sábado, 11 de junho de 2016

José de Sousa Miguel Lopes - Prefácio do livro "A Educação Politécnica e a Escola do Trabalho em Moçambique: novas e velhas falácias pedagógicas?”


Prefácio

Senti-me muito honrado com o amável convite do António Cipriano Parafino Gonçalves para escrever o Prefácio de seu livro “A Educação Politécnica e a Escola do Trabalho em Moçambique: novas e velhas falácias pedagógicas?”.
Acompanhei de perto o percurso acadêmico do António Cipriano Parafino Gonçalves na Universidade Federal de Minas Gerais, tendo o privilégio de ter participado como membro da Banca da dissertação de Mestrado bem como da Banca da Tese de Doutorado ambas defendidas naquela prestigiada Universidade.
Da sua pesquisa de Mestrado resultou este livro que em boa hora, chegará às mãos dos leitores. O tema de seu estudo coloca em diálogo, precipuamente, a concepção de educação politécnica em seu diálogo com a escola do trabalho em Moçambique.
É um trabalho de muita significação por aquilo que tenta aprofundar relativamente à educação politécnica e, em particular, no caso moçambicano. O trabalho, além de apresentar uma documentação bem vasculhada, tem indicações muito interessantes para se pensarem problemas, para se pensarem soluções em processos em que configuram a construção de novas práticas com vista a uma genuína politecnia na educação, visando a omnilateralidade do ser humano.
Certamente, António Cipriano não dá todas as respostas, mas nele encontramos uma postura crítica bastante aguçada em relação a vários aspectos do sistema educacional moçambicano.
A pesquisa bibliográfica e documental encarou as hipóteses como atos criativos, numa crítica contundente a toda e qualquer ortodoxia acadêmica. A abordagem teórica, realizada nos marcos do pensamento marxista, revela-se da maior pertinência, pois é aquele que melhor pode iluminar o objeto de estudo que foi definido.
Como se sabe, Marx lançou os fundamentos de uma concepção radicalmente nova de fazer ciência e filosofia e, portanto, de compreender o mundo. Isto quer dizer que o fundamento da luta revolucionária está primeiramente na ontologia (natureza do ser social) e só depois na política e na ética.
Compreensão esta que deve permitir explicar como os homens (e só eles) fazem a história, por que a fizeram deste modo e como poderão superar a atual forma de sociabilidade.
Quais são, então, os elementos essenciais, que caracterizam a perspectiva marxiana e a demarcam como um patamar radicalmente novo de filosofia e cientificidade? Em síntese, podemos dizer que o núcleo mais essencial se encontra na demonstração da radical historicidade e socialidade do mundo dos homens e na identificação da correta articulação entre subjetividade e objetividade.
Examinando, então, o ato do trabalho, Marx constata que ele é um intercâmbio entre o homem e a natureza, através do qual o homem transforma esta última, adequando-a à satisfação das suas necessidades. Ressalta, contudo, que, ao transformar a natureza, o homem também se transforma a si mesmo. O ato do trabalho, por sua vez, é o resultado da síntese de dois elementos essenciais: a prévia-ideação e a realidade natural objetiva. A mediação entre estes dois elementos será constituída pela categoria da práxis.
Disto decorre, para Marx, que o trabalho é o ato a partir do qual o homem se cria a si mesmo, o ato que estabelece uma ruptura com o ser natural e dá origem ao ser social. Estabelecido este salto constituidor de um novo tipo de ser, todo o restante da história nada mais será do que o processo de tornar-se cada vez mais social do ser social.
A partir desses pressupostos ontológicos, também toda a problemática relativa ao conhecimento científico ganha uma abordagem inteiramente nova. A resposta às questões epistemológicas, tais como: qual a natureza essencial da ciência; o que são o objeto e o sujeito do conhecimento e qual a relação entre eles; o que é a verdade e quais os critérios para defini-la; quais as possibilidades e os limites da razão; o que é o método científico; qual a relação entre juízos de fato e juízos de valor, sempre terão um equacionamento de caráter ontológico-prático, vale dizer, a partir da integralidade do processo histórico-social e não de caráter formalista, como é o caso das respostas que partem da perspectiva subjetivista moderna.
Como consequência, a concepção moderna de ciência, até hoje largamente dominante, exatamente por operar apenas sobre o mundo fenomênico, chega a um dilema do qual é incapaz de se livrar. Ou produz um conhecimento que apenas contribui para a reprodução desta forma de sociabilidade ou, quando se pretende crítica, é incapaz de ultrapassar o círculo estreito da denúncia ou do humanismo abstrato.
Ao contrário, a ciência marxiana, de caráter ontológico, produz, necessariamente, um conhecimento de caráter revolucionário, vale dizer, um conhecimento que, ao apanhar o objeto na sua integralidade (essência/fenômeno, totalidade), evidencia, ao mesmo tempo, as tendências mais profundas que se configuram no seu interior e, entre elas, a possibilidade de superação dessa forma particular em direção a uma forma superior.
O novo patamar filosófico-científico instaurado por Marx tem como características: apreender a realidade social como algo que é integralmente resultado da atividade social dos próprios homens, ainda quando se lhes opõe como um poder hostil (alienação); compreendê-la como uma totalidade de partes, articuladas, em processo, cuja matriz fundante é o trabalho; nunca perder de vista que qualquer fenômeno social é sempre o resultado da interação entre subjetividade e objetividade; ao fazer ciência, partir dos dados imediatos, mas dissolvê-los, buscando a lógica mais profunda da qual eles são uma manifestação e, com isso, fazer emergir a possibilidade de superação de sua forma atual.. E é esta forma de fazer ciência e filosofia que deve ser resgatada se se quer um instrumento teórico adequado às enormes tarefas que a classe trabalhadora tem pela frente com o objetivo de superar o capitalismo e construir uma autêntica comunidade humana.
O trabalho de António Cipriano, ao refletir a problemática da educação politécnica em Moçambique sinaliza esta direção.
Se o objetivo da pesquisa era contribuir para uma melhor compreensão sobre a concepção da educação politécnica em Moçambique e das suas contradições então, acredito que o caminho trilhado se coaduna com esse objetivo, pois este estudo, tanto em termos de linguagem, quanto da colocação do problema e desenvolvimento das análises é bastante acessível e coerente com seu propósito.
Numa época em que talvez se devam abandonar as utopias universalizantes e as certezas absolutas sobre as coisas, penso, no entanto, que algumas certezas, algumas utopias são cruciais, especialmente as relacionadas com as condições de existência material e espiritual da humanidade, tais como a resistência à exploração social, à opressão, á dominação e à injustiça, males infelizmente ainda fortemente presentes no nosso país.
Toda a mudança implica uma escolha entre uma trajetória a seguir e outras a deixar para trás. A compreensão do contexto, dos processos e das conseqüências da mudança ajuda-nos a clarificar e a questionar estas escolhas. As opções que fizermos dependerão, em última instância, da profundidade deste entendimento, mas também da criatividade das nossas estratégias, da coragem das nossas convicções e da orientação dos nossos valores. Consequentemente, o que atrás propus deve ser visto não como um conjunto de regras definitivas para o aperfeiçoamento e (ou) de listas de práticas de sucesso. Ao invés disso, apenas coloquei em discussão, algumas das opções com que nos defrontamos em Moçambique, quando encontramos a mudança educativa ou a realizamos nós próprios no mundo contemporâneo. Porque, se conseguirmos compreender os rumos possíveis da mudança, talvez possamos no futuro ser mais capazes de lhe tomar as rédeas.
Se tiver consciência que as mudanças de fundo deverão ocorrer ao nível da sociedade mais vasta, penso também que pequenas ações, guiadas pela vontade de mudar e apoiadas num trabalho paciente podem, aos poucos, produzir fissões na estrutura aparentemente sólida no sistema educacional moçambicano. É este trabalho paciente de que resultou este livro, que me habilita a vaticinar que ele será um momento de grande importância para todos aqueles que tiverem o privilégio de lê-lo, sobretudo, os educadores.


José de Sousa Miguel Lopes
Doutor em História e Filosofia da Educação
Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais

1 comentários:

Jornadas Educacionais 12 de junho de 2016 às 12:32  

Miguel,sinto-me lisonjeado por essa publicação.Mais uma vez, muito obrigado por tudo. Cipriano

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