José de Sousa Miguel Lopes: “A Lição de Moremi”: combatendo o assédio sexual na Universidade
José de Sousa Miguel
Lopes
Universidade do
Estado de Minas Gerais
Introdução
A Nigéria é muitas vezes referida como “o gigante
da África”, devido à sua grande população e economia. Com cerca de 210 milhões de habitantes é
o país mais populoso do continente e o sexto país mais populoso do mundo. É
habitada por mais de 500 grupos étnicos, portanto, com mais de 500 línguas. O
país está dividido entre cristãos, que em sua maioria vivem no sul e nas
regiões centrais, e muçulmanos, concentrados principalmente no norte.
(Wikipedia, Nigéria, 2023).
A língua oficial é o inglês, sendo o hausa, o ibo
e o iorubá importantes línguas nacionais faladas no cotidiano – (Infoescola,
2023). A Nigéria possui 162
Universidades. (Melhores Universidades Da Nigéria, 2023).
Nos
últimos 20 anos, o país se transformou na segunda maior indústria
cinematográfica na produção de filmes do mundo, perdendo apenas para Bollywood
na Índia. Hoje, a Nigéria é conhecida como o “Gigante Africano” e lança no
mercado interno e externo cerca de 200 filmes por mês. Assim, nasceu Nollywood.
Esse nome foi dado a partir de 2002, embora a proposta nigeriana de se fazer
cinema não se encaixe no perfil comercial de Hollywood. Porque, tem como
principal objetivo a autenticidade e suas narrativas olham unicamente para o
continente africano. Essa visão acerca da representatividade está presente no
mercado nigeriano. Os próprios produtores locais focam na abrangência de
histórias, que são contadas, em sua maioria, em inglês para atrair ainda mais
espectadores.
O
cinema feito na Nigéria tem diversos pontos positivos, sendo a indústria
cinematográfica atualmente a segunda maior geradora de empregos no país,
ficando atrás apenas da indústria petrolífera. Nollywood, também é
autossuficiente na produção de cinema, ou seja, não precisa de subsídios do
governo para bancar seus filmes. E, isso aconteceu porque os nigerianos sabem
formar público e gerar receitas para seus filmes.
As
filmagens de um longa-metragem costumam durar cerca de 10 dias e tem um custo
médio de três a cinco mil dólares no total. No mercado são vendidas uma média
de cinquenta mil cópias em DVD. O preço gira em torno de três dólares. Os
lucros são divididos da seguinte forma: um dólar para a produtora, um para
despesas com marketing e o outro para o comércio onde está sendo vendido.
O
curioso é que onde mais se concentra o lucro dessa indústria não é nas salas de
cinema, mas no mercado de home vídeo, já que no país, existem pouco mais de 12
salas de exibição. Assistir aos filmes de Nollywood é ter a oportunidade de
conhecer melhor a cultura africana e suas diversas identidades, que são
apresentadas com diferentes narrativas nas películas, proporcionando outra
perspectiva sobre a história e seu contexto, pouco explorado fora do
continente.
Importa
destacar algumas informações sobre Kunle
Afolayan, o diretor do filme.
Ele nasceu em 30 de setembro de 1975 e é amplamente reconhecido pela
qualidade dos seus trabalhos. Fez a sua estreia na direção em 2006 com “Irapada”,
um thriller sobrenatural nigeriano, que ganhou o Prémio da Academia de
Cinema da África de Melhor Filme em Língua Africana. Posteriormente, fez os
filmes “The Figurine”, “Phone Swap”, “1º de outubro” e
“Citation” (“A lição de Moremi”). Foi o vencedor dos 16 principais prêmios
do cinema africano em 2015 e teve o segundo filme com maior bilheteria nos
cinemas nigerianos na época de seu lançamento, feito que Afolayan repetiria
dois anos depois com “The Ceo”. (Machado, 2023).
Face ao exposto, iremos
abordar um dos seus filmes mais recentes: o drama “A Lição de Moremi” (“Citation”).
Assédio sexual inspira o filme
Uma das marcas do assédio sexual é a relação
hierárquica de poder que se estabelece sobre a vítima. A expressão assédio
sexual foi criada nos anos 1970 por feministas estadunidenses da Universidade
americana de Cornell, para identificarem a conduta, com conotação sexual, de um
superior hierárquico.
Os
problemas de assédio em Universidades estão disseminados em várias partes do
mundo. Segundo um estudo feito em 2020 pela Associação das Universidades
Americanas (AAU), “quase 42% dos estudantes de graduação, pós-graduação,
professores e funcionários das Universidades dos Estados Unidos se disseram
vítimas de algum tipo de assédio, de contato sexual não consensual a
perseguição e estupro” (Pesquisa
FAPESP, 2022, s/p.). “Dados recentes
mostram que mais de 5% dos estudantes de doutorado na França foram assediados
sexualmente” (Feresin, 2023, s/p.).
No caso do Brasil, de acordo com uma pesquisa realizada pela física Carolina Brito e
por outros colegas da UFRGS, cujos resultados foram publicados em 2022 em um
artigo na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências:
o assédio
sexual é cometido principalmente por homens, que podem ser professores,
funcionários ou estudantes, enquanto o moral também é praticado por mulheres,
ainda que em proporção inferior à dos homens. Só 6,5% dos professores, 7,5% dos
estudantes e 11,3% dos servidores vitimados por assédio sexual fizeram
denúncias formais, em um sinal de que essa prática é pouco combatida. (...) Por
volta de 47% das mulheres e 12% dos homens entrevistados relataram ter sofrido
assédio sexual durante a carreira (Marques, 2023, s/p.).
Um dos dados do estudo “O perfil do cientista brasileiro em
início e meio de carreira”, divulgado em 2023 pela ABC, aponta panorama
semelhante. Por volta de 47% das mulheres e 12% dos homens entrevistados
relataram ter sofrido assédio sexual durante a carreira (Idem).
Bianca Spode Beltrame, que atualmente faz doutorado em
administração na UFRGS, produziu um levantamento em 2018 que se tornou
referência para estudos sobre assédio em Universidades. Ela enviou
questionários para dezenas de instituições federais de ensino superior. A
pesquisa avaliou o panorama do combate e da prevenção institucional do assédio
em 71 delas. O trabalho demonstrou que 52,3% não possuíam nenhuma política de
prevenção ao assédio e 70% delas não adotavam medidas para combater o problema.
(Ibid).
Importa salientar que em 7 de outubro de 2019, a jornalista e cineasta
indicada ao “Emmy” Kiki Mordi lançou um documentário “Sexo por notas”
(13 minutos), para o programa “Africa Eye” da BBC, expondo a
tradição de sexo presente nas Universidades nigerianas (Mordi, 2023).
Após o lançamento desse documentário, as
plataformas de mídia social na Nigéria tornaram esse assunto o mais comentado
durante várias semanas. Perplexos, os nigerianos começaram então a se
questionar como foi possível uma questão tão grave não ter chegado ao domínio
público. O documentário “Sexo por notas” mudou completamente as noções
de agressão sexual e reiterou uma verdade muitas vezes negligenciada sobre o
lugar do poder na solicitação de sexo em troca de melhores notas. Embora muitos
possam ter considerado essa tradição prejudicial na estrutura acadêmica
nigeriana, só depois do lançamento deste documentário se começou a ver a
dimensão dos danos que estes comportamentos realmente causam às estudantes que
são vítimas desta armadilha.
É seguro dizer, então, que a influência sísmica
desse documentário deu origem, ou pelo menos inspirou o filme “A Lição de
Moremi”.
Para a maioria das estudantes na Nigéria, o assédio
sexual é um rito de passagem e a maioria é terrivelmente perseguida por casos
amorosos envolvendo professores do sexo masculino em troca de notas excelentes.
Como isso ocorre dentro da dinâmica de poder, as estudantes geralmente ficam
desamparadas, às vezes acovardadas e coagidas a submeterem-se a esses
comportamentos. Infelizmente, existe uma cultura generalizada de silêncio que
torna isso quase endêmico. Ou, se houver uma brecha, esse problema costuma ser
varrido para debaixo do tapete antes de ganhar a atenção da mídia. Impulsionada
pelo impulso global, a onda #MeToo da Nigéria tornou-se um momento muito propício para a
prestação de contas dessas lamentáveis aventuras lascivas, sobretudo em
instituições que deveriam servir de exemplo para a sociedade.
No início do filme, vemos uma estudante
universitária praticando sexo com seu professor em troca de um aumento nas
notas, um aumento que, pelo que podemos vislumbrar na trama, ela merecia.
Amparada pelas provas que ela coletou ao gravar a ligação com o professor, bem
como as provas de um namorado disposto a revelar os ilícitos do próprio
professor, a trama sofre uma reviravolta complicada que resulta na morte do
palestrante e na expulsão dos alunos envolvidos.
O filme mostra-nos Lucien, um professor de Ciências
Sociais muito viajado e com uma aparência cordial. Isso é um atrativo para os
estudantes se aproximarem dele, ao mesmo tempo que ele utiliza a camaradagem
como um mecanismo para conquistar seu objeto de desejo, Mọremi. Ao atribuir a
ele esse status de masculinidade, o diretor Afọlayan retrata-o como um
indivíduo manipulador que, aparentemente, não sabe dirigir um automóvel, embora
possua um no Senegal. Ele está envolvido em atividades criminosas como estuprador
e é um mentiroso incorrigível que engana Moremí dizendo que conseguiu uma
entrevista para ela nas Nações Unidas. Ao longo das cenas de depoimento, ele é
visto invertendo a narrativa para balançar o status de vitimização para si
mesmo. Além disso, no tribunal assume seu perfil acadêmico e seu privilégio
patriarcal gritando seus êxitos com o representante dos estudantes.
O filme apresenta-nos Moremi, uma brilhante
estudante da pós-graduação. A sua jovialidade e inteligência
despertam o interesse do recém-chegado à Universidade, o professor Lucien.
Este começa a usar de sua posição para ficar perto de Moremi, algumas vezes
fingindo-se de tutor, outras fingindo não saber se localizar em Lagos
(Nigéria), por ter vindo de outro país. Por isso, conta com o auxílio de Moremi
que, às vezes, percebe os galanteios do professor, mas
está encantada com sua inteligência e não acredita que ele lhe possa fazer mal.
A estudante desenvolve uma relação de confiança com Lucien, reage com surpresa
aos primeiros avanços impróprios e demonstra resiliência antes da tentativa de
estupro.
Quando seu caso se torna público e é veiculado pela
mídia Moremi enfrenta preconceitos, ataques à sua reputação e questionamentos
acerca de sua conduta, até acusações de estar mentindo e sendo
oportunista tanto por parte de seus
colegas de curso como de professores e da sociedade em geral. Sua amiga e seu
namorado também entram na lista daqueles que hostilizam e desconfiam dela
durante o processo de julgamento.
Com apenas 21 anos ela denuncia ao conselho
acadêmico o prestigiado professor, por tentar estuprá-la. Contudo Moremi é desacreditada em meio ao processo
disciplinar que se desenrola na investigação. O professor é um intelectual
respeitado mundialmente pela atuação como docente e tutor. É sabido que em
muitas Universidades nigerianas a agressão sexual por parte de professores é
muito frequente, mas raramente é abordada, exceto quando as mulheres se sentem
obrigadas a apresentar provas, nomeadamente revelando evidências em vídeo ou
áudio porque, infelizmente, sua palavra nunca é suficiente.
O processo judicial como elemento central na
trama
O
filme se passa, em grande parte, no tribunal criado pelo comitê da
Universidade, e os flashbacks dos momentos contados por ambas as partes
são trazidos aos espectadores. Mesmo não havendo dúvidas para quem assiste o
filme, o comitê da Universidade levanta muitos questionamentos sobre a
veracidade do caso, e a tensão sobre o veredito permanece até os minutos finais
do filme.
“A Lição de Moremi” é contada principalmente através do processo
judicial no qual Moremi tenta convencer o tribunal, composto pelos principais
membros do corpo docente, da verdade de sua história, que requer um sistemático
recurso à memória. Ao tentar provar sua inocência no tribunal, Moremi
encontra-se naquele inescapável turbilhão de lembranças agudas. Como costuma
acontecer ao relembrar eventos traumáticos, esse processo necessário de
recuperação de memórias terríveis não é linear. Enquanto Moremi compartilha sua história com o tribunal sua confiança é
questionada.
O filme é, simultaneamente, uma obra que
aborda tanto a exploração sexual em espaços acadêmicos por pessoas investidas
de poder, quanto sobre os sistemas que permitem que sua exploração prospere e
fique impune. No entanto, em vez de procurar revelar uma justiça adequada num
sistema funcional que os nigerianos desejam, o roteiro tem dificuldade em
questionar o sistema judicial.
No início pede-se que confiemos nos sistemas de
justiça à nossa disposição. É claro que esse é um conceito difícil de ser
aplicado, visto que esses sistemas provaram ser profundamente disfuncionais na
vida real. Qualquer sistema de responsabilização forte precisa de um histórico
de funcionamento suficiente para que as pessoas confiem nele. Contudo, o filme
não consegue interrogar como esses sistemas falharam no passado.
“A Lição de Moremi” retrata esse pesadelo sem fim, de estigma e reação,
que tem lugar durante o Comitê que investiga tais acusações. O filme é contado
no tempo presente e corta para flashbacks quando as duas partes contam
suas versões dos eventos durante as audiências no tribunal. Ora
estamos vendo uma cena atual, do presente, ora somos levados a algum flashback
para compreender a cena. A mistura entre presente e passado pode
ser complexa de entender se você tirar os olhos da tela, ainda que por um
minuto.
No entanto, a maioria das sequências de flashback
é vista a partir da perspectiva de Moremi, que é forçada a questionar o novo
mundo que passou a conhecer neste campus. Este mundo inclui seu relacionamento
com o professor Lucien, seus dois colegas de curso, seu namorado e colegas
tutores que constituem o restante das testemunhas. Todos eles têm lembranças e
histórias diferentes para contar sobre o relato dos eventos sobre o que
realmente aconteceu. Embora alguns desses relatos sejam apenas julgamentos
baseados no que eles perceberam como estranhos, outros também carregam
intenções maliciosas.
O filme é também surpreendente e generoso com o uso
do humor para enfatizar o pavor crescente que acompanha Moremi, protegida
unicamente pelas suas próprias palavras e sem nenhuma evidência concreta
imediata. Angustiada, interroga-se se o tribunal acreditará ou não em sua
história.
As alegações de Moremi não são exatamente aceitas
desde o início, pois o julgamento rapidamente se transforma em uma dinâmica de
ele-disse-ela-disse. Flashbacks revelam a vida e a comunidade de Moremi,
destacando as muitas complexidades de sua reivindicação à medida que a
verdadeira natureza de sua experiência vem à tona. Não se trata aqui de uma
ambiguidade narrativa: Lucien, o professor admirado e altamente apreciado por
seus estudantes e colegas não é, claramente, culpado.
Observar os eventos parcialmente recontados a
partir das perspectivas daqueles em torno dos dois assuntos principais oferece
perspectivas fascinantes sobre como as pessoas realmente veem essas relações
professor-estudante. Elas preferem tirar suas próprias conclusões com base em
sentimentos e crenças pessoais. Todas elas apenas testemunham eventos se
desenrolando de fora da bolha, mas não conseguem juntar exatamente as peças
espalhadas. Até que chega o momento em que seus relatos podem ser apenas a história
de testemunhas oculares necessárias para salvar alguém, e elas apenas contam
inocentemente com base nas suas crenças ou malícias.
A investigação se transformou em um momento
marcante para o feminismo, pois o ciberespaço nigeriano foi inundado por
narrativas de fracasso moral e estruturas opressivas não apenas em instituições
terciárias nigerianas, mas também na ordem pentecostal cristã e no setor
corporativo.
O trabalho do diretor e o recurso
aos flashbacks
O filme tem uma excelente
direção de arte, boa maquiagem e penteados, belo e exuberante
figurino africano, com as cores
alegres, fortes e vivas das lindas vestimentas desse povo, que concentra a
maior população negra do mundo. Kunle Afolyan também maximiza
as locações muitas vezes negligenciadas em outros filmes nigerianos, como é o
caso de ter filmado lindas imagens em dois outros países africanos, Senegal e Cabo
Verde, que
quase nos fazem esquecer a pesada temática.
Outro aspecto relevante é a música ambiente com
Youssef Ndour, Babátúndé Ọlátúnjí e outros destacados músicos nigerianos.
Os atores desempenham seus papéis com uma dedicação
notável e os diálogos, marcados pelo discurso acadêmico, impregnam o filme
através de uma narrativa profunda e envolvente. Kunle Afolyan escalou Temi
Otedola, uma aspirante a atriz em sua atuação de estreia, para o papel
principal do filme – uma jogada ousada que vale a pena destacar.
O diretor é cuidadoso na sua narrativa o que dá
para perceber pelo ritmo suave, mas também perturbador, pelo qual A Lição de
Moremi é contada.
À medida que a ferida dessa história vai,
lentamente, sendo exposta acabando por ser totalmente reconhecida, pode-se
concluir que o diretor não está muito preocupado em não cometer erros, mas sim
em contar uma boa e convincente história.
A utilização de flashbacks é o ponto forte de Kunle Afolayan. A Lição de Moremi é
capaz de manter uma unidade como história, não apenas pelos personagens
lembrando eventos passados e construindo-os com a ajuda de uma gradação de
núcleos impressionantes e atuando de forma confiável, mas fazendo isso com uma
inserção adequada nos contextos e recuperando eventos que antes eram
considerados irrelevantes. Ora estamos vendo uma cena
atual, do presente, ora somos levados a algum flashback para
compreender a cena. Os flashbacks, além de ilustrativos,
estão ali para contradizer as mentiras de Lucien de modo grosseiro, sem nenhuma
sutileza. Se no depoimento ele menciona ter ouvido palavras inapropriadas de
Moremi, a cena subsequente mostrará o contrário. E assim por diante.
A sequência de ações no filme não mantém uma via
unidirecional, e muitas vezes, o enredo é um detalhe lapidar enrolado em
camadas de flashbacks e histórias de fundo que concretizam a estética
fílmica à medida que a vida passada de Lucien se torna mais vívida. Outras
vezes, o filme prenuncia o perigo que está por vir, como no caso de Kóyèjọ,
estudante do último ano de medicina, ensinando Moremí a se defender em caso de
assédio sexual.
Afolayan soube escolher a contento o diretor de fotografia que fornece uma imersão
constante na natureza contraditória do mundo independente da Universidade, em
que cada olhar que passa leva a um sentimento crescente de paranoia para a
vítima e seu papel em uma comunidade “capturada” para desconfiar de suas
queixas.
Ao retratar um ambiente onde a cultura do estupro foi normalizada, devido a suposições opressivas relacionadas a gênero e sexualidade, Kunle Afolayan oferece um alerta inabalável que se estende muito além das fronteiras da Nigéria. Ele tornou-se um nome familiar na indústria cinematográfica deste país, com filmes que revelam que ele é um autor a ser considerado. Com isso, Afolayan desfruta de generoso patrocínio acadêmico.
Considerações finais
“A lição de Moremi” e um filme muito direto
que organiza opticamente as peças do quebra-cabeça para os espectadores e não
deixa nada para o subtexto. O filme não tem a pretensão de apresentar surpresas
alucinantes. Apenas deseja contar a história como ela realmente acontece nos
campus nigerianos. Tem um ritmo lento e um roteiro interessante, que aborda um tema
pertinente e atual.
Observemos o exemplo e luta de Moremi para
contestar as nefastas consequências do sistema patriarcal e racista construído
e legitimado historicamente, para transformar em um movimento amplo, unitário,
para pavimentar um caminho para desconstruir e eliminar as práticas sexistas.
O filme é também uma reflexão sobre o que significa
ser simplesmente uma jovem que quer ter sua vida de volta, terminar sua
pós-graduação e perseguir seus sonhos, por mais ingênuos que possam parecer.
Além de relatar uma realidade que de fato ocorreu, também retrata
as vivências de muitas jovens estudantes que sofrem com professores abusivos em ambientes
acadêmicos, além de demonstrar como a cultura do estupro ainda permanece
forte nos dias atuais. É uma obra que
trata do importante tema da violência contra a mulher, sendo uma entre as
milhares de histórias de jovens corajosas que conseguem usar sua voz para
denunciar os casos de que são vítimas.
Há também momentos de melancolia: quantos casos de
agressão chegam ao conhecimento público? Existem grupos de defesa para vítimas
de agressões sexuais nas Universidades? Quantas pessoas têm o privilégio
financeiro de viajar para outro país para encontrar provas do histórico de
agressão de um homem?
Em suma, “A Lição de Moremi” oferece uma profunda reflexão artística sobre os
graves problemas na Universidade, a torre de marfim africana, instituição que
deveria servir de bússola moral para a sociedade.
O
sistema patriarcal de gênero é um sistema de dominação-exploração, pois não
existe um processo de dominação separado de outro de exploração, ou seja, de um
lado a dominação patriarcal e de outro a exploração capitalista. A lógica das
relações de produção no âmbito das transformações do capital se expressa, em
alguma medida, de forma mais perversa para as mulheres. Mesmo tendo clareza que
essas transformações atingem de forma geral o conjunto da força de trabalho,
seja ela formal ou não, e aqui já reside uma parte perversa desse processo,
pois a informalidade e precarização, em muito expandida pelo modelo de
acumulação flexível, restringem direitos e geram um contingente de
desprotegidos legais. O quadro se agrava quando analisamos esses rebatimentos
no trabalho das mulheres, em que pese às tendências que afirmam o aumento de
mulheres no mercado de trabalho, esse aumento ocorre de forma precarizada,
desprivilegiada do ponto de vista econômico e social e com maior incidência de
práticas violentas, em especial da prática do assédio sexual.
O
assédio sexual, em sua natureza criminal e ilícita dá-se em várias relações e
em distintos espaços, tanto públicos como também em espaços privados, o que
torna o ambiente universitário um local dentre os quais tal ato ocorre.
Alguns dirão: que mal haveria num simples elogio
sobre a roupa, o corpo, ou a inteligência de uma mulher? Nenhum problema se não
tiver um tom de sedução e não der a entender que a aluna o estaria seduzindo
com sua vestimenta, seu corpo ou sua bela explanação. Nenhum problema se o
professor não colocar a aluna num lugar de possível sedutora, como se sua
beleza ou inteligência fosse irresistível, como se ele pudesse justificar para
si mesmo o seu ato e assim se desresponsabilizar de todas as consequências nocivas
que daí advenham, especialmente para a vida da mulher em questão. Atos de
assédio sexual são possíveis causadores de danos psíquicos e de incontáveis
prejuízos profissionais, especialmente quando a assediada se vê obrigada a ter
de continuar, por fazer parte do mesmo ambiente de trabalho, a conviver com o
agressor, tendo muitas vezes de suportar suas constantes investidas, por não
estar em condições de denunciá-lo ou detê-lo.
O ato em si já é constrangedor para a mulher numa
situação hierarquicamente inferior como aluna e, mais ainda, se ela estiver
numa situação de dependência como bolsista, como é o caso da aluna Moremi. Ou
seja, se o ato for de um professor a situação é grave, mais grave ainda se for
de um orientador que assina pela bolsa da aluna de graduação ou pós-graduação,
pois mais poder acumula tal professor, o que lhe faculta maior ascendência
sobre a orientanda, e menor possibilidade de reação da aluna por medo de perder
a bolsa e ainda ser difamada no meio acadêmico e supostamente ter arruinada a
possibilidade de um dia alcançar o cargo de professora.
Assim como devemos apoiar as iniciativas daquelas
que denunciam o assédio nas ruas, nas instituições religiosas, nos aparelhos de
cultura, nas instituições de saúde, nas assembleias e no Congresso, é
fundamental que as Universidades tenham por princípio o respeito às mulheres e
o repúdio a toda e qualquer forma de violência sexual e de gênero.
Precisamos dizer não, com todas
as letras, ao assédio. Dizer não ao assédio é não aceitar mais que mulheres
sejam vistas como objetos sexuais passivos ou como vítimas frágeis do poder dos
homens, como Lucien, ou como sedutoras irresistíveis. Dizer não ao assédio é
afirmar que as mulheres podem e devem ter controle sobre a própria sexualidade.
É mostrar que podemos elevar a voz e o poder das mulheres na academia e na
sociedade. É não submeter as mulheres aos papéis sociais tradicionais que lhes
atribuem os Luciens machistas protegidos pelo patriarcado ainda vigente.
É garantir que elas possam ocupar, sem constante sujeição à violência de
gênero, o espaço público de debate, essencial ao funcionamento saudável de uma
democracia.
Uma prática silenciosa e constante de cantadas
dos professores em relação às estudantes, algo que remete à suposição, tão
presente em inúmeras culturas, de que mulheres só poderiam garantir seu espaço
na Universidade, e na própria sociedade, através do corpo e não em função de
seu discurso. E, pior ainda, que o corpo das mulheres é um território comum,
passível de invasões que não necessitam de consentimento.
Trata-se, portanto, do combate ao assédio como
estratégia de afirmação de um direito. A mulher não é território a ser
conquistado ou colonizado, ela é sujeita. Não é vítima, mas agente de seus
próprios direitos. Não ficam ruborizadas com supostas cantadas; ficam, sim,
indignadas com a suposição de que estão à disposição de conquistadores que as
colocam no lugar de sedutoras para não se verem como assediadores.
O assédio sexual precisa, por isso, ser entendido
por toda a comunidade acadêmica como um problema político, no sentido mais
amplo deste termo. A reivindicação é a de que homens sejam desautorizados a
menosprezar as mulheres como estudantes ou como pesquisadoras, a
subalternizá-las como secundárias, a emudecê-las nos debates, a ignorá-las em
reuniões, a impedi-las de ter acesso a cargos de coordenação e direção.
Mas iniciativas com efeitos transformadores só
surtirão efeito se as mulheres puderem contar com a escuta de sua área como um
todo e com o apoio dos professores sensibilizados com a causa, se as
instituições universitárias e de fomento à pesquisa, especialmente pelas ações
daqueles e daquelas que nelas trabalham e tomam decisões, assumirem o mesmo
repúdio ao comportamento nocivo que ocorre tão frequentemente no interior das
Universidades. Só assim é possível abrir caminho à construção de relações de
gênero mais justas no meio acadêmico.
Referências
FERESIN,
Emiliano. Universidades suíças enfrentam o assédio sexual.
SWISSINFO.CH, 08/03/2023. In: https://www.swissinfo.ch/por/economia/tpt-08.03-universidades-su%C3%AD%C3%A7as-enfrentam-o-ass%C3%A9dio-sexual/48318634
(Acesso em 12/06/2023)
MACHADO, Jéssica. Nollywood – O cinema
Nigeriano. In: https://mundonegro.inf.br/nollywood-o-cinema-nigeriano/
(Acesso em 06/06/2023)
MARQUES, Fabrício. Retratos
de comportamento abusivo. In: https://revistapesquisa.fapesp.br/retratos-de-comportamento-abusivo/
(Acesso em 17/08/2023)
MELHORES UNIVERSIDADES DA
NIGÉRIA. Melhores Universidades da Nigéria. In: https://pt.alinks.org/best-universities-in-nigeria/
(Acesso em 06/06/2023)
MORDI,
kiki. Kiki Mordi. In: https://en.wikipedia.org/wiki/Kiki_Mordi (Acesso em 06/06/2023).
NIGÉRIA.
Wikipedia-Nigéria. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Nig%C3%A9ria
(Acesso em 06/06/2023).
NIGÉRIA – Infoescola.
In: https://www.infoescola.com/africa/nigeria/
(Acesso em 06/06/2023).
0 comentários:
Postar um comentário