"Nós somos seres condenados a significar. ..." - O texto explosivo de Marcos Bagno
Sugerimos ao leitor que, em primeiro lugar, leia algumas
reflexões sobre a neutralidade e, em
seguida, leia o extraordinário texto do professor Marcos Bagno.
09/11/2018
Nós somos seres condenados a significar. A fala neutra é uma
impossibilidade em termos. Toda palavra proferida é carregada de tudo o que
somos, temos sido e seremos. A própria capacidade de falar é histórica,
socialmente situada: não aprendemos a falar porque um deus nos soprou ao
ouvido. A língua é uma história, por isso mesmo é que se transforma ao longo do
tempo, junto com a sociedade. A sincronia é uma quimera: tudo o que dizemos e
ouvimos é uma cápsula do tempo em que dias, anos e séculos se entrecruzam. Um
ensino/aprendizagem sem produção de sentido, sem construção de significado, é
algo que somente as distopias literárias e cinematográficas podem tentar, mas
sempre fadadas ao fracasso, já que se fazem com... palavras. Nem mesmo um robô
conseguiria dar aulas "neutras", porque alguém teria de emprestar sua
voz à máquina, e não há voz neutra. Para cumprir o dejeto de lei (porque
projeto de lei é outra coisa, ao menos em países civilizados) que tenta nos transformar
em cascas vazias, teríamos de entrar em sala, nos sentar à mesa diante dos
alunos e não dizer uma só palavra durante toda a aula. Sim, e de óculos
escuros, porque os olhos falam muito. De fato, falar é tão entranhadamente
humano que a fala se manifesta não só pela boca, mas pelas mãos, pelos pés,
pelos olhos, por todo o corpo que, se é corpo humano, é corpo feito de
linguagem. E nada fala mais alto do que o silêncio. Mais prático, mais realista
e mais barato é simplesmente eliminar a educação da vida em sociedade, fechar
todas as escolas, todas as universidades, todas as bibliotecas, todos os
teatros, todos os cinemas. É inacreditável que 2.500 anos de tradição
filosófica sobre a linguagem (e isso só no Ocidente) sejam desconsiderados como
se toda essa reflexão não tivesse tido o imenso impacto que teve na formação
mesma da civilização. Quem deseja uma fala neutra sofre de tanta estupidez que
não se dá conta de que sua própria fala não é neutra, é carregada. No caso
desse dejeto de lei, carregada de um desprezo profundo pela inteligência, pela
cultura, pela arte, pela civilização. Existe neutralidade no Hino Nacional?
Existe neutralidade em qualquer versículo mínimo da Bíblia? Existe neutralidade
na fala de quem diz que vai matar indiscriminadamente, que é a favor da
tortura, que prefere um filho morto a um filho homossexual? Há neutralidade em
dizer que vamos combater os inimigos externos e internos? Uma escola sem
partido é, obviamente, uma escola partidarizada para o que há de mais tosco,
sórdido, vil e abjeto na sociedade brasileira neste momento. E é, sobretudo,
uma ideia burra.
Marcos Bagno*
*Professor do Departamento de
Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília, doutor em filologia e língua portuguesa pela Universidade de São Paulo, tradutor, escritor com diversos prêmios e mais de 30
títulos publicados entre literatura e obras técnico-didáticas. Atua mais
especificamente na área de sociolinguística e literatura infanto-juvenil, bem como questões pedagógicas sobre o ensino de português no Brasil. Em 2012 sua obra: As Memórias
de Eugênia recebeu o terceiro lugar do Prêmio
Jabuti na categoria
juvenil, e no ano seguinte, o livro infantil Marcéu recebeu
o Prêmio
Literário da Fundação Biblioteca Nacional Glória Pondéna categoria juvenil.
Fonte: Aqui
0 comentários:
Postar um comentário