José de Sousa Miguel Lopes - Prefácio do livro "Tecnologias de extração do ouro em Minas Gerais: os saberes da África"
PREFÁCIO
Foi com enorme prazer que recebi o convite da Cláudia Márcia Coutinho
Dias, para prefaciar seu livro “Tecnologias de extração do ouro em Minas
Gerais: os saberes vindos da África”. Como africano, seu convite me colocou
no patamar das discussões sobre fatos do processo colonial no Brasil, que, em
alguma medida, têm a ver com o processo colonial ocorrido em meu próprio país:
Moçambique.
Embora meus vínculos maiores sejam com a área da educação, o campo da
História sempre me impregnou de modo profundo, sobretudo porque os inúmeros
processos no campo político, histórico e educacional que hoje se vivem em
Moçambique e com os quais me tenho confrontado, mergulham as suas raízes em
acontecimentos que vêm desde o período colonial e, em seguida, prosseguiram no
período pós-independência (1975), acontecimentos nos quais tive o privilégio
histórico de participar ativamente. Vivenciei a agonia e queda do colonialismo,
por força de uma luta armada de libertação nacional. Acompanhei “in loco”
o processo que conduziu à independência de Moçambique, bem como as profundas
transformações que se lhe seguiram e que levaram o país a envolver-se num
projeto de construção do socialismo. Acompanhei, agora com certo
distanciamento, o retorno ao processo capitalista num quadro de neoliberalismo
selvagem que se instalou em Moçambique após a queda do socialismo real. Então,
Cláudia permita-me o abuso da expressão, “respiro” História.
Entre outras questões, você analisa o papel desempenhado pelos escravos
africanos que introduziram as técnicas de extração utilizadas durante muito
tempo em Minas Gerais. Os saberes africanos existem de longa data, ao contrário
do que uma historiografia eurocêntrica teimosa e equivocadamente difundiu até
muito recentemente como saberes não existentes numa África despossuída de
História. Não se deve ignorar que se quisermos comparar os Reinos africanos do
Benin, Congo, Monomutapa, entre outros, com a civilização europeia da época,
constata-se um nível civilizacional bastante avançado em termos de organização política,
de sistemas de produção, de arte e de arquitetura.
Afastados pela geografia, mas próximos pelas raízes que a História não
pode apagar, a ponte entre Moçambique e Brasil edifica-se a partir da sofrida
noite do tráfico escravista. Como se sabe, para além de Moçambique, outras
rotas de África (Daomé - atual Benin, o Senegal, a Nigéria, o Congo, Angola)
foram utilizadas para enviar escravos para o Brasil.
Essa ponte Moçambique-Brasil prolonga-se com o desterro de inconfidentes
que passaram os últimos anos de vida em terras moçambicanas e alarga-se, desde
finais do século passado, com uma via de mão dupla em que moçambicanos aportam
ao Brasil e brasileiros fazem o mesmo em relação a Moçambique, numa cada vez
mais intensa busca de diálogo entre os dois povos.
Na comunidade dos que falam a língua portuguesa, comunidade nascida da
viagem e da mestiçagem - que são elementos estruturantes de nossas culturas -
Brasil e Moçambique não são apenas o outro lado do mar, mas o outro lado de
nosso ser. O nosso modo próprio e único de sermos africanos e
latino-americanos.
O homem que é ser no tempo e no lugar, “homem viajante”, em abertura ao
futuro, de índole subjetiva, mas penetrado de acentos comunitários e
proféticos. O tempo da memória é simultaneamente interior e exterior,
enunciativo e social, voz e coro, expressão concreta de um sentir que se
profere, da canção do homem na assunção dolorosa ou esfuziante da vida.
Estão ainda por fazer estudos que possam revelar o grau de sintonia ou de
assintonia com o processo de colonização tal como ele ocorreu no Brasil e em
Moçambique, porque finalmente, processos nascidos da mesma matriz colonial.
Isto possibilitaria inclusive a realização de pesquisas bastante interessantes
de uma história comparada, já que assente em uma mesma matriz colonial, com
iniciativas relativamente semelhantes em continentes diferenciados.
O tema da pesquisa da Cláudia, de que resultou este livro, coloca em
pauta a História das técnicas de mineração do ouro durante o século XVIII e
início do século XIX em Minas Gerais, bem como o modo como esse “saber” foi
transmitido e por quem durante aquele período.
Por isso, Cláudia, eu considero o seu trabalho de pesquisa de muita
significação, não apenas para aquilo que você tenta aprofundar relativamente à
História do Brasil, e em particular á História Regional brasileira, mas também
pela luz que ele poderá fazer em relação a processos de pesquisa que urge
realizar sobre os saberes e técnicas dos escravos moçambicanos que vieram para
o Brasil.
Por outro lado também, o seu estudo apresenta uma documentação bem
vasculhada. Sobretudo, tem indicações muito interessantes para se pensarem o
modo semelhante como Portugal procurava manter sua colônia americana e as
colônias africanas, como fornecedoras de matéria-prima e consumidoras de
produtos manufaturados, dando suporte para o chamado “exclusivismo comercial”,
tão importante para a economia europeia.
No que ao tráfico de escravos diz respeito, não se pode ignorar que os
traficantes os utilizavam como mão-de-obra barata, num dos mais gigantescos e
terríveis episódios de violência cometidos contra seres humanos. Os dados
estatísticos relativos ao tráfico de escravos bem como os mecanismos de
violência física e simbólica utilizados contra eles são espantosos. Tais dados
revelam que esse comércio durou cerca de 350 anos, tendo quatro milhões de
negros vindo para o Brasil (muitos foram para Cuba, Venezuela e Caribe). Não
menos surpreendente, eram os mecanismos utilizados pelos traficantes visando
destruir toda uma cultura. Com efeito, os negros eram obrigados a percorrer 5
km até ao porto de embarque. Em seguida, os homens eram obrigados a dar nove
voltas e as mulheres sete voltas em torno da Árvore do Esquecimento,
para ficarem sem capacidade de reagir, de se rebelar para, em suma, esquecerem
a sua cultura. Como se fosse possível tal destruição cultural!
Não se deve igualmente esquecer que nos porões dos navios que vinham para
as Américas não vinha apenas força-de-trabalho, mas costumes, tradições, visões
de mundo. Assim a presença da África manifesta-se na consciência brasileira nas
cores, nas gestualidades, na forma de falar a língua portuguesa, nas danças,
nas comidas, na religiosidade.
Certamente seu trabalho não dá todas as respostas, mas nele encontramos
um estudo minucioso em relação: à forma como, no decorrer do século XVIII, a
Capitania de Minas Gerais passa a ser o centro econômico do Brasil e motivo de
preocupação para Portugal, tornando-se
necessário controlar e manter em segredo (através da adoção da censura às
publicações) a existência de riquezas minerais, evitando que exploradores
estrangeiros tomassem conhecimento delas e procurassem, também eles, minerar o
ouro; às medidas cada vez mais rigorosas tomadas por Portugal no decorrer do
século XVIII, no intuito de obter lucros sempre maiores com a extração do ouro.
Com efeito, através de um sistema de arrecadação (imposto sobre a capitação)
estável e sem flutuações, passou a cobrar-se de toda a população o que faltasse
para completar o pagamento do quinto do ouro; às formas de controle sobre os
mineiros que levaram a várias revoltas de camadas importantes da população, e
posteriormente em outros lugares do Brasil, principalmente à revolta dos
escravos negros (malês) na Bahia; aos modos de extrair o ouro que iam, desde os
faiscadores, que simplesmente o catavam com as mãos nos leitos dos rios até aos
sucessivos processos de extração, como a introdução dos pratos de estanho, o
represamento da água dos rios, os tabuleiros nas suas margens, a introdução da
nora, dos lavadouros chamados canoas, o mergulho até aos joelhos nas águas do
rio, a extração na grupiara (o que jaz ou fica entre os seixos), a quebra do
material a céu aberto com uma espécie de malho de ferro, a cata (poço em forma
de funil), o talho aberto, a bateia, o almocrafe, os guinchos, as máquinas de
ventilação, os pilões, etc.; ao “saber” do negro que trabalhava na mineração do
ouro e que era diferenciado de outros, pois ele sabia ler e escrever, enquanto
a maioria da população não o fazia; os negros Mina, por exemplo, se fizeram
presentes durante todo o processo da economia colonial, desde a lavoura
açucareira, até á descoberta das minas de ouro, e se mantiveram participantes
ao longo do século XIX.
Sabemos que a História do tempo presente, mais do que qualquer outra é,
por natureza, uma História inacabada: uma História em constante movimento,
refletindo as comoções que se desenrolam diante de nós e sendo, portanto,
objeto de uma renovação sem fim.
Um trabalho de pesquisa, não se deve esquecê-lo, é também um lugar de
luta, e a História pode e tem que ser uma forma de luta político-cultural. Ela
tem, para além da tarefa de expandir as capacidades humanas, favorecer análises
e processos de reflexão em comum da realidade, desenvolver nos seres humanos
procedimentos e habilidades imprescindíveis para sua atuação responsável,
crítica, democrática e solidária na sociedade.
Estes argumentos podem ser válidos, mas frequentemente parece difícil
chegar a um consenso sobre modo de colocá-los em prática. Isto pode-nos
desencorajar e conduzir-nos ao pessimismo quando olhamos o que deve ser feito e
constatamos a aparente imobilidade das mudanças que estão indo por caminhos que
não me parecem os mais adequados. O homem existe por estender constantemente
seu ser para o futuro, tanto em sua consciência como em sua atividade. Dito de
outra forma, o homem se realiza em projetos. Não qualquer projeto, como é
óbvio. Uma dimensão essencial desta “futuridade” do homem é a esperança. É
através da esperança que os homens superam qualquer situação do aqui e agora e
é nela que me apoio para dizer que tenho esperança que o mundo atual possa
corrigir seu rumo.
É isso mesmo que você faz, quando paciente e laboriosamente se entrega a
uma pesquisa sobre o contexto brasileiro da época, ao percurso sobre as
técnicas existentes para a extração do ouro em Minas Gerais e à importância do
trabalho escravo na mineração, com ênfase nos negros Mina. Martelando cada
experiência, como o cortador de pedras faz em relação á sua matéria prima, dá-nos
o exemplo da persistência, balizado pela certeza que cada experiência bem
sucedida é resultante de todas as outras experiências anteriores. Em
decorrência, quem fica ganhando é o leitor de “Tecnologias de extração do
ouro em Minas Gerais: os saberes vindos da África”.
José de Sousa Miguel Lopes
(Doutor em História e Filosofia da Educação)
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