"Como se a manhã do tempo despertasse" - Ana Mafalda Leite
Como
se a manhã do tempo despertasse
Saberei
porventura os lugares
de onde fala esta voz? Os enigmáticos espelhos de onde se olha?
de onde fala esta voz? Os enigmáticos espelhos de onde se olha?
Visão e sonho, por onde vem seu segredar? Por que se inquieta a
respiração? Quem acende o perdido caminho, quem peregrina em
aparente cegueira?
respiração? Quem acende o perdido caminho, quem peregrina em
aparente cegueira?
Dentro de si.
Da casa.
Contorna, desenha vagarosamente as mãos com que se escreve.
Surpresa
como um caminho sem rumo.
como um caminho sem rumo.
Apenas no corpo um coração impresso
Um sabor ausente
me presencia.
Sinto-o.
Pareces uma paisagem com uma janela dentro, contas.
Uma personagem que se desdobra. Sem nome.
E os nomes reverberam acesos para uma evidência indemonstrável.
Nesse lugar.
Sim, nesse lugar de silêncio onde a varanda abre a sua boca
sobre o infinito
pelo ar corre uma secreta
ânsia
talvez de beber inteira
a lua em sussuro alto ou em
redondo e branco grito
Venho da
infância infinita, dizes, os chocolates na algibeira do coração,
embrulhados em cores celofane.
embrulhados em cores celofane.
Meu País dentro.
Um navio navega-me longe. Costeiro. Procurando uma rua que me
leve até ti.
Nada lhes digo. E para que serviria se
para eles não podes ser visível?
Há nesse lugar do coração uma paisagem antiga
sempre presente
uma flor de frangipani ou de buganvília?
branca rósea vermelha amarela lilás
que nunca morre
Há uma paisagem antiga nesse lugar
do coração
um perfume que se solta intenso das folhas amarelecidas do álbum
aí o meu – o teu? rosto está sempre igual
e o olhar com que me olhas já tem consigo o constante brilho das
estrelas
tremeluzindo intensas
no meu caminho pela noite do mundo
em torno da lâmpada o
rodopio zunindo
volteando vértices de luz
uma roda de insetos dança
até ao amanhecer
Respiro como se o tempo nunca mais acabasse
respiro-te ana mafalda como se
respiram as manhãs
ao deter-me devagar sobre a tua imagem
como quem junta sóis ao amanhecer
como se a manhã fosse de sempre
Como se a manhã do tempo despertasse
e eu adivinhasse o tempo ainda por chegar
Um tempo em que apenas me habita o
infinito
alvor de estrelas
cair das luzes no rio
com muito silêncio
Um
feitiço dentro desta escrita??
Dizes: Houve um tempo em que tive amor à poesia
olhava-te
abrindo as páginas os livros
protestando contra a insuficiência do mundo
choravas ou rias?
a música muito alto
tão alto uma labareda imensa era voz de voz propagada
Houve tempo que da poesia nasciam brasas
borboletas, coisas mágicas de circo
em rodopio
do chapéu as pombas as casas as pessoas que eu não vi
nunca
mais
Como é possível escapar à eternidade?
entrando dentro de um espelho de intocada imortalidade
Será que o mundo começa sempre de novo?
perguntas acordada
Eu digo que sim e as cores raiam o violeta do pássaro do eco
o verdelaranja da maçanica
o amarelo do hibisco um momento rubro
o sol na cabeça guardasol uma cegueira inquieta
O que fazes aí ana?
como se vestida da luz da tarde….
o espírito adverte não confundas não passes a fronteira
arde em ti um fogo, aquele muito lento
que caminha
e eu olho-te do outro lado do espelho
espectral o véu de pirilampos que te rebrilha
encantado dorme em ti o mais recôndito feitiço
despe-se da noite incendeia a imagem
para que voe
para que arda
para que deslize
para que cresça uma raiz cintilante
agora, aqui, vês?
na terra vermelha no sonho alto transparecendo as marcas uma a
uma
desse gigante girassol e giralua por dentro da alma
incendiado beijo azul roxo da tarde correndo onde
ainda lento o horizonte cresce sem medida
te transporta até onde dança lentíssimo
ele, uma figurinha no palco,
o infinito
Vês? Estendo
aqui a paisagem. Para que vás comigo até lá
fátuo incêndio astrolábio
breve passagem
É uma janela que se abre
em fogo queimada ao longe
ardendo
noite cheia de estrelas iluminada noite acesa
obscuro mundo em festa
desmesurado o coração estremece e atravessa a
paisagem
O coração pulsa sem medida . Sentes?
vês?
uma maravilhada estrela
ponto e porta
a infância o infinito
eu, tu, ela?
entramos por aí
uma fuga do rosto, um devir imperceptível
Ana
Mafalda Leite
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