segunda-feira, 20 de maio de 2019

"Como se a manhã do tempo despertasse" - Ana Mafalda Leite

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Como se a manhã do tempo despertasse

Saberei porventura os lugares
de onde fala esta voz? Os enigmáticos espelhos de onde se olha? 
Visão e sonho, por onde vem seu segredar? Por que se inquieta a
respiração? Quem acende o perdido caminho, quem peregrina em
aparente cegueira? 
Dentro de si.  
Da casa.  
Contorna, desenha vagarosamente as mãos com que se escreve. Surpresa
como um caminho sem rumo.  
 Apenas no corpo  um coração impresso 
                                                                Um sabor ausente 
me presencia.  
Sinto-o. 
          Pareces uma paisagem com uma janela dentro, contas.  
Uma personagem que se desdobra. Sem nome. 
E os nomes reverberam acesos para uma evidência indemonstrável. 
Nesse lugar.  
Sim, nesse lugar de silêncio onde a varanda abre a sua boca sobre o infinito              
pelo ar  corre  uma secreta ânsia    
talvez de beber inteira  
a lua  em sussuro alto ou em redondo e branco grito 
Venho da  infância infinita, dizes, os chocolates na algibeira do coração,
embrulhados em cores celofane. 
Meu País dentro. 
Um navio navega-me longe. Costeiro. Procurando uma rua que me leve até ti. 
Nada lhes digo. E para que serviria se para eles não podes ser visível? 
Há nesse lugar do coração uma paisagem antiga 
sempre presente 
uma  flor de frangipani  ou de buganvília?  branca rósea vermelha amarela lilás 
que nunca morre 
Há uma paisagem antiga nesse lugar do coração 
um perfume que se solta intenso das folhas amarelecidas do álbum 
aí o meu – o teu? rosto está sempre igual 
e o olhar com que me olhas já tem consigo o constante brilho das estrelas  
tremeluzindo intensas  
no meu caminho pela noite do mundo 
   em torno da lâmpada o rodopio zunindo  
volteando vértices de luz  
uma roda de insetos dança 
até ao amanhecer 
Respiro como se o tempo nunca mais acabasse 
respiro-te ana mafalda como se respiram as manhãs  
ao deter-me devagar sobre a tua imagem 
como quem junta sóis ao amanhecer 
como se a manhã fosse de sempre 
Como se a manhã do tempo  despertasse 
e eu adivinhasse o  tempo ainda por chegar 
Um tempo em que apenas me habita o infinito 
alvor de estrelas 
cair das luzes  no rio 
com muito silêncio  
          Um feitiço dentro desta  escrita?? 
  Dizes: Houve um tempo em que tive amor à poesia 
olhava-te 
abrindo as páginas os livros 
protestando contra a insuficiência do mundo 
choravas ou rias?  
a música muito alto 
tão alto uma labareda imensa era voz de voz propagada 
Houve tempo que da poesia nasciam brasas 
borboletas, coisas mágicas de circo     
em rodopio 
do chapéu as pombas as casas as pessoas que eu não vi nunca              
mais 
Como é possível escapar à eternidade? 
entrando dentro de um espelho de intocada imortalidade 
Será que o mundo começa sempre de novo? 
perguntas acordada  
Eu digo que sim e as cores raiam o violeta do pássaro do eco o verdelaranja  da maçanica 
o amarelo do hibisco um momento rubro  
o sol na cabeça guardasol   uma cegueira inquieta 
             O que fazes aí ana? 
como se vestida da luz da tarde….  
o espírito adverte não confundas não passes a fronteira 
arde em ti um fogo, aquele muito lento  
que caminha  
                    e eu olho-te  do outro lado do espelho 
espectral o véu de pirilampos que te rebrilha 
encantado dorme em ti o mais recôndito feitiço   
despe-se da noite  incendeia a imagem 
para que voe 
para que arda 
para que  deslize 
para que cresça uma raiz cintilante 
                                                     agora, aqui,  vês?   
na terra vermelha no sonho alto transparecendo as marcas uma a uma  
desse gigante girassol e giralua por dentro da alma 
incendiado beijo azul roxo da tarde correndo onde  
                               ainda lento o horizonte cresce sem medida  
te transporta até onde dança lentíssimo 
ele, uma figurinha no palco, 
o infinito 
     Vês? Estendo aqui a paisagem. Para que vás comigo até lá 
fátuo incêndio astrolábio  
breve passagem 
É uma janela que se abre  
em fogo queimada ao longe ardendo             
noite cheia de estrelas iluminada noite acesa  
                        obscuro mundo em festa 
desmesurado  o coração estremece e atravessa a paisagem 
O coração pulsa sem medida . Sentes? 
vês?               
uma maravilhada estrela  
ponto e porta   
a infância o infinito 
eu, tu, ela? 
entramos por aí 
uma fuga do rosto, um devir  imperceptível 


 Ana Mafalda Leite

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