode, o jardineiro velho e macambúzio, descobre que Tsitu tem um polegar verde, invisível para os outros, mas cheio de poderes. O que ele toca vira flor. O poder de Tistu tornou-se conhecido e revolucionou a sua pequena cidade que até mudou de nome – de Mirapólvora passou a Miraflores.
“As histórias nunca param onde a gente imagina”, escreveu o autor. Os capítulos de O menino do dedo verde trazem sempre novas surpresas. Recheado de frases preciosas (“A lua gosta das pessoas que passeiam de noite” ou “Há silêncios que despertam”) o livro é puro lirismo e abre portas e janelas para muitas leituras.
Menino do Engenho, José Lins do Rego. Editoras Livros do Brasil e José Olympio.
“Eu tinha uns quatro anos no dia que minha mãe morreu”. Esta é a primeira frase do livro Menino do Engenho, escrito em 1932 por José Lins do Rego. A partir daí o leitor não consegue mais se desgrudar do livro. A narrativa do escritor paraibano lembra a dos contadores de histórias da tradição oral. É por isso que o leitor sente “a alegria de ouvir” as histórias escritas por ele, como explicou o poeta Drummond.
Carlos, o menino do engenho, cresce no nordeste açucareiro, nos limites entre Paraíba e Pernambuco. Ali, no convívio com bichos, gente da senzala e da casa grande, ele descobre o mundo. Nada mais brasileiro. A história é repleta de cores, cheiros, costumes, religiosidade, superstições e de tipos humanos regionais. Tudo envolto num clima de ternura e de nostalgia do engenho, às vésperas da decadência do patriarcado rural.
O aprendizado das letras se dá no colo de Judite, sentindo o cheiro dos seus cabelos e a carícia de suas mãos morenas. “Menino safado, atrasado e vadio”, Carlos torna-se conhecido por suas aventuras sexuais. Aos doze anos é mandado para o colégio interno para que os padres e mestres curem sua alma da luxúria. “Colégio amansa menino!”, todos diziam. O livro termina no dia em que ele se despede do engenho.
Minha Vida de Menina, Helena Morley. Editora Companhia das Letras.
Não é de hoje que as meninas gostam de fazer diários. De 1893 a 1895, Alice Dayrell Caldeira Brant, com o pseudônimo de Helena Morley, “conversava com o caderno”, como ela mesma escreveu. Por sugestão do seu pai e do professor de Português, Helena passava horas a fio debruçada sobre o caderno registrando seu dia a dia em Diamantina, a bela cidade mineira que é Patrimônio Histórico da Humanidade.
O diário de Helena Morley, escrito dos 12 aos 15 anos de idade, foi publicado em 1942 com nome Minha Vida de Menina. A reconstrução da infância numa cidade mineradora, após a abolição da escravatura e no início da República, encantou os leitores pelo seu valor histórico e literário. Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e a poeta Elizabeth Bishop, que traduziu o diário para o inglês, ficaram fascinados com o frescor juvenil do texto.
Helena Morley não era uma menina bem-comportada. Irreverente, criativa e crítica, ela era daquele tipo que pergunta tudo e faz comentários desconcertantes. Para Helena, a pior invenção da vida era o mingau de fubá e o pior dia, a sexta-feira da Paixão. Uma de suas invenções foi fazer o uniforme de escola virar vestido de festa. Pelo seu diário o leitor fica sabendo que, no final do século passado, as mulheres não tinham o hábito de usar relógios e a cola de sanfona, muito usada ainda hoje nos dias de prova, é mais antiga do que se pensa. No livro, ela confessa que fazer as sanfoninhas com os nomes dos rios do Brasil é muito mais fácil do que estudar. Minha Vida de Menina é um livro para descobrir o prazer de ler.
Infância, Graciliano Ramos. Editora Record.
Em Infância, livro autobiográfico de escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), os fatos perdidos no tempo vão surgindo aos poucos como se estivessem mergulhados numa nebulosa. É assim que o autor recupera o “vaso de louça vidrada cheio de pitombas”, a primeira imagem que ficou retida em sua memória de criança. Desde que conheceu as pitombas, frutinhas redondas tipicamente nordestinas, ele aprendeu a reconhecer todos os objetos esféricos do seu mundo.
Os olhos e os sentimentos do menino percorrem o livro desvendando tipos humanos duros, rígidos e relacionamentos sem afeto. Seu maior assombro era “a falta de sorriso” no rosto do pai. Aos 9 anos, Graciliano ainda não sabia ler e a escola era um suplício para ele. “Não há prisão pior de que uma escola primária do interior”, escreveu. Indignado, ele conta que, em pleno sertão nordestino, os alunos das séries iniciais tinham que ler Os Lusíadas, de Camões.
Se “o menino é o pai do homem”, como escreveu Machado de Assis, Infância ajuda a explicar muitas coisas, como a preocupação de Graciliano com a educação. Em 1934, ele foi Diretor de Instrução Pública de Alagoas e, em 1940, trabalhou como inspetor federal do Ensino secundário. Há quem diga que Infância seja um livro importante para compreender a obra de Graciliano Ramos.
Por parte de pai, Bartolomeu Campos de Queirós. Editora RHJ.
Era uma vez um menino que morava com seus avós na rua da Paciência, numa cidade do interior de Minas Gerais. A história puxa o fio da memória e reconta a infância do autor. O avô escrevia nas paredes da casa pensamentos, ditos populares e os pequenos acontecimentos do dia a dia. A avó encantava os netos com as histórias da vida de santos e com os suspiros que derretiam o açúcar no céu da boca.
Pela manhã, o menino seguia pela rua da Paciência em direção à escola. Ali, sentados de dois em dois, filhos de lavadeiras, pedreiros, médicos e professores resolviam problemas de aritmética multiplicando e dividindo as maçãs em partes iguais. O livro reconstitui a descoberta do mundo por um menino antigo, de um tempo que não há mais.
Apontado pela crítica como um dos importantes escritores de literatura infantil e juvenil do País, Bartolomeu Campos de Queirós é um artesão de palavras. Cada uma delas é escolhida a dedo. Que ninguém acredite na aparente simplicidade do texto. Por parte de pai é poesia pura em forma de prosa.
“Conto de Escola”, do livro Várias Histórias, de Machado de Assis. Editora Dimensão.
“Bruxo do Cosme Velho”. Era assim que o poeta Drummond se referia a Machado de Assis, um de seus escritores preferidos. Em seu casarão no bairro Cosme Velho, no Rio de Janeiro, Machado escrevia e enfeitava o leitor.
Em “Conto de Escola”, do livro Várias Histórias, Machado se mostra um bruxo contemporâneo ao tratar de questões educacionais muito presentes nos dias de hoje. O conto descreve a sala de aula do professor Polycarpo, nos idos de 1840, período da Regência, uma das fases conturbadas da história brasileira, com muita violência social. Permanentemente vigiados pelo olhar sisudo do professor e pela palmatória dependurada próximo à janela, os alunos cruzam olhares, cochicham e tramam.
Pilar, um dos alunos mais aplicados da classe, é denunciado e pego em flagrante quando trocava uma lição por moeda. A aula termina com uma grande surra de palmatória. No dia seguinte, Pilar se cura dos ressentimentos de alma faltando à escola para acompanhar o desfile do batalhão de fuzileiros. Mas duas lições já tinham sido aprendidas pelo garoto: a corrupção e a delação.
A leitura de “Conto de Escola” é uma oportunidade para redescobrir Machado de Assis e se deliciar com seu texto enxuto, irônico e sempre moderno.
Uma professora muito maluquinha, Ziraldo. Ed. Melhoramentos.
Meados da década de 40, a guerra acabando e o mundo girando nas ondas do rádio. Enquanto isso, numa pequena cidade do interior de Minas, Ziraldo e seus colegas do Grupo Escolar andavam perdidos de amores por Uma professora muito maluquinha. Ziraldo é o autor do texto , mas escreveu na primeira pessoa do plural como se estivesse contando a história junto com os colegas de turma.
Sim, ela era maluquinha. Numa época em que alfabetizar era seguir o método da cartilha, a professora escandalizava. Criava jogos e brincadeiras para sala de aula e demonstrava seu amor pelo que existia muito além da escola: música, rádio, cinema, quadrinhos, poesias, namorados e viagens pelos países do sonho.
Nenhum aluno queria saber de perder aquelas aulas movimentadas e alegres. Um dia, a diretora abriu a porta de repente e disse: “Vamos parar com essa felicidade aí?”. Os pais também andaram reclamando: as lições de casa eram poucas. A professora começou então a inventar lições bem maluquinhas que envolviam a família toda numa grande brincadeira de aprender.
A professora inesquecível deixou de ensinar muitos conteúdos escolares daquele tempo. O autor fez uma lista enorme com alguns deles: os afluentes da margem esquerda do rio São Francisco, o dia de nascimento e morte do Duque de Caxias, o nome completo do Conde D´Eu, marido da princesa Isabel e de muitos outros conteúdos ensinados na escola e que a vida mostrou depois que não eram tão importantes assim.
E o que foi feito da professora maluquinha? Bem, o final da história não pode ser contado aqui para não tirar a surpresa do livro.
Cazuza, Viriato Corrêa. Companhia Editora Nacional.
Cazuza é um livro para crianças escrito por Viriato Corrêa, entre 1936 a 1937, que vale a pena ser lido hoje, principalmente pelos professores. Nesse livro “profundamente infantil e brasileiro”, como diz o próprio autor, o personagem Cazuza lembra sua infância no Maranhão.
Bom contador de história, Viriato Corrêa tem o dom de despertar em nós o poder de imaginar. Levados por suas palavras, imaginamos os cenários e os personagens como se estivéssemos na cadeira do cinema. É assim que surgem diante de nós as escolas frequentadas por Cazuza: a primeira delas, a escola do povoado, depois a da vila e o internato na capital, São Luís.
Com riqueza de detalhes, Cazuza descreve uma por uma. Lembra-se das paredes esburacadas da escola do povoado, dos “bolos” aplicados com a palmatória e das “orelhas de burro” feitas de papelão que eram colocadas nos alunos “fracos”. A feiúra e a tristeza da sala de aula foram lhe roubando a alegria e a vontade de estudar. Mas na escola da vila, a meiguice da professora mudou seu estado de ânimo. Ali Cazuza conheceu uma outra realidade: em vez da palmatória, as histórias cheias de lições de moral para educar as crianças.
Tempos depois ele foi para o internato, onde, só aos domingos, era permitido ficar à janela para olhar a rua. Entre vários professores, um se tornou inesquecível: João Câncio. Cansado das “composições” sobre os temas enfadonhos de sempre (“Luar do sertão”, “O nascer do dia” etc.), Cazuza se encantou com as aulas de João Câncio. Ao contrário dos outros, ele gostava de provocar discussões na classe e pedia redações sobre o Brasil. “Não quero palavras, quero ideias”, era o que mais dizia.
Além do seu valor literário, Cazuza é um precioso registro da história da educação brasileira nos meios rural e urbano. Vale a pena ser lido pelos professores que querem refletir sobre a prática pedagógica de hoje e de ontem.
1 comentários:
Rsangela, adorei texto.
A escola já era sem graça naquela época. É interessante como as crianças davam um jeito de escapar da supervisão sufocante dos adultos e como estes espaços de irreverência foram importantes na vida desses sujeitos.
parabéns!
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