José de Sousa Miguel Lopes - Prefácio do livro "A Educação Politécnica e a Escola do Trabalho em Moçambique: novas e velhas falácias pedagógicas?”
Prefácio
Senti-me muito honrado com o amável
convite do António Cipriano Parafino Gonçalves para escrever o Prefácio de seu
livro “A Educação Politécnica e a Escola do Trabalho em Moçambique: novas e
velhas falácias pedagógicas?”.
Acompanhei de perto o percurso
acadêmico do António Cipriano Parafino Gonçalves na Universidade Federal de
Minas Gerais, tendo o privilégio de ter participado como membro da Banca da
dissertação de Mestrado bem como da Banca da Tese de Doutorado ambas defendidas
naquela prestigiada Universidade.
Da sua pesquisa de Mestrado resultou
este livro que em boa hora, chegará às mãos dos leitores. O tema de seu estudo
coloca em diálogo, precipuamente, a concepção de educação politécnica em seu
diálogo com a escola do trabalho em Moçambique.
É um trabalho de muita significação por
aquilo que tenta aprofundar relativamente à educação politécnica e, em
particular, no caso moçambicano. O trabalho, além de apresentar uma
documentação bem vasculhada, tem indicações muito interessantes para se
pensarem problemas, para se pensarem soluções em processos em que configuram a
construção de novas práticas com vista a uma genuína politecnia na educação,
visando a omnilateralidade do ser humano.
Certamente, António Cipriano não dá todas
as respostas, mas nele encontramos uma postura crítica bastante aguçada em
relação a vários aspectos do sistema educacional moçambicano.
A pesquisa bibliográfica e documental
encarou as hipóteses como atos criativos, numa crítica contundente a toda e qualquer
ortodoxia acadêmica. A abordagem teórica, realizada nos marcos do pensamento
marxista, revela-se da maior pertinência, pois é aquele que melhor pode
iluminar o objeto de estudo que foi definido.
Como se sabe, Marx lançou os
fundamentos de uma concepção radicalmente nova de fazer ciência e filosofia e,
portanto, de compreender o mundo. Isto quer dizer que o fundamento da luta
revolucionária está primeiramente na ontologia (natureza do ser social) e só
depois na política e na ética.
Compreensão esta que deve permitir explicar como os homens (e só eles)
fazem a história, por que a fizeram deste modo e como poderão superar a atual
forma de sociabilidade.
Quais são, então,
os elementos essenciais, que caracterizam a perspectiva marxiana e a demarcam
como um patamar radicalmente novo de filosofia e cientificidade? Em síntese,
podemos dizer que o núcleo mais essencial se encontra na demonstração da
radical historicidade e socialidade do mundo dos homens e na identificação da
correta articulação entre subjetividade e objetividade.
Examinando, então, o ato do trabalho, Marx constata que ele é um
intercâmbio entre o homem e a natureza, através do qual o homem transforma esta
última, adequando-a à satisfação das suas necessidades. Ressalta, contudo, que,
ao transformar a natureza, o homem também se transforma a si mesmo. O ato do
trabalho, por sua vez, é o resultado da síntese de dois elementos essenciais: a
prévia-ideação e a realidade natural objetiva. A mediação entre estes dois
elementos será constituída pela categoria da práxis.
Disto decorre, para Marx, que o trabalho é o ato a partir do qual o
homem se cria a si mesmo, o ato que estabelece uma ruptura com o ser natural e
dá origem ao ser social. Estabelecido este salto constituidor de um novo tipo
de ser, todo o restante da história nada mais será do que o processo de
tornar-se cada vez mais social do ser social.
A partir desses pressupostos ontológicos, também toda a problemática
relativa ao conhecimento científico ganha uma abordagem inteiramente nova. A resposta
às questões epistemológicas, tais como: qual a natureza essencial da ciência; o
que são o objeto e o sujeito do conhecimento e qual a relação entre eles; o que
é a verdade e quais os critérios para defini-la; quais as possibilidades e os
limites da razão; o que é o método científico; qual a relação entre juízos de
fato e juízos de valor, sempre terão um equacionamento de caráter
ontológico-prático, vale dizer, a partir da integralidade do processo
histórico-social e não de caráter formalista, como é o caso das respostas que
partem da perspectiva subjetivista moderna.
Como consequência, a concepção moderna de ciência, até hoje largamente
dominante, exatamente por operar apenas sobre o mundo fenomênico, chega a um
dilema do qual é incapaz de se livrar. Ou produz um conhecimento que apenas
contribui para a reprodução desta forma de sociabilidade ou, quando se pretende
crítica, é incapaz de ultrapassar o círculo estreito da denúncia ou do
humanismo abstrato.
Ao contrário, a ciência marxiana, de caráter ontológico, produz,
necessariamente, um conhecimento de caráter revolucionário, vale dizer, um
conhecimento que, ao apanhar o objeto na sua integralidade (essência/fenômeno,
totalidade), evidencia, ao mesmo tempo, as tendências mais profundas que se
configuram no seu interior e, entre elas, a possibilidade de superação dessa
forma particular em direção a uma forma superior.
O novo patamar filosófico-científico instaurado por Marx tem como
características: apreender a realidade social como algo que é integralmente
resultado da atividade social dos próprios homens, ainda quando se lhes opõe
como um poder hostil (alienação); compreendê-la como uma totalidade de partes,
articuladas, em processo, cuja matriz fundante é o trabalho; nunca perder de
vista que qualquer fenômeno social é sempre o resultado da interação entre
subjetividade e objetividade; ao fazer ciência, partir dos dados imediatos, mas
dissolvê-los, buscando a lógica mais profunda da qual eles são uma manifestação
e, com isso, fazer emergir a possibilidade de superação de sua forma atual.. E
é esta forma de fazer ciência e filosofia que deve ser resgatada se se quer um
instrumento teórico adequado às enormes tarefas que a classe trabalhadora tem
pela frente com o objetivo de superar o capitalismo e construir uma autêntica
comunidade humana.
O trabalho de António Cipriano, ao refletir a problemática da educação
politécnica em Moçambique sinaliza esta direção.
Se o objetivo da pesquisa era
contribuir para uma melhor compreensão sobre a concepção da educação
politécnica em Moçambique e das suas contradições então, acredito que o caminho
trilhado se coaduna com esse objetivo, pois este estudo, tanto em termos de
linguagem, quanto da colocação do problema e desenvolvimento das análises é
bastante acessível e coerente com seu propósito.
Numa época em que talvez se devam
abandonar as utopias universalizantes e as certezas absolutas sobre as coisas,
penso, no entanto, que algumas certezas, algumas utopias são cruciais,
especialmente as relacionadas com as condições de existência material e
espiritual da humanidade, tais como a resistência à exploração social, à
opressão, á dominação e à injustiça, males infelizmente ainda fortemente
presentes no nosso país.
Toda a mudança
implica uma escolha entre uma trajetória a seguir e outras a deixar para trás.
A compreensão do contexto, dos processos e das conseqüências da mudança
ajuda-nos a clarificar e a questionar estas escolhas. As opções que fizermos
dependerão, em última instância, da profundidade deste entendimento, mas também
da criatividade das nossas estratégias, da coragem das nossas convicções e da
orientação dos nossos valores. Consequentemente, o que atrás propus deve ser
visto não como um conjunto de regras definitivas para o aperfeiçoamento e (ou)
de listas de práticas de sucesso. Ao invés disso, apenas coloquei em discussão,
algumas das opções com que nos defrontamos em Moçambique, quando encontramos a
mudança educativa ou a realizamos nós próprios no mundo contemporâneo. Porque,
se conseguirmos compreender os rumos possíveis da mudança, talvez possamos no
futuro ser mais capazes de lhe tomar as rédeas.
Se tiver consciência que as mudanças de
fundo deverão ocorrer ao nível da sociedade mais vasta, penso também que
pequenas ações, guiadas pela vontade de mudar e apoiadas num trabalho paciente
podem, aos poucos, produzir fissões na estrutura aparentemente sólida no
sistema educacional moçambicano. É este trabalho paciente de que resultou este
livro, que me habilita a vaticinar que ele será um momento de grande importância
para todos aqueles que tiverem o privilégio de lê-lo, sobretudo, os educadores.
José de Sousa Miguel Lopes
Doutor em História e Filosofia da Educação
Professor na Universidade do Estado de Minas Gerais
1 comentários:
Miguel,sinto-me lisonjeado por essa publicação.Mais uma vez, muito obrigado por tudo. Cipriano
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