"Poema à boca fechada" - José Saramago
Poema à boca fechada
Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de
outra raça.
Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas
mortas,
Ácidas mágoas em limos
transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes
tortas.
Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer
merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.
Nem só lodos se arrastam, nem só
lamas,
Nem só animais boiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se
entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.
Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.
José Saramago
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