quinta-feira, 23 de maio de 2019

"Fevereiro" - Matilde Campilho


De passagem pelo Rio no mês passado depois de participar de um evento literário no Recife, a poeta Matilde Campilho posa no Parque Lage, onde escreveu o primeiro poema na cidade. (Camilla Maia / Agência O Globo)
Foto: Agência O Globo
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Mais importante que ler o poema é escutá-lo. É uma experiência única. Para usufrui-lo, na plenitude, feche os olhos e deixe-se levar nesta viagem pelo fascinante universo poético onde cada palavra é acariciada na sua sonoridade e nos seus desdobramentos amorosos. Um hino para “as cinco mil explicações possíveis para o amor”, à melancolia, aos incontáveis caminhos na busca do outro.
Ouça a autora, Matilde Campilho, declamando seu poema “Fevereiro” numa mistura de sotaques do Rio e de Lisboa. Depois leia seu poema escrito em 2014.

Fevereiro

Escute só,
isto é muito sério.
Anda, escuta que isso é sério!
O mundo está tremendamente esquisito.

Há dez anos atrás o Leon me disse
que existe uma rachadura em tudo
e que é assim que a luz entra,
não sei se entendi.

Você percebe alguma coisa
da mistura entre falhas e iluminação?
Aliás, me diga,
você percebe alguma coisa de carpintaria?

Você sabe por que foi que
meteram um boi naquele estábulo
ao invés de um pequeno rinoceronte?
Deve ter tido alguma coisa a ver com a geografia.

Ou com os felizmente
insolucionáveis mistérios
que só podem vir do misticismo asiático.
Um boi é um bicho tão … inexplicável.
Ainda bem!

O amor é um animal tão mutante,
com tantas divisões possíveis.

Lembra daqueles termômetros
que usávamos na boca
quando éramos pequenininhos?
Lembra da queda deles no chão?

Então!
Acho que o amor quando aparece
é em tudo semelhante
à forma física do mercúrio no mundo.

Quando o vidro do termômetro se quebra,
o elemento químico se espalha
e então ele fica se dividindo
pelos salões de todas as festas.

Mercúrio se multiplicando.
Acho que deve ser isso
uma das cinco mil explicações possíveis
para o amor.

Ah é! Eu gosto de você!
A luz entrou torta
por nós a dentro, mas, olha,
eu gosto de você!

A luz do verão passado
quebrou o vidro da melancolia
e agora ela fica se expandindo
pelas ruas todas,
desde aquele outro lado do Sol
até esse tremendo agora.

 Hoje ainda faz bastante frio.
As cinzas ainda não aterraram
sobre as cabeças disfarçadas.

Tem gente batucando
suor e cerveja
pelas ruas da nossa cidade sul.

E na cidade norte,
há ondas de sete metros
tentando acertar no terceiro olho
dos rapazinhos disfarçados de cowboys.
[suspiro]

O mestre ainda não veio
decretar o começo da abstenção
e ... olha,
a luz ainda está conosco.

Sim,
o mundo está absurdamente esquisito.
Já ninguém confia
nas imposições dos perfeitos.

A esta hora na terra é um tanto carnaval,
um tanto conspiração,
um tanto medo.

Metade fé,
metade folia,
metade desespero.

E, provavelmente,
a esta hora,
uma metade do mundo está vencendo
e a outra metade dormindo.

Há ainda outra metade
limpando as armas,
outra limpando o pó das flores.

Mas, por causa do que me ensinou o místico,
eu acredito que agora exista alguém
profundamente acordado.

Alguém que esteja vivendo
entre o intervalo tênue
entre o sonho e a agilidade.

Suponho que ele saiba perfeitamente
que este começo de século
será nosso batismo do voo
para nossa persistência no amor.

João molhou a testa de Emanoel.
Os gritos das ruas
molham as testas de nossos corações.

De que lado você está,
eu não me importo!
De que garfo você come?
de que copo você bebe?
que posto certo você escolhe?
qual é seu orixá?
seu partido?
sua altura?
de qual de suas cicatrizes você cuida?
que pássaro você prefere?
quem é seu pai?
qual é seu samba?
Pinot noir ou Chardonay?
que protetor você usa?
qual é sua pele?
seu perfume?
qual político?
quantos amores você sonha?
em que Fernando?
em que Ofélia?
em que cinema?
em que bandeira?
em que cabelo você mora?
Qual dos túneis de Copacabana?
Reze para seus santos quando atravessar.

É… é impossível
viver no país de Deus.
Isso eu te dou de barato.

Mas, atravessar o gramado de Deus em bicicleta,
isso não é impossível, não.

Escuta, isso é sério!
Andamos crescendo juntos,
distraidamente.

As árvores crescem conosco.
Nossa pele se estende,
nosso entendimento teso, também!

O século cresce conosco.
O amor pelas ventas da cara do mundo,
também!

Quanto a um pra um
entre nós dois,
isso logo se vê.

Não sei nada sobre a paixão,
suspeito que você também não.
Mas, começo a entender
que o compasso da fé
está mudando a passos largos.
Dois pra lá e dois pra cá.

Portanto, escute.
Isto é muito serio!
Isto é uma proposta aos trinta anos.

Agora que o mercúrio
assumiu sua posição certa,
vem comigo achar
o meu trono mágico
entre a folhagem.

E, no caminho até lá,
vem dançar comigo, vem!

Matilde Campilho*

*Matilde Campilho é uma poeta portuguesa, nascida em Cascais, 1982, estudou Literatura em Lisboa e História da Arte em Milão. Morou no Rio de Janeiro, onde também trabalhou como jornalista e redatora freelancer entre os anos de 2010 e 2013 e foi nessa estadia entre Rio e Lisboa que deu vida a sua primeira obra, "Jóquei", misturando a dicção das duas cidades.


Se desejar aprofundar um pouco mais o trabalho literário de Matilde Campilho pode ler a dissertação de mestrado “Matilde Campilho: por uma poética do espanto” (100 páginas) de Otávio Campos Vasconcelos Fajardo, defendida em 2017 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora clicando aqui

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