Vladimir Safatle: A crise é um modo de governo
A crise é um modo de governo
Vladimir Safatle
10/06/2016
"Aos
nossos Amigos: Crise e Insurreição" é um pequeno livro de um conjunto de
autores anônimos chamado Comitê Invisível. Ele acaba de ser lançado no Brasil
(n-1 Edições) em um momento que não poderia ser mais propício. Sua capacidade
de apresentar teses sobre a natureza dos impasses da vida contemporânea é algo
que há muito havia desaparecido das prateleiras das livrarias.
"Desde
2008, vivemos em constante ritmo de insurreição", dizem os autores. Nosso
maior erro é não perceber como estamos, seja no Brasil, na Turquia, na Espanha,
na Tunísia ou na Grécia, em um processo mundial de contestação e desencanto.
Faz parte de uma lógica de gestão de crise mundial dar a impressão de que
estamos todos a lutar contra governos locais e aparatos nacionais de poder.
No
entanto, esses governos são apenas repetidores de uma mesma política global,
que parece saída da mesma cabeça, feita com maior ou menor intensidade. Nossas
discussões são sobre intensidades da mesma política, sobre se tais direitos
serão ou não desmontados, sobre qual a intensidade dos cortes, não sobre
caminhos alternativos.
Essa
homogeneidade mostra duas coisas fundamentais. Primeiro, que nenhuma saída será
local ou nacional. Segundo, e mais importante, que apenas a perpetuação de um
estado permanente de choque poderia nos levar a tamanha limitação da capacidade
de pensar. O que talvez nos explique por que a crise não é algo a ser combatido
pelas práticas de governo. Há muito a crise se tornou a própria prática de
governo. Previne-se, por meio de uma crise permanente, toda e qualquer crise
real.
O
que significa que essa crise que aparece diariamente nos jornais não passará.
Ela ficará continuamente como um fantasma a justificar toda
"austeridade". Haverá sempre um corte na previdência a fazer, uma
restrição orçamentária a impor, gordura a cortar em uma "reestruturação
permanente de tudo" que só não mudará uma coisa: a defesa da elite
patrimonial, os rendimentos da oligarquia financeira.
Mas
para submeter populações inteiras a tal regime de governo faz-se necessária uma
verdadeira engenharia psicológica de duas mãos.
De
um lado, vende-se a ideia de que a crise "é o momento vivificante da
'destruição criadora' que cria oportunidades, inovação, empreendedores, em que
só os melhores, os mais motivados, os mais competitivos sobreviverão". Ou
seja, a crise seria o momento no qual a coragem como virtude poderia aparecer.
Por isso, os que temem a crise, procurando proteção, só poderiam estar a agir
como crianças. Eles não são sujeitos conscientes da falácia de uma destruição
criadora que sempre poupa aqueles bem nascidos. Eles são crianças mimadas.
Não
por acaso, as políticas de gestão da crise são chamadas de políticas de
"austeridade". O termo remete à lógica protestante de uma vida
austera, responsável, adulta e realista contra o dispêndio, o excesso e a
irresponsabilidade. Ele traz no seu bojo a ideia de que, enquanto você
trabalhava, alguns "vagabundos" se aproveitavam, não precisando se
impor uma vida restrita como a que você foi obrigado a suportar. É contra os
"privilégios" desses mimados que todos deveriam lutar.
O
raciocínio é primariamente falso. Se alguém está a procurar
"vagabundos" deveria começar por olhar no topo do sistema financeiro
e na casta rentista da elite brasileira, não nas classes historicamente desfavorecidas.
Mas isso pouco importa, pois o discurso da austeridade não se sustenta em algum
dado de realidade, mas na tentativa de impor uma ética por trás de conjuntos de
práticas de governo. Por isso, é no terreno ético que o combate deve iniciar.
Daí
uma compreensão decisiva: "O que acontece hoje não é apenas que alguns
queiram impor uma austeridade econômica a outros que não a desejam. O que
acontece é que alguns consideram que a austeridade é, em absoluto, algo bom,
enquanto que outros consideram, sem de fato ousar afirmar tanto, que a
austeridade é, em sua totalidade, uma miséria".
Como
essa "vida austera", há de se impor uma outra ideia de vida, baseada
na partilha em vez da economia, na conversa em vez do silêncio, no excesso ao
invés da restrição. A austeridade sempre foi a forma de restringir a vida de
muitos para garantir o gozo de poucos. Eis algo que aparece na base da crise
como modo de governo.
FONTE: Aqui
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